Princípio da Cabala

     O Solon! Solon! Graecisemperpueriestis, nullamhabentesantiquamopinionem, nullam disciplinam tempore Canam. Assim refere Platão no seu Timeu, que improperava um bárbaro egípcio ao grande filósofo Sólon. Porque sem dúvida se possuem como incertas as disciplinas modernas, se das antigas não temos notícia, quando não seja inteiro conhecimento. Por esta regra os hebreus levantaram tanto a consideração ao passado, que não falhando naqueles que por luz divina possuíram e declararam as primeiras verdades, ainda houve outros, que em virtude da filosófica meditação quiseram achar e mostrar via ao entendimento para passar sem dúvida desde a idade até o nascimento do mundo e procriação das primeiras ciências e artes dele.

     Era o nome Hachamim entre os hebreus o próprio que Sophi entre os gregos, e com este se denotava todo o sujeito sapiente. Mas depois que tanto começaram a florescer entre eles aqueles verdadeiros sábios, que da boca do Senhor ouviram a certíssima doutrina, deram a estes tais os nomes de profetas, que isso quer dizer nabi, do verbo naba, isto é, certa predição do futuro; porque o nome profeta, de voz grega, é quase vaticinante, depois na própria significação e pronunciação receberam os latinos e vulgares. Mas em todas as línguas supõe sempre homem anunciador do futuro, por virtude do espírito de Deus, à diferença dos falsos profetas, ou pseudoprofetas que, logo desde então, fizeram guerra à verdade divina, como na Escritura Santa se lê algumas vezes, dos quais o Envangelista São Matheus nos manda guardar, aquando diz: Attendite a falsisProphetis. Porque aos outros sábio os de ciência natural chamavam os assírios, caldeus (como se vê em Daniel); os antigos galos, druidas; os báctrios, samaneus; os persas, magos; os índios, gimnossofistas; os scihas, anacharsis; os trácios, zamolxis, que todos são aqueles a quem chamamos filósofos.

     Mas depois que o povo hebreu foi destituído por suas culpas de um tão grande bem, honra e glória, como o espírito de profecia que de tão longos tempos gozava unicamente entre as mais nações do mundo (porque a gentilidade só alcançou verdadeiros os oráculos das Sibilas), inventou em seu defeito a Ciência Cabala; ou, se a não inventou, a pôs então descoberta prática, sendo (segundo seus rabinos afirmam) até então de uns a outros em segredo conferida.

    Assim, dizemos que a Ciência Cabala, Cabala, Cabalística ou Cabalista, que de todas as maneiras se nomeia, é aquela de quem escrevem os rabinos e teve seu princípio a par do da Lei, que por Deus foi dada a Moisés no Monte Sinai, não com menor fim (conforme a eles) que para a inteligência da mesma Lei. E que por esta causa secretamente da própria boca de Moisés se veio derivando a Cabala de uns a outros, sem que em público se escrevesse ou ensinasse, por ser assim conforme ao preceito divino. Esta tradição é sua e nela se afirmam tanto, como gente acostumada a defender erros, havendo muitos que têm para si que em virtude da Ciência Cabala, que Deus lhe comunicara, possuíra Moisés toda a inteira sabedoria de divinas e humanas causas, por aquelas cinquenta portas de Sapiência que, eles dizem, tem a Cabala abertas, para que entrando por elas o discursohumano seja cheio de segredos e mistérios científicos, conforme a uma sentença que referem:Rabino Gerundense que Salomão Omniacognouit per legem, et omniainvenit in ea per exositiones suas, per grammaticassubtilitates, et per litterasejus, et per Calimistrationesillius.

     Outros lhe dão mais antigo, ainda que menos ilustre, princípio, sendo de parecer que pelo anjo Raziel foi comunicada a Ciência Cabala a nosso primeiro pai Adão, quando desceu para o consolar da expulsão do Paraíso. A qual opinião se corrobora com sabermos ser também chamado Raziel o livro mais principal desta Ciência Cabalística; como dando-nos a entender que todos os preceitos dela foram ditados pelo anjo Raziel, de quem o livro tomará o nome e a doutrina. Logo acrescentam que o anjo Jophiel foi mestre de Sem, e de Abraão o anjo Zadkiel, e de Isaac o anjo Rafael, e de Jacob o anjo Peliel. Entre a qual doutrina e a primeira há grande oposição, porque ou fosse a Cabala revelada do anjo Raziel a Adão, ou de Deus ensinada a Moisés, se ela sempre foi ciência transferida, bem se escusava que os anjos viessem ensiná-la aos patriarcas Sem, Abraão, Isaac e Jacob, pois em virtude da primeira doutrina de Adão passara sem mestre a seus descendentes: como não lemos que aos mais, a quem Moisés a deixou, fossem necessários preceptores.

     Passou assim de uns a outros até o cativeiro da Babilônia; mas dizem que, sendo reedificado o Templo, foi Esdras o primeiro que ordenou se escrevesse em setenta volumes, correspondentes aos setenta sábios, ou Velhos da Sinagoga. Donde infiro que não ocuparia todos os setenta volumes aquela doutrina, masque uma própria leitura seria trasladada setenta vezes, para quecada ancião tivesse seu livro dela. Contra o que nos quer dar a entenderPicco dela Mirrandola (segundo o testemunho de Thomas Garçon), dizendo haver ele comprado, lido e estudado estes setenta volumes de Esdras, dos quais tirou toda a notícia da Cabala, que fez presente aos latinos, sendo ele entre eles quem antes que outro inculcou à nossa posteridade seu nome e preceitos.

     Estes são os princípios e origem da Ciência Cabala, segundo a autoridade dos hebreus. Mas entre todos os antigos autores da erudição profana se não acha alguma notícia desta Ciência por seu próprio nome Cabala; ainda que por semelhantes podemos entender que Pitágoras a alcançou, deduziu ou fez conforme com ela os seus símbolos pitagóricos. E que Platão também teve dela alguma notícia, como se vê do seu Crátilo. Mas Reuchlin, participando da opinião dos rabinos, escreve que o filósofo Pitágoras a professou, e que passando e vindo da peregrinação, fora chamado cabalístico, o qual nome perderam os gregos, ou trocaram logo ao de filósofos; o que pretende provar com a semelhança das proposições, que há entre os pitagóricos e os cabalísticos; porque quando os discípulos de Pitágoras eram perguntados pelas verdades de suas proposições, respondiam pela grande autoridade do Mestre, aquela célebre frase, ele disse: donde sem dúvida veio a cláusula que hoje usamos in verba Magistri.

     Mas esta doutrina, ou por sepultada já no esquecimento, ou na vaidade, ou por ser tão distante, de nós nunca ouvida, parece que tornou, em parte, senão em todo, a ressuscitar, ou inculcar-se-nos na Ciência magna, ou Arte Breve de RaymundLullio, que om os símbolos pitagóricos e Ciência Cabala tem notável semelhança; porque quase todos os seus misteriosos segredos parece se encaminham ao próprio fim, que tem por objeto a Cabala, interpretando cláusulas das Escrituras, formando argumentos, e talvez predizendo por via de números e caracteres; ofícios todos da Cabala, como veremos, quando se trate de sua divisão e objetos.

     Contudo, não vimos que entre a gentilidade, então, e agora entre o Cristianismo fossem grandes os progressos desta ciência; ou já procedesse da falência dela, ou já do difícil com que a gozavam seus professores. Porque (como dissemos) os antigos e modernos rabinos persistentes em erros e antiguidades a guardaram, e comunicaram avaramente de uns a outros, com perigo de sua verdade; donde se entende que ainda quando em seus princípios haja alcançado qualificação e alteza, a mistura e relaxação que lhe trouxeram os tempos e ruins usos a têm enfraquecido em crédito e doutrina, em tal maneira que apenas ficaram para eles, e menos para nós, os da antiga ciência; com tanta confusão viveu entre os hebreus, até que o raro estudo do sutil Conde Picco dela Mirandolla deu à Itália mais claras suas notícias; a quem seguindo depois Joseph Riccio, Alexandre Farra, italianos, e Reuchlin, germano, expuseram ainda em melhor prática esta ciência, a quem também seguiu Thomas Garçon e Jayme Rebulosa. Porém, todos com tal defeito, desproporção e variedade, que suposto devemos a seus escritos destes boa parte do que dissemos, verão bem os estudiosos (quando confiram nossa disposição com a dos referidos autores) qual seria o trabalho com que, em ordem, clareza e profundidade nos adiantamos aos mais que desta ciência nos deram as premissas, cujas opiniões serão de nós seguidas, enquanto se não desviarem do mais verdadeiro e piedoso sentimento em que pelo contrário sempre são compreendidos os autores que desamparam a razão sólida pela sutil. Próprio defeito dos engenhos amantes da singularidade.