Célio dos Santos Fagundes

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            Se qualquer pessoa olhar para os muros, principalmente de centros urbanos, possivelmente verá riscos, desenhos ou, como costumam ser chamados: pichações. Estes podem ser encarados como sujeira/vandalismo ou como arte, dependendo de quem está olhando. Contudo, há algo de inevitável nessas marcas: elas expõem saberes, modos de vida, realidades sociais historicamente encobertas pelo manto da invisibilidade.

            Miguel Arroyo (2014) aponta que os territórios de grupos populares têm sido jogados para escanteio, considerados como inexistentes a partir do momento em que se nega direitos básicos como, por exemplo, água, saneamento básico e transporte. Aponta ainda que, com isto, a teoria pedagógica não conseguiu pensar em processos pedagógicos de aniquilamento dessas inexistências e, ainda, não consegue reconhecer as “Outras Pedagogias emancipatórias com que afirmam suas existências.” (p.50).

            Para compreender a importância de manifestações culturais, como as pichações, na produção de subjetividade e na formação de jovens faz-se necessário explorar a noção de saber local enquanto “processos históricos e de territorialização dos diversos grupos na luta por sua autoprodução e autopreservação”, como expõe Pinto (2005). É importante que esta noção esteja em evidência para compreender as formas de resistir à invisibilidade imposta e à negação de tradições enquanto práticas pedagógicas.

Nessa perspectiva, desenvolver uma escuta sensível para compreender essas expressões culturais contemporâneas e valorizá-las representa um processo de abertura que, possivelmente, criará condições para o diálogo que é o que parece está sendo proposto por esses sujeitos.

            Neste projeto, busca-se identificar as práticas educativas existentes no cotidiano de jovens em situação de risco e vulnerabilidade social que tenham como referência a noção de saber local, com vistas a valorizar formas de convivência a partir das referências culturais desses sujeitos. Ademais, faz-se necessário dialogar também com as discussões propostas pelos estudos culturais “como experiência vivida de um grupo social” (SILVA, 1999, p 133).

A noção de saber local poderia contribuir para a construção de práticas educativas voltadas ao trabalho com jovens em situação de risco e vulnerabilidade social, no sentido de proporcionar formas de convivência e diálogos que valorizem suas referências culturais.

Tal noção se fundamenta nas discussões atuais sobre cultura, que tem em Homi Bhabha (2005, p.23) um de seus expoentes, o qual discute sobre os locais da cultura, argumentando que “nossa autopresença mais imediata, nossa imagem pública vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias”. Nessa mesma direção, é possível dialogar com Hall (2000) quando analisa o que ele chama de crise de identidade e seus deslocamentos ocorridos no contexto da globalização da cultura.

Apesar de parecer fora dessas discussões acima, o conceito de resistência apresentado por Giroux também pode ser buscado para que se possa produzir uma aproximação entre este e autores pós-estruturalistas. Assim, a teoria da resistência poderá ajudar a compreender as diversas “práticas exercidas por grupos subordinados que se expressam sob a forma de oposição, numa tentativa de barrar a dominação, de não perder sua identidade e seus costumes” (LEITE; ANDRÉ, 1986, p. 45).

Há que se considerar as práticas educativas desenvolvidas em espaços educativos não-formais - como a rua, as organizações não governamentais - que são baseadas na valorização das referências locais e nas raízes culturais de jovens que vivem em situação de risco e vulnerabilidade social. De que modo têm contribuído para a sua formação e para a  educação em massa já que tais manifestações são de massa pois inserem no cotidiano da cidade.

            Investigar práticas educativas desenvolvidas em espaços educativos não-formais - como a rua e organizações não governamentais - que são baseadas na valorização das referências locais e nas raízes culturais de jovens que vivem em situação de risco e vulnerabilidade social, analisando de que forma têm contribuído para a sua formação.

            Mais que urgente é preciso analisar as concepções de educação e cultura presentes nas práticas educativas desenvolvidas em espaços não formais de educação que atendem crianças em situação de vulnerabilidade;

Descrever algumas atividades realizadas nos espaços a serem observados que incluam manifestações culturais que influenciam a formação de jovens em situação de risco e vulnerabilidade social através da valorização de suas raízes e/ou ancestralidade;

A aula continua a ser a vaca sagrada da pedagogia, afirma José Pacheco em “Entre Margens” – Crônicas publicadas na Revista Educação, entre 2007 e 2009. Partindo desta frase, compreendendo que esta afirmação implica que há outras formas de fazer escola que fogem do modelo tradicional, ou até mesmo dos modelos alternativos de escola que tem surgido (mas que estão ainda sob os mesmos moldes), este projeto busca alcançar as formas de socialização informais que tem sido a base da formação de muitos jovens em situação de risco e vulnerabilidade social.

            Para tanto, é importante compreender que situação de risco e vulnerabilidade é esta nas quais estão envolvidos. O conceito aqui utilizado irá se aproximar do que Rosane Janczura (2012) apresenta como uma conclusão chegada por Carneiro e Veiga (2004), cujo entendimento de risco e vulnerabilidade remetem às noções de carências e de exclusão.

Pessoas, famílias e comunidades são vulneráveis quando não dispõem de recursos materiais e imateriais para enfrentar com sucesso os riscos a que são ou estão submetidas, nem de capacidades para adotar cursos de ações/estratégias que lhes possibilitem alcançar patamares razoáveis de segurança pessoal/coletiva. (Rosane Janczura, 2012, p. 302)

Contudo, identificar quais situações são essas não é o objetivo deste trabalho, esta noção servirá como forma de selecionar os coletivos que serão trabalhados.

            O objetivo real orienta-se para a identificação e valorização das potencialidades de vida existentes nas manifestações culturais nas quais estes jovens estão envolvidos em algum nível. Para entender quais são estas manifestações é preciso explorar a noção de cultura.

            Cultura, para Vorraber, Hessel e Sommer (2003), “transmuta-se de um conceito impregnado de distinção, hierarquia e elitismos segregacionistas para um outro eixo de significados em que se abre um amplo leque de sentidos cambiantes e versáteis” (p.36). Ou seja, deixa de ser sinônimo de erudito, de padrões estéticos elitizados e passa a conter o “gosto das multidões” (p.36). Segundo estes autores, quando o termo é utilizado no plural e é adjetivado, possibilita novos e diferentes sentidos, por exemplo, cultura de massa, culturas juvenis e cultura surda. Com isto, percebe-se que o conceito engloba diversidade e singularidade.

            Ainda seguindo a lógica dos autores citados acima, tem-se que

Um noticiário de televisão, as imagens, gráficos etc. de um livro didático ou as músicas de um grupo de rock, por exemplo, não são apenas manifestações culturais. Eles são artefatos produtivos, são práticas de representação, inventam sentidos que circulam e operam nas arenas culturais onde o significado é negociado e as hierarquias são estabelecidas. (p.38)

Percebe-se, então, que é na esfera cultural que ocorre a luta pela significação, através das tentativas de imposição dos grupos subordinados frente à injunção de significados que fundamentam os interesses de grupos privilegiados (HALL apud VORRABER, HESSEL E SOMMER, 2003).

            Silva (2014), em sua dissertação de mestrado, apresenta a história e a importância do hip-hop no Brasil, na Bahia e em Feira de Santana. Neste trabalho, uma das pessoas entrevistadas relata que o seu primeiro contato com este estilo musical foi na escola através da proximidade com outros colegas. Um desses colegas já estava envolvido com a discussão das relações raciais e construía junto com a coordenação da escola ações pedagógicas relativas à identidade negra. A história da cultura hip-hop na Bahia ganhou força a partir dos anos 1990 través de articulações entre grupos organizados e a comunidade, os quais buscavam promover trabalhos sociais e oficinas educativas, tendo em vista a transformação da realidade local e a construção da cidadania (Silva, 2014).

Foi por meio desse som que discursos críticos e reflexivos eram construídos, questionando um sistema de desigualdades sociais e marginalização da periferia. Silva (2014) afirma, ainda, que “o hip-hop assumiu seu lugar social desenvolvendo ações para resinificar o estereótipo de marginalidade, atuando como porta voz da periferia” (p.44).

            João Wainer (2005) relata que acha bonito o ato de pichar e o considera como um efeito colateral do sistema.

É a devolução, com ódio, de tudo de ruim que foi imposto ao jovem da periferia. Muitos garotos tratados como marginais nas delegacias, mesmo quando são vítimas, ridicularizados em escolas públicas ruins e obrigados a viajar num sistema de transporte de péssima qualidade devolvem essa raiva na forma de assaltos, sequestros e crimes. O pichador faz isso de uma maneira pacífica. (...) Os jovens da periferia das grandes cidades precisam aprender a canalizar esse ódio para atividades não violentas, como o rap, o grafite e até mesmo as pichações – que também podem ser consideradas um esporte de ação, tamanha a descarga de adrenalina que libera em seus praticantes. (p. 45)

 

Considerando a opinião de Wainer, é importante reconhecer e valorizar as atividades de cada território que conseguem proporcionar a jovens que não se encaixam ou não se sentem representados em um espaço institucionalizado modos de viver que não os anulem, mas que os tornem protagonistas. Arroyo (2014) pontua que é válido ressaltar que pedagogias das ações coletivas não ficam limitadas a manter presença no sistema escolar, nos centros de produção e validação do conhecimento, mas estão presentes na produção cultural, política, intelectual e pedagógica da humanidade.

Sabe-se que, ainda de acordo com Arroyo (2014), “Os movimentos sociais e jovens geram um saber de si e um saber-se para fora. Um saber político que alarga seu saber local e se amplia.” (p.79). Isto é, os sujeitos que participam nesses movimentos vão se dotando de saberes, valores e estratégias para superar os limites a partir de um entendimento de coletivo fundamentado no saber local. A luta, como expõe Arroyo (2014) é

 

Por outro projeto de sociedade, de cidade e de campo por outras relações sociais de produção. Relembram as teorias pedagógicas quão determinantes são as condições de sobrevivência para no constituir-nos seres humanos, culturais, éticos, identitários (p.81).

 

            Do ponto de vista da sua abordagem e objetivos deste trabalho abordar o tema em forma de pesquisa. A pesquisa qualitativa seria indicada quando se busca compreender o mundo da experiência ou as ações humanas sem se prender a uma explicação causal. Assim, o que se propõe neste projeto é produzir conhecimentos sobre um fenômeno educativo e cultural do contexto brasileiro e baiano a partir da interpretação da pesquisadora e das falas dos sujeitos pesquisados e informações documentais. Segundo Bogdan e Biklen, (1994, p.48), “busca refletir e analisar as relações percebidas, sem divorciar o ato, a palavra ou o gesto do seu contexto para não perder de vista o significado.

A investigação documental; bibliográfica - constituída principalmente de livros, artigos de revistas especializadas, reportagens, sites, etc; e observação participante foi utilizada para este trabalho de campo com vivência e registro em diário de campo de percepções no cotidiano das entidades pesquisadas.

            Como primeiro procedimento básico, será realizada uma revisão bibliográfica a fim de conceituar os termos aqui utilizados e dar embasamento teórico para toda a pesquisa realizada. Também será utilizado o procedimento de investigação documental para identificar as ações dos grupos/coletivos/comunidades os quais apresentam algum tipo de manifestação artístico-cultural no município de Feira de Santana baseados em suas raízes/ancestralidades.

            Num segundo momento, é pertinente a vivência em campo com os grupos selecionados através da observação participante. Aqui, o registro principal será o diário de campo, entretanto poderá haver registros fotográficos caso seja autorizado pelos coletivos.

Os dados poderão ser analisados com auxílio da técnica de análise de conteúdo, especificamente a análise temática. Seguindo uma linha qualitativa, poderemos seguir pelo menos cinco passos, conforme proposto por Moraes (1999, p. 12): “preparação das informações; unitarização ou transformação do conteúdo em unidades; categorização ou classificação das unidades em categorias; descrição; Interpretação”.

A triangulação dos dados poderá ser feita através da saturação entre a revisão de literatura e as informações que emergirem dos dados coletados através de observação, documentos, entrevistas.

Reunidas as informações necessárias, será possível estabelecer relações entre a educação, a cultura e o saber local com os modos de vida de jovens em situação de risco e vulnerabilidade social, bem como compreender as especificidades que marcam a organização dos coletivos enquanto modos de resistências às intervenções de aniquilamento de suas referências artísticas-culturais formadoras de subjetividades as quais estão marginalizadas do sistema formal de ensino.

 

REFERÊNCIAS

 

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