Primaveras do século  XXI: Cicatrizes da globalização ou sinais da emergência de uma nova era?

André William Segalla [i]

 

 

Resumo

O início do novo século trouxe o despontar de uma série de dilemas para o cenário político internacional, como a emergência do terrorismo, a ascensão de novas potencias internacionais e também, as revoltas urbanas contra governos despóticos, contra o autoritarismo e a indolência política em diferentes Estados, do Oriente Médio à América do Sul. O presente artigo discute a natureza dessas revoltas e suas consequências para o cenário político mundial e para o Brasil em particular.

Palavras-Chave: Globalização, Revolta, Conflito de Massas.

  1.      Introdução

 Karl Marx, ao escrever sobre a coroação de Napoleão terceiro em 1851, afirmou: 

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição deste 18 Brumário. Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado (MARX, 1956).

Com essas emblemáticas palavras transcritas em seu 18 Brumário, Marx afirmou, de forma pragmática, que a história é cíclica. O ser humano tem por costume repetir de tempos em tempos os seus próprios feitos, mudando apenas sua roupagem exterior, deixando o conteúdo, a ideologia, intacta. Isso se deve em grande parte à penosa, porém real constatação de que os homens costumam incorrer seguidamente nos mesmos velhos erros, e acabam por ver-se presos, inevitavelmente, nos mesmos velhos dilemas.

Aquilo que se convencionou chamar de “primaveras” não foge a essa regra, e evidencia-se a veracidade da observação de Marx. A repetição das crises políticas do passado e sua repercussão no presente nos dá mostras claras de que as revoltas que hoje vemos nada mais são do que ecos de eventos antigos, e que, em geral, pouco se aprendeu com eles. Na alegoria do 18 brumário, o sociólogo alemão lembra-nos de que na revolução francesa aconteceu algo similar. Saiu Caussidière e colocou-se em seu lugar a Danton e depois deste a outro político com idéias similares e assim sucessivamente. Os atores da peça mudaram, mas não mudou o enredo da trama.

Similarmente, notamos que a efervescência que liderou as emoções na Praça Tahir, no Egito, bem como em todo o território Líbio e ainda os gritos de ordem dos estudantes no Chile e no Brasil é o mesmo de há muitos anos atrás; o mesmo da época em que Marx escreveu o Brumário e o mesmo que circula o mundo desde a queda da bastilha: um governo justo e melhorias sociais para a população (proletariado). O que acontece agora na presente sequencia de revoltas em todo o mundo é uma revisão de velhas turbulências, e, aparentemente, é um processo que tende a se perpetuar.

 2.      A primavera dos povos.

 Para entender como e por que chegamos a esse momento de revoluções em todo o mundo, é indispensável reavaliar alguns momentos muito similares que ocorreram em outras épocas. A segunda metade do século XIX foi uma era de grandes transformações na Europa. A Inglaterra vivia o auge do período vitoriano, a França recuperava-se das guerras napoleônicas e a despeito da crise financeira, crescia. Também a Alemanha e a Itália davam seus primeiros passos em direção à afirmação de suas políticas nacionalistas.  As casas reais estavam estabelecidas e firmes em toda a Europa, de Portugal à Rússia e do Reino Unido à Suíça. Os nobres estavam socialmente bem colocados e a burguesia prosperava. Até mesmo o clero estava satisfeito, uma vez que o protestantismo apresentava sinais de esgotamento e já não crescia nos ritmos de outrora. O contentamento, no entanto, não era geral. Um grande contingente de miseráveis enchia de pesares as ruas das grandes capitais da Europa. A fome que crescera com o fracasso das colheitas de 1845 acentuou o descontentamento geral com a maioria dos governos, os quais se mostravam inaptos para atender a demanda popular por participação nas decisões nacionais. Sem comida, sem voz e sem nada a fazer pelos seus países a não ser arcar com os pesados impostos da realeza, a massa de descontentes começou a mover-se em direção a uma inevitável revolta. Eric Hobsbawn afirma em a Era dos Impérios:

Eram três as possibilidades que se abriam aos pobres que se encontravam à margem da sociedade burguesa e não mais efetivamente protegidos nas regiões ainda inacessíveis da sociedade tradicional: Eles poderiam lutar para se tornar burgueses, poderiam permitir que fossem oprimidos ou então poderiam se rebelar (HOBSBAWM, 2003).

 O terceiro caminho foi o escolhido, e as revoltas se espalharam por todo o continente como uma epidemia. Em 1848 os franceses tomaram as ruas de Paris exigindo o direito ao sufrágio universal e maior igualdade jurídica entre as camadas do estrato social. Em pouco tempo eles derrubariam o governo de Luís Felipe I e iniciariam a segunda república francesa, sob a tutela de Napoleão III. A movimentação francesa daria ensejo e também exemplo aos demais europeus, que motivados pelos mesmos ideais abraçariam a causa dos seus interesses. Em questão de semanas, Prússia, Romênia, Alemanha, Croácia, Polônia, Itália, Áustria, Rússia e mesmo a Inglaterra, em menor escala, iriam aderir à causa revolucionária. A repressão estatal garantiu o insucesso dos protestos na maioria desses países, sendo que o destaque da primavera de 1848 foi de fato a república francesa. 

Esse período de instabilidade e de luta social passou a ser chamado de Primavera dos Povos, em virtude do  despertar de uma massa indolente, a qual floresceu como os belos jardins europeus em suas primaveras amenas. De fato, esse despertar foi a maior movimentação política não limitada a um único Estado desde a Revolução Francesa. Ele espalhou-se por toda a Europa e desta para muitas colônias em outros continentes. No Brasil também foi possível notar-se elementos da Primavera dos Povos na Revolução Praieira de Pernambuco (1848-1850) e ainda, salvo suas diferenças, na Revolução Farroupilha de 1835-1845.[ii]

Em todos esses casos, a primavera política tornou-se sinônimo de busca por igualdade e autoafirmação das classes operária e agrária, bem como de um afrouxamento da presença feroz  da realeza nos escassos lucros da urbe. Em menos de 50 anos, os resultados da Primavera dos Povos estariam bem visíveis: novos governos na Europa, o fim de diversos regimes de realeza, afrouxamento da repressão política e uma nova consciência universal, onde o povo passaria a ver a si mesmo como autor da história e não como mero coadjuvante. A eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914 acabaria por dinamitar esse processo, e a ascensão do totalitarismo europeu pós 1930 se responsabilizaria por manter esse espírito revolucionário adormecido por longas décadas.

 3.      A emergência de um novo mundo

 Em novembro de 1989 ruiu o maior símbolo da anarquia do sistema internacional, ou mais precisamente, da divisão bipolar leste-oeste típica do cenário da guerra fria. Com o fim do socialismo no leste europeu, as diversas nações até então subjugadas pela tutela soviética lutariam por sua autonomia política, muitas entrariam em guerras civis, especialmente nos Bálcãs e outras ainda, procurariam desesperadamente se aliar ao bloco ocidental na expectativa de obterem suporte na casualidade de um ressurgimento soviético. Curiosamente, esses movimentos de afirmação política foram também denominados por alguns historiadores  como “primaveras” sendo emblemática entre elas a Primavera de Praga. [iii]

          Mais do que primaveras no leste europeu, a vitória da “democracia americana” no final dos anos oitenta lançou o mundo em uma nova espiral de acontecimentos, precipitando o crescimento do fenômeno conhecido como globalização; ou seja, a interdependência econômica dos Estados Soberanos, cristalizada na aceitação de moedas comuns, na ascensão de blocos econômicos e países emergentes, assim como numa maior eficiência e rapidez nos sistemas informatizados e tecnológicos, sistemas de rede e de tráfego de informação (FRIEDMAN, 2005).

A globalização também acentuou a desigualdade existente entre os diversos estratos políticos do mundo contemporâneo. Nações pobres marginalizaram-se mais, em virtude de não terem condições de adentrarem o circuito globalizado, e as previsões de Samuel Huntington mostraram-se razoavelmente coerentes no que tange ao choque de civilizações [iv]. Assim sendo, a ascensão do terrorismo internacional, a autoafirmação das nações islâmicas e as crises políticas no Oriente Médio inserem-se no cenário do pós Guerra Fria como feridas não cicatrizadas desse choque de civilizações que opõe mundos e culturas divergentes uns contra os outros, em uma luta cruel pela sobrevivência do mais forte.

Concomitante ao choque internacional, existe também a busca pela autoafirmação e libertação dentro de cada uma dessas culturas, particularmente das que vivem há décadas sob a égide de governos despóticos. Os países do Oriente Médio são por excelência celeiros do despotismo mundial e recentemente tem dado mostras de suas ambições libertárias. Historicamente a região foi berço e palco de dezenas de governos agressivos, de guerras sangrentas e de lutas incessantes em torno do poder central e do domínio irrestrito da autoridade. Depois de longas décadas de crescimento populacional, de desenvolvimento intelectual e do surgimento de uma juventude globalizada, a dominação passa a ser cada vez mais repressora, uma vez que a grande massa populacional começa a se negar a permanecer nessa situação. O que ocorre nessas circunstâncias é uma explosão incontrolável de ideais libertários, e é exatamente o que temos visto nos últimos meses com a primavera árabe.

4.      A primavera Árabe.

 Em dezembro de 2010 uma revolta popular estourou na Tunísia depois que um anônimo suicidou-se, motivado por problemas políticos e repressão policial. Os revoltosos tomaram o exemplo de autoimolação como um martírio, e exigiram a renúncia imediata do presidente Zine El Abidine Ben Ali, no poder desde 1987. A repressão policial foi mais uma vez violenta, o que acabou por exacerbar ainda mais os ânimos. A onda de protestos que se espalhou levou o país a uma convulsão social inédita e obrigou Ben Ali a fugir para a Arábia Saudita. A Tunísia vivia então uma situação comum a diversas nações do Oriente Médio: um governo despótico, salários baixos e uma população sem voz: a combinação típica que originou as grandes revoltas populares históricas, inclusive a Revolução Francesa e a Primavera dos Povos. Mas havia um grande diferencial na Tunísia, bem como nas suas nações vizinhas: um contingente imenso de pessoas jovens, bem informadas, com acesso a redes sociais e em sua maioria, estudantes de nível superior. Esse grupo de filhos da geração X e Y tornou-se o propulsor da onda revolucionária, sendo imitados por outros jovens igualmente interligados pelas redes sociais em nações vizinhas. Verdadeiramente, um dos elementos de maior notoriedade nas revoltas árabes e que caracteriza fortemente o fenômeno da globalização é o uso extensivo das mídias sociais como estratégia de propagar as atividades; bem como dar maior transparência ao movimento, cooptar novos participantes e ainda burlar a repressão ao tráfego de informações dentro dos regimes autoritários. Ferramentas como twitter, facebook e blogs são hoje tão poderosas quanto as armas convencionais, sendo capazes de derrubar governos e incitar grandes rebeliões públicas. Conforme mencionado por NEGRI E HARDT,

"O predomínio das ferramentas das redes sociais nas revoltas, como o facebook, o youtube e o twitter, são sintomas, não causas, dessa estrutura organizacional. Elas são formas de expressão de uma população inteligente, hábil para usar as ferramentas à mão e organizar-se autonomamente (NEGRI A; HARDT M. 2011)."

Em questão de dias, o exemplo desses jovens e globalizados tunisianos insuflou os ânimos dos jovens argelinos, líbios e jordanianos, todos vivenciando regimes despóticos há décadas. Muitos desses nasceram e cresceram sob a autoridade desses regimes, sem jamais terem conhecido a democracia, como foi o caso da Líbia, governada desde a década de 60 por Muammar Kaddafi, até a deposição e morte deste, em meio aos protestos. O brado de liberdade seguiu como um rastilho de pólvora, atingindo dezenas de Estados na confluência do Oriente Médio e do Norte da África. No Egito, onde a revolta iniciou-se em janeiro de 2011, manifestações reuniram no somatório geral, mais de um milhão de pessoas, tornando a Praça Tahir, no centro do Cairo, o grande emblema da primavera dos povos islâmicos em busca de autoafirmação.

Em poucas semanas, os grandes protestos alastraram-se para o Bahrein, Djibuti, Iraque, Síria, Omã e Iêmen e protestos menores ocorreram no Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e no Saara Ocidental. Como resultado, presidentes foram depostos (Egito, Tunísia), guerras civis precipitaram o fim de regimes e a destruição de nações (Líbia), reformas democráticas e constitucionais (Iêmen, Jordânia, Marrocos, Iraque e Bahrein) e outros ainda seguem sendo incógnitas da primavera, a despeito de seus alvos já terem dado mostras de fraqueza  e se obrigado a acatar muitas das decisões populares, caso da Síria de Bashar Al Assad [v].

Em conjunto com a política não democrática dos Estados do Oriente Médio, apontam-se ainda outras causas a moverem os revoltosos em seus protestos. É dito por ROCHE que,

"Complexidade, diversidade e choque de opiniões unem-se, [...] para exigir uma mudança, mudança que as potências conservadoras, ainda no poder, buscam reduzir ao máximo. Essas divergências, essa reação dos conservadores exigem uma vigilância constante da parte dos contestadores, que agem num contexto econômico cada vez mais instável. As pressões internacionais sobre o preço do petróleo e dos gêneros alimentícios são duramente sentidas pelos povos árabes sunitas, cujos dirigentes mal emergem dos acontecimentos. Os casos do Iêmen, da Síria e, principalmente, o da Líbia demonstram a importância da instabilidade das frentes contestadoras, enquanto na Tunísia e no Egito as coisas buscam acomodar-se em um contexto econômico e financeiro deficiente. (ROCHE, 2012, p.54)."

 Assim, Estados economicamente deficitários, políticas antidemocráticas e falta de perspectivas estão na linha de frente das grandes movimentações ocorridas nos estados Islâmicos, as quais moveram-se em direção ao ocidente e catalisaram diversos outros movimentos de contestação.

 5.      Um mundo em ebulição.

 Não apenas o Médio Oriente  e o norte da África sofreram com a violência e o descontentamento popular. Locais até então tidos como paraísos da tranquilidade tornaram-se cenários de distúrbios sem precedentes. Em Santiago do Chile, milhares de estudantes promoveram quebra-quebras nas ruas, incendiando carros e arremessando pedras contra a polícia, em um protesto incontido pela reforma social e de ensino, exigindo o barateamento das incrivelmente altas mensalidades universitárias, e mais facilidade de acesso ao ensino superior (ESTUDIANTES, 2013). Em Londres, uma multidão de habitantes das periferias, em especial de bairros boêmios, como Birmingham, Hackney e Tottenham, saqueou lojas, incendiou edifícios e carros, promoveu badernas e choques contra a polícia em agosto de 2011. Em sintonia com a primavera árabe, os riots de Londres principiaram com a morte de um anônimo pobre, foram catapultados pela repressão da polícia e foram dinamizados pelo uso de aplicativos de smartphones e redes sociais, conclamando os revoltosos às ruas (THE BLACKBERRY RIOTS, 2011). Em Madri, na Espanha, protestos contra a precária situação econômica (o país foi incluído nos PIGS, países com maior divida externa da Europa) são os mais emblemáticos dentre tantos que se espalham no velho continente. A Grécia também começou a despejar seus revoltosos nas ruas nos últimos meses. Motivados pela crise econômica a massa de populares entrou em choque com o governo, e a polícia agiu de forma brutal na repressão, dando razões para a escalada da violência no país. Muitos analistas inclusive levantam acusações de tortura e violações dos direitos humanos por parte da polícia grega (MEGALOUDI, 2013, s/n).

O fato é que o mundo pós-guerra fria trouxe uma grande incógnita global. Sem autoridades centrais, como foi o caso dos dois hemisférios da bipolaridade, não existe mais uma referência ideológica fixa que se possa seguir ou que colabore na manutenção do status quo das nações. Logo, os jovens do mundo contemporâneo, os quais são muito mais informados e críticos que a geração de seus pais, ficam a deriva nesse sistema complexo, e recusam-se a ser meramente observadores ou massa de manobra de governos apáticos. Ademais, a morte de um único membro do coletivo, o qual simboliza a experiência de todos naquele momento, torna-se virtualmente a morte de todos, formando o estopim de confrontos colossais. Como essa é a história do presente, ainda não temos condições de dizer ou mesmo prever aonde essas revoltas vão nos conduzir, mas muitas conclusões já podem ser tiradas e pode-se perceber com clareza a emergência de um novo paradigma político.

6.      Uma primavera à brasileira.
 

Desde a primeira metade de 2013, uma série de manifestações similares às ocorridas em outras partes do mundo tem acontecido com grande frequência em todo o Brasil. O evento que originou a movimentação nacional foi uma reivindicação por passagens de ônibus mais baratas em São Paulo e logo após, no Rio de Janeiro. Depois das gigantescas metrópoles, outras capitais estaduais como Porto Alegre, Manaus e Curitiba, aderiram. A exagerada reação policial aos eventos acabou por catalisar os movimentos, expandindo-os por diversas outras cidades menores [vi].

Curiosamente, os eventos no Brasil são muito mais nebulosos do que em outras partes do mundo por não haver uma causa específica, um motivo claro para o início dos levantes. Da petição por menores reajustes no transporte público, as manifestações passaram a clamar pelo fim da corrupção política, melhores condições de emprego e salário, fim da violência e menor poder de repressão por parte da polícia, entre outras razões. Em recente artigo publicado no New York Times, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que os protestos ocorridos no Brasil são diferentes dos que ocorrem em países não democráticos, como Egito e Tunísia. Negando que a causa do movimento seja a insatisfação política, Lula disse que o clamor das ruas é motivado apenas pelo desejo popular de ter uma maior participação na democracia. Para tanto, ele cita os programas sociais de seu governo, o incentivo aos universitários e outras benesses que segundo ele, demonstram o completo contentamento popular. Em determinado ponto do artigo, ele afirma,

 "Eles [os jovens] querem maior acesso a cultura e lazer. Mas acima de tudo, eles pedem instituições políticas mais transparentes, sem as distorções e os anacronismos do sistema eleitoral do Brasil, o qual recentemente provou-se incapaz de administrar sua própria reforma (LULA, 2012)."

 Apesar de o texto mencionar a política nacional como parte do problema, em momento algum Lula cita ou faz menção da corrupção como catalisador dos movimentos de rua. O decorrer do artigo ainda apresenta outras colocações, como o fato de os jovens atuais não terem vivido um momento de ditadura como o ex-presidente viveu, o que deveria, portanto, provar que não é a política a razão da revolta. O discurso enviado ao New York Times gerou duras críticas a Lula, acusado de ter patrocinado uma era de corrupção sem precedentes no país. Segundo as palavras de Larry Rohter, jornalista norte-americano que viveu por 15 anos no Brasil, (e que foi expulso por Lula depois de o repórter ter mencionado a paixão do presidente por bebidas alcoólicas, decisão essa, anulada no supremo tribunal),

 "Os oito anos de Lula no ofício, tem sido vistos como os mais corruptos da história do Brasil como república, tanto em termos de quantias envolvidas quanto no número de escândalos. ROHTER (2012, p. 255)."

 A despeito de severas acusações e dos dizeres lidos em numerosos cartazes nas mãos dos revoltosos, o ex-presidente mostra-se um tanto distante dos reais objetivos e das causas dos levantes populares; procurando focar apenas nos pontos positivos de sua gestão, ignorando o grande acumulo de acusações de corrupção e ilegalidades políticas que aconteceram no seu período de governo - inclusive o caso mais crítico de nossa história democrática - o mensalão.

Internacionalmente, os protestos brasileiros também geraram diversas interpretações diferentes. A CNN reportou em seu site internacional que a Copa do Mundo é tida como uma das grandes culpadas, considerando que os benefícios que ela trará são para outros países, e não para o Brasil (MONTAGUE, 2013); já a britânica BBC apontou os problemas de saúde, educação e transporte das grandes periferias do Rio de Janeiro (BLOGUEIROS, 2013). Por sua vez, o New York Times repassou informações do Instituto Datafolha, que após entrevistar manifestantes em São Paulo elencou alguns desses motivos: 67% mencionaram sua contrariedade contra o aumento das passagens de ônibus, 73% mencionaram em conjunto a insatisfação política e a corrupção; 20% saúde pública e 18% a violência policial. (ROMERO, 2013). Em sentido geral, as pesquisas demonstram que a insatisfação do brasileiro com os rumos da política nacional estão em primeiro plano.

Logo após a expansão dos protestos para cidades do interior, o Jornal espanhol El Pais afirmou que o Brasil passou a sofrer de esquizofrenia por protestos, uma vez que estes acontecem em diversos lugares (ARIAS, 2013). Muitos outros jornalistas internacionais escreveram a esse respeito, procurando uma resposta mais abrangente do que as já discutidas. Para eles é ilógico que um país que tenha saído do estigma terceiro mundista para tornar-se autossuficiente em recursos energéticos, além de vencer um longo período de inflação e de dívidas externas para tornar-se um dos maiores emergentes do planeta sofra tamanho caos interno. Entrementes, para o brasileiro, a corrupção crassa, as acusações de falsidade partidária e moral, bem como o total descrédito das instituições políticas nacionais servem como uma resposta completa  e plenamente aceita por todos.

Em verdade, o Brasil deixou de lado sua antiga letargia política, e motivado pela expansão dos protestos em todo o mundo, veiculados diariamente nos noticiários, passou a agir de acordo com seu interesse, que é o de tentar mudar a política nacional e limpá-la de seu estigma de corrupção (SALLES, 2013). Os movimentos que no Brasil foram difundidos nas redes sociais tomaram corpo e foram ás ruas, unindo os manifestantes do continente com os do Egito, Síria, Líbia e Europa.

 7.      Conclusões.

 Em todas essas revoluções, é possível notarmos algumas semelhanças. Em primeiro lugar, elas começam inevitavelmente de baixo, das classes populares e descontentes, e depois se inflamam em direção ao centro do poder, levando em sua esteira os demais membros do estrato social. A causa central que as move, é, em geral, semelhante: falta de perspectiva de vida, em especial para a juventude, a existência de um regime político desacreditado, violência da polícia, que não distingue protestos pacíficos da desordem e um grande acúmulo de ressentimentos contra a ordem social estabelecida.

Curiosamente, conforme viemos dizendo no decorrer deste trabalho, esses foram os mesmo fatores que levaram á eclosão das revoltas dos séculos XVIII e XIX. Ademais, também já mencionamos um dos dois grandes diferenciais das revoltas modernas, que é o uso intensivo da mídia social como meio de propagar a idéia da revolução, o que inevitavelmente liga essas revoltas ao mundo globalizado da informação e das redes complexas. O outro diferencial, e que é de fato, um paradigma da política contemporânea, é a virtual inexistência da figura do líder. Diferentemente das movimentações sociais históricas, não se tem mais um chefe libertador, um Bolívar, um San Martín, um Zapata ou mesmo um Gandhi. Agora tem-se o povo comum, estudantes e trabalhadores, com seus cartazes e celulares com acesso a redes sociais. Em Londres e no Chile, a situação foi a mesma. Não existiu um líder dos universitários revoltosos de Santiago, nem um personagem central, mentor dos riots da capital britânica.

O que não se entende no momento é que as multidões consigam organizar-se sem um centro — e que agora o coletivo torna-se seu próprio chefe. Talvez a globalização possa ser o responsável por esse feito também, uma vez que, a grosso modo, o chefe era sempre o que possuía mais informação e tinha mais capacidade de ação, coisas que qualquer adolescente hoje consegue atingir em segundos com o clique do mouse. Logo, qualquer governo que queira responder adequadamente aos anseios dos seus povos que se encontram nas ruas, com caras pintadas, cartazes e bandeiras, precisa entender esse novo quociente tecnológico e informático. Mas acima de tudo, é preciso abrir mais espaço para a participação pública nas decisões de peso político. A época dos líderes déspotas e vitalícios vem chegando a um fim, e esse processo não tem perspectiva de mudar a longo prazo. Como disse FERABOLLI a respeito da Primavera árabe,

"O que há de  irreversível na nova dinâmica instaurada pela Primavera Árabe é uma percepção de que um novo contrato  social é necessário não só entre os governantes e as populações árabes como entre os Estados árabes  e  a  comunidade  internacional (FERABOLLI, 2012, p.102)."

É possível parafrasear as palavras da autora sem prejudicar em nada o seu sentido, se dissermos que esse novo contrato social é necessário não apenas no Oriente Médio, mas também no Brasil e em diversos outros Estados da América Latina, Ásia e Europa. Sem uma solução política, de reformas de base, abrangentes e igualitárias, é improvável colocar um fim ao descontentamento. Como na Primavera dos Povos, o cidadão comum quer deixar claro aos seus governos que tem voz, e quer ser ouvido.

O que temos com certeza até o momento, é que a primavera árabe e seus similares no mundo estão traçando um novo cenário político global, o qual permanece anárquico por excelência e unipolar. Mas a onda democrática e popular, o despertar dos países marginalizados e a ascensão de povos revoltosos sem líderes nos mostra que o mundo segue mudando e que a perspectiva tende a ficar cada vez mais nublada em relação ao futuro; uma vez que novas tecnologias continuam a mudar nossos comportamentos coletivos.  

Quem sabe estejamos vivendo o limiar de uma nova era, e historiadores num futuro próximo irão classificar esse momento como um divisor de épocas, o qual ainda não tem nome e que virá depois da contemporaneidade, como a era do governo coletivo, do Estado plural e da revolução pela informação. Se viveremos para comprovar essa tese, não podemos ter certeza, mas o inevitável é que as mudanças ocorram num ritmo cada vez mais acelerado.

 Referências

BLOGUEIROS revelam várias caras e causas de protestos. BBC Brasil. Brasília, 27 de junho de 2013. Disponível em:                     <<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/06/130626_palanque_novo_protestos_bg.shtml>>. Página visitada em 02 de agosto de 2013.

 ESTUDIANTES vuelven a protestar en Chile. El Tiempo (Equador): Cuenca, 02 de agosto de 2013. Disponível em: <<http://www.eltiempo.com.ec/noticias-cuenca/123505-estudiantes-vuelven-a-protestar-en-chile/ >>. Página visitada em 02 de agosto de 2013.

 FERABOLLI, Silvia. Entre a revolução e o consenso: os rumos da Primavera Árabe. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 51, p. 101-109, jan./jun. 2012. Disponível em: <<http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos>>. Página visitada em 01 de agosto de 2013.

 FRIEDMAN, Thomas L. O mundo é plano: uma breve história do século XXI. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 471 p.

 HOBSBAWM, Eric John. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 19. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra Ltda, 2005. 464 p.

 HOBSBAWM, Eric John. A era dos Impérios: Europa 1875-1914. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra Ltda, 2003. 521 p.

 HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, [1997]. 455 p.

 JUAN, Arias. ¿Por qué Brasil y ahora? El País, 17/06/2013. Disponível em: <<http://internacional.elpais.com/internacional/2013/06/17/actualidad/1371432413_199966.html>>

 LULA, Luiz Inácio da Silva. The message of Brazil’s youth. New York Times, 16 de julho de 2013. New York, NY, USA. Disponível em: <<http://www.nytimes.com/2013/07/17/opinion/global/lula-da-silva-the-message-of-brazils-youth.html?_r=1&>>. Página visitada em 01 de agosto de 2013.

 MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Vitória, 1956. 108 p. (Biblioteca da nova cultura; 11).

 MEGALOUDI, Frangkiska. Growing Police Brutality in Greece: The Hidden Face of the Crisis. The Blog:  08 de fevereiro de 2013. Disponível em: <<http://www.huffingtonpost.co.uk/fragkiska-megaloudi/growing-police-brutality-in-greece_b_2636529.html>>. Página visitada em 02 de agosto de 2013.

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 NEGRI, Antônio; HARDT, Michael. Árabes desbravam uma nova democracia. São Paulo, 25 de fevereiro de 2011. Disponível em: <<http://www.outraspalavras.net/2011/02/25/arabes-desbravam-uma-nova-democracia/>> Página visitada em 02 de agosto de 2013

 POLÍCIA MILITAR utiliza violência para reprimir protesto em São Paulo. Bom Dia Brasil (Globo.com). 14 de junho de 2013. Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: <<http://glo.bo/1445zOq>>. Página visitada em 02 de agosto de 2013.

 ROCHE, Alexandre. Tensões da Primavera do mundo árabe-sunita: entre o wahhabismo conservador e o espírito crítico, entre a política do petróleo e a independência econômica. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 51, p. 47-56, jan./jun. 2012. Disponível em: <<http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos>>. Página visitada em 01 de agosto de 2013.

 ROMERO, Simon. Brazil’s Leftist Ruling Party, Born of Protests, Is Perplexed by Revolt. New York Times, 19 de junho de 2013. Disponível em: <<http://www.nytimes.com/2013/06/20/world/americas/brazil-protests.html?hp&_r=0>>. Página visitada em 01 de agosto de 213.

 ROHTER, Larry. Brasil on the Rise: The history of a country transformed. New York: Palgrave Macmillan. 2012, 292 p.

 SALLES, Ygor. Corrupção é principal motivação de manifestantes em SP, diz Datafolha. São Paulo: Folha de São Paulo. 21 de junho de 2013.  Disponível em: <<http://folha.com/no1299344>>. Página visitada em 02 de agosto de 2013.

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[i]   Bacharel em Relações Internacionais, Pós Graduado em Geopolítica e mestrando do PPGFIL da Universidae de Caxias do Sul - UCS.

 [ii]  Um dos líderes dos farrapos gaúchos, o Italiano Giuseppe Garibaldi, inclusive retornaria à Itália em 1848 para auxiliar seus compatriotas primaveris em luta contra o governo e se tornaria elemento essencial na unificação italiana, junto com o ativista G. Mazzini.

 [iii]  Convencionou-se chamar como Primavera de Praga o período de transformações sócio-políticas da Tchecoslováquia durante a época de sua dominação pela União Soviética. O evento ocorreu em 1968, quando Alexander Dubček chegou ao poder, onde permaneceu por sete meses. No mesmo ano os membros do Pacto de Varsóvia invadiram o país para interromper as reformas de Dubček, o qual lutava pela desovietização da economia, por democracia e pela liberdade de imprensa. A Primavera de Praga imortalizou-se na literatura com Milan Kundera em “A Insustentável Leveza do Ser”, um dos maiores best sellers da época.

 [iv]  O Professor Huntington escreveu em 1996 que o equilíbrio de poder entre as civilizações está se rapidamente se deslocando do ocidente para o oriente, e que as culturas regionais tenderiam a se auto afirmar e buscar seu papel no cenário internacional. Suas previsões mostraram ser das mais acertadas e coerentes no que tange à política do início do século XXI em especial em relação a atuação econômica, política e militar das civilizações asiáticas. Nesse contexto, o choque de civilizações ocorre entre o velho mundo, representado pelo eixo Europa-América e novo mundo que emerge, multifacetado cultural e religiosamente, e perigosamente armado com arsenais de destruição em massa e economias trilionárias.

 [v]  Recentemente o ex-secretário geral da ONU, Koffi Annan, renunciou ao posto de porta voz da entidade nas conversações de paz com o governo de Assad. A Síria vive em estado de Guerra civil desde março de 2011.

 [vi]  Em noticiário nacional, foi dito que o resultado da ação policial nas ruas de São Paulo transformou o local em um cenário de guerra, com dezenas de pessoas feridas e agressões desnecessárias contra grupos pacifistas. Ver (POLICIA MILITAR, 2013).