Pressupostos para a compreensão
Por Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo | 03/06/2012 | FilosofiaA interpretação gramatical e histórica dos textos, cientificamente designada por exegese, tem uma íntima ligação à Hermenêutica, no sentido de permitir a compreensão dos mesmos. A faculdade de interpretação não é, porém, alheia ao problema de entendimentos incorretos, daí que a compreensão se tenha tornado num processo de análise e explicitação do texto.
A génese da Hermenêutica está, portanto, intimamente associada à ideia inicial de exegese, e hoje constitui uma indiscutível exigência de interpretação universal, quaisquer que sejam as culturas, ideologias e sistemas.
A explicitação do que diz o texto, concretiza-se numa estrutura circular que implica, simultaneamente, a pré-compreensão – experiência acumulada, pré-conceitos – e o horizonte – Texto (objeto) -, sendo desencadeada pela interpretação – dialética pergunta/resposta. Existe compreensão quando há um entender-se com…, quando se dá uma fusão de horizontes, entre a Hermenêutica e o que o texto revela.
O círculo hermenêutico: o passado – pré-compreensão, tradição -; o presente – compreensão atual, horizonte do interpretante –; e o futuro – horizonte antecipado -, são os três vetores que definem e caracterizam o círculo hermenêutico, no qual se encontra objetivada a compreensão. O objeto histórico (texto) é inteligível porque se põe em relação com o intérprete, através de um fundo temporal e linguístico que permite a comunicabilidade, o relacionamento e o entendimento.
A hermenêutica tem, forçosamente, de partir do facto de que toda a compreensão está vinculada a uma tradição, ou seja, a tradição é uma transmissão efetiva, pela qual os objetos históricos têm uma influência na nossa consciência presente e numa certa antecipação do futuro. Sem tradição não há condições para compreender, porque não se pode anular a distância temporal, pelo contrário, constitui o meio pelo qual se revela o sentido de uma coisa em toda a sua plenitude, ou por outras palavras, não se verifica o facto consumado, mas um processo infinito.
A historicidade e a existencialidade da experiência humana no seu mundo relacional (relação de pertença), podem construir a perspectiva pela qual se aborda o presente da compreensão, embora esta não se remeta única e exclusivamente a tal projecto.
Tradição e Cultura são aspectos do mesmo enquadramento humano no mundo, porque, efetivamente, a cultura acumula-se pela tradição, pela experiência, pelo intercâmbio entre os povos, ela é, afinal, o modo de ser, agir e pensar de um povo e, só na posse desse conhecimento, tão rico e profundo, é que a compreensão se torna possível. A cultura é, acima de tudo, um estudo prolongado, sempre renovado, sempre atualizado aos seus temas, no contexto histórico-social.
Na sua base estão sempre pressupostos, é impossível qualquer captação sem algo previamente dado, na medida em que a ausência de preconceitos e pressupostos, parece tornar-se incomportável com o modo como a compreensão opera, porque ela, além de ser uma apropriação do sentido de um texto, é, também, compreensão realizada por alguém inserido no seu próprio contexto histórico-cultural que, afinal, lê e interpreta com os seus próprios pré-conceitos. Neste aspecto, a atividade de interpretar envolve algo de ontológico, algo do seu próprio ser integrado numa cultura.
a) Perspectivas Contemporâneas – A compreensão não pode entender-se como um método, como um processo subjetivo e psicológico do homem, face a um objecto mas, pelo contrário, como um modo de ser do próprio homem.
Não negar a importância da formulação dos princípios interpretativos corretos e, saber como é possível a compreensão, não apenas nas humanidades, mas em toda a experiência humana no mundo.
Numa outra abordagem, verifica-se uma inversão na relação epistemologia- -ontologia, ou seja, a compreensão passa da psicologia à ontologia (ao mundo), pretende explicitar a estrutura ontológica, na qual se suportam as ciências da natureza e as ciências humanas, e assim assiste-se à passagem duma compreensão parcial (ciências humanas) duma compreensão histórica, separada de uma compreensão científica, para uma compreensão ontológica.
A experiência ontológica que o homem tem do seu mundo, fundamenta o “círculo hermenêutico”, implicado na compreensão, porque: «A situação fundamental do homem no mundo pode desenvolver-se em termos de implicação e explicitação e, o chamado “círculo hermenêutico” quer designar esta situação fundamental do homem.» (ORTIZ-OSÉS, 1983:75).
A estrutura dialética não é a do sujeito/objecto, mas a de mundo e homem, porque a peculiaridade do homem não se coloca na mera inteligência, mas no seu entendimento (compreensão), isto quer dizer que a postura do homem no seu mundo não é de inexperiência (tábua rasa, ponto zero), mas de portador de uma pré-compreensão da realidade, o homem compreende: «A partir da própria experiência auto-interpretativa humana» (Ibid:76).
Com efeito, o “círculo hermenêutico” mostra que a antecipação de um horizonte depende, efetivamente, do passado. O compreender será atual, formulando o horizonte do presente, em comunicação efetiva com a tradição, o que denota que não há compreensão. Sem os pressupostos (ligação matriarcal) que existe por detrás de tudo.
Compreende-se através de uma constante referência à experiência vivida (ontologia), na medida em que se compreende sempre a partir do nosso próprio horizonte. A compreensão pressupõe sempre um movimento às coisas, ao mundo, às origens: «Uma teoria da compreensão torna-se extremamente significativa quando considera a experiência vivida – o evento da compreensão – como seu ponto de partida.» (PALMER, 1969:76-77), e o pensamento torna-se uma fenomenologia deste evento.
b) A linguagem Envolvida na Compreensão – Na verdade, a compreensão envolve sempre a linguagem, confrontação com um outro horizonte humano, um ato de penetração histórica e, exatamente por isso, o hermeneuta também se ocupa de uma teoria da compreensão linguística e histórica, tal como funciona na interpretação do texto.
Com efeito: «Compreender é uma operação essencialmente referencial; compreende-se algo quando se compara com algo que já se conhece. O homem não realiza o seu conhecimento a partir do zero, mas por meio de uma reestruturação, correção e integração dos seus próprios ‘a prioris’ e ‘a posterioris’, por isso a interpretação é um conhecimento simultaneamente: reconstrutivo e integrativo. (cf. ORTIZ-OSÉS, op. cit.)
O processo que permite a tensão presente/passado, a dialéctica pergunta/resposta, a fusão de horizontes, a revelação ontológica é, precisamente, a linguagem. Esta é o meio em que a tradição se esconde e é transmitida. Toda a experiência ocorre na e pela linguagem, há como que um acordo ou apalavramento originário na constituição linguística do mundo.
É neste apalavramento linguístico que se encontra a condição “sine qua non” para toda a comunicação e compreensão: «Uma antropologia que reconhece que a condição humana repousa neste acordo profundo pode, então, interpretar em função dele, a variedade de discursos sobre o homem, aliás, engendrados e geridos pela natureza dialógica deste acordo.» (ORTIZ-OSÉS, 13).
Portanto, a pertença e a participação na linguagem, como meio da experiência no mundo é a verdadeira base da experiência hermenêutica. Esta, encontra a sua total realização na condição da linguagem, é uma compilação do passado, na medida em que ouvir é um poder muito maior do que ver: «A linguagem é finita e histórica, é um repositório e um condutor da experiência do ser que se tornou linguagem no passado. A linguagem tem que nos levar a compreender o texto, a tarefa da Hermenêutica é tomar a sério a linguicidade da linguagem e da experiência e desenvolver uma Hermenêutica verdadeiramente histórica.» (PALMER, 1969:215)
c) Estrutura Histórica da Compreensão - Seguramente que a compreensão possui uma estrutura intrinsecamente histórica e «… não precisamos cair numa atitude psicologizante para defender que a compreensão não pode ser concebida independentemente das relações significativas que tem com a nossa experiência anterior» (PALMEIR, 1969:102), porque esta, como acto histórico, está sempre relacionada com o presente.
Seria demasiado ingénuo falar-se de interpretações objetivamente válidas e rigorosas, porque isso implicaria ser possível uma compreensão que partisse de um ponto de vista exterior à História. O passado não se nos pode opor como objecto de interesse puramente arqueológico, porque a auto-interpretação do sujeito é apenas uma luz trémula, na corrente fechada da vida histórica, daí que os juízos prévios do indivíduo sejam mais que meros juízos: eles são a realidade histórica do ser.
Os juízos prévios traduzem a capacidade que temos para compreender a história, porque dentro ou fora das ciências não pode haver compreensão sem pressupostos, resultantes da tradição em que nos inserimos.
A tensão presente/passado é, em si mesma, essencial e frutífera em Hermenêutica. A distância temporal tem, simultaneamente, uma função negativa e positiva, porque tanto permite a eliminação de juízos prévios, como provoca o aparecimento daqueles que nos levam a uma compreensão verdadeira. Os pressupostos não são absolutos, antes sujeitos a mudança e são positivos quando conduzem à compreensão; negativos quando originam mal entendimento.
d) Dialética Questão/Solução, Pretérito/Presente – Qualquer que seja a tentativa de compreender, ela implica, necessariamente, a dialética pergunta/resposta, pelo que entender, significa, precisamente, ajustar permanentemente, a pergunta, ou seja, pôr em jogo os pressupostos próprios para melhor formular a pergunta o que envolve um jogo dialético entre leitor e texto, que faz parte da experiência mais originária do homem, cujo modo de ser é compreender.
Assim, ao interpretar o objecto (texto) o interpretante parte da sua experiência, que a coloca em jogo, por isso, os objetos históricos e os seus efeitos, participam e influenciam o presente, isto é, a compreensão não é uma atividade subjetiva (romantismo), mas uma inserção no processo de transmissão. A experiência hermenêutica implica, antes de mais, a participação e a pertença a uma tradição cultural, nasce da relação entre o familiar (pré-compreensão) e o estranho (texto).
Como ser no mundo, o homem tem, forçosamente, um comportamento perante esse mundo e que inclui diálogo. É este diálogo que faz para além do ambiente, o mundo do homem. Em consequência, o homem encontra-se numa relação de pertença para com a sua experiência originária do mundo: não é sem o que já foi, sem o que já viveu e experimentou, não é sem a experiência acumulada por si e seus antepassados.
A sua experiência hermenêutica realiza-se dentro de uma tradição, numa atitude de escuta e interpretação. A estrutura dessa experiência assenta no acontecer da linguagem, inserta numa tradição cultural. A História é a que primeiramente interpreta. Importa trazer à linguagem os princípios determinantes da vivência cultural do homem, o qual vive numa relação de pertença com a dialética passado/presente, pergunta/resposta, pondo em confronto os pré-conceitos do interpretante.
Ao falar-se da tradição cultural, como condição do ato de compreender, é interrogar-se pelos últimos pressupostos, que tornam possível o entender e a verdade enquanto tal. Sem a cultura não é mais possível ao homem integrar-se num processo evolutivo, qualquer que seja o apadrinhamento de tal processo, quaisquer que se verifiquem as ideologias que lhe estão subjacentes. O analfabeto, o inculto, tal como o imbecil, não compreendem a verdade do texto, precisamente porque lhes falta o alimento cultural.
Bibliografia
ORTIZ-OSÉS, Andrés, (1983). Antropologia Hermenêutica. Trad. L. Ferreira dos Santos. Braga: Eros.
PALMER, Richard E., (1969). Hermenêutica. Trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70
Venade – Caminha – Portugal, 2012
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
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