ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DO PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL (LEI 11.343/06, ART.28): Despenalização, descriminalização da conduta?

Massell Barros

Thássyo Azevedo da Silva

RESUMO

Este trabalho se propõe a analisara Lei 11.343/06, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre drogas, atentando-se para uma reflexão crítica acerca do art.28 de tal lei, observando-se se houve despenalização, descriminalização da posse de droga para consumo próprio. Este posicionamento crítico se embasa ainda na análise da referida lei à luz de princípios penais,tais como da ofensividade, da alteralidade, princípio da insignificância e da subsidiariedade. A partir dessa conjectura, propondo-se também um olhar crítico acerca do paternalismo jurídico na questão, observar-se-á a lei de drogas, objetivando-se sua interpretação.

Introdução

É certo que a presença de drogas ilícitas no Brasil, sendo para fim de consumo próprio ou comercialização é preocupante. Por esse motivo, o país sempre precisou de uma legislação eficaz para poder combater esse mal. Em 21 de outubro de 1976 foi feita a Lei 6.368 que entre outros aspectos, previa no seu art.16 uma pena privativa de liberdade para o usuário que portava drogas, que variava de 6 meses à 2 anos. Desse modo, o mero usuário era tratado como um criminoso, pois era logo preso e não tinha chances de reabilitação.

Em agosto de 2006 foi sancionada a Lei 11.343 que revogou por completo a antiga lei de drogas e trouxe algumas mudanças, como por exemplo, a retirada da pena privativa de liberdade no caso de porte de drogas para consumo pessoal, como se pode ver no art. 28 da referida lei.

Com isso, analisando-se rapidamente a edição dessa nova Lei, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre drogas- SISNAD, dando-se especial atenção ao art. 28, poder-se-ia entender que houve um abrandamento por parte do legislativo no trato ao porte de drogas para consumo próprio. Contudo, a questão não é pacífica, havendo muitas discussões acerca da nova Lei, com bons argumentos que alegam tanto a descriminalização quanto a despenalização da conduta de portar drogas para consumo próprio.

Não obstante, são suscitadas também discussões doutrinárias acerca da Lei 11.343/06 e sua relação com os princípios penais como da ofensividade, lesividade, alteralidade, bem como os princípios da insignificância e da intervenção mínima. A análise de tais discussões é de relevante valor, pois envolvem princípios penais, que são bases do ordenamento jurídico pátrio.

Sendo assim, analisando-se finalmente o paternalismo jurídico e sua possível relação com a referida Lei, que instituiu o SistemaNacional de Políticas Públicas sobre drogas, analisar-se-á criticamente a Lei 11.343/06, atentando para seu art. 28, objetivando-se assim uma apreciação mais completa possível acerca da conduta de portar droga para consumo pessoal.

  1. Análise crítica ao art. 28 da Lei 11.343/06

É de fundamental importância que compreendamos primeiramente a conceituação acerca de termos como crime, descriminalização e despenalização, para que assim seja possível a análise acerca da Lei de drogas.

Conforme Nucci (2009), crime “é a conduta proibida por lei, sob ameaça de aplicação de pena, numa visão legislativa do fenômeno”. Ainda segundo a conceituação de crime, Capez (2003) leciona que “o conceito de crime resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal, e, portanto, considera-se infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando o seu conteúdo”.

Destarte, Luiz Flávio Gomes (2008) afirma que “descriminalizar significa retirar de algumas condutas o caráter de criminosas”. Ou seja, quando retirada a tipicidade de condutas anteriormente consideradas como tal, estar-se-á em verdade descriminalizando esta conduta. Entenda-se que tipicidade é a relação entre o fato e a descrição do ilícito penal, que é previsto em lei.

Para David André Costa Silva (2008), despenalizar “significa afastar a aplicação de uma pena”. Desta forma, observa-se que a partir do conceito de crime, extrai-se conceitos de despenalização e descriminalização, aonde estes dois últimos mostram-se claramente distintos.

Feitas as análises acima, é necessário que observemos também a Lei 11.343/06, bem como o art. 28 da referida lei, já que em tal dispositivo repousam grandes discussões acerca da Lei de drogas. Sabe-se que “a lei é a única fonte formal direta do Direito Penal” (MIRABETE, FABBRINI, 2007). Sendo assim, constata-se a importância da análise inicial acerca da letra da Lei.

A lei 11.343/06 “institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências”.

Além disso, deve-se observar o art. 28 da supracitada Lei;

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Com a edição da Lei 6.368/76, portanto, anterior á vigente Lei de drogas, deu-se maior importância ao combate às drogas. Contudo, no período de vigência da referida lei, “as drogas eram consideradas mais importantes que o motivo pelo qual os levou (portador da droga) a praticar tal ato, seja ele consumo ou dependência química” (ROSÁRIO, 2008).Com a disseminação da droga pelo território nacional, a lei mostrava-se cada vez menos eficaz.

Fora elaborada assim a Lei 11.409/2002, que abrandava as penas mais severas ao dependente químico.

“A nova lei buscou despenalizar e despriosionalizaro uso e o consumo de drogas, desde que o portador ou o usuário fosse encontrado com pequena quantidade de substância tóxica, o que não vingou com o veto total a esse capítulo pelo Presidente da República (HABIB, 2004)”.

Porém, diante do insucesso da Lei 11.409/2002, que teve muitos de seus dispositivos vetados, e da Lei 6.368/76, foi editada a Lei 11.343/06, com o objetivo de corrigir falhas originárias das anteriores leis, bem como tratar da prevenção e da repressão ao tráfico e ao uso de drogas.

Na nova Lei de drogas, a definição de “substância entorpecente” mudou, passando agora a ser utilizada a expressão “drogas”. O art. 1°, da Lei 11.343/06, em seu parágrafo único define,“para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo poder executivo da União”.

Não obstante, a análise crítica acerca da Lei 11.343/06 (Lei de drogas) engloba grande discussão no meio penal e social brasileiro, a saber, se houve despenalização ou descriminalização da conduta de portar droga para consumo pessoal.

O art. 28 da referida Lei afirma que quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para uso pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido à advertência acerca dos efeitos da droga, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Sendo assim, uma análise inicial poderia perfeitamente corroborar com a tese de que houve descriminalização “formal” da conduta, pois aquele que portar droga para consumo pessoal não mais incorrerá em prisão, sendo observada assim uma nova penalização com a nova lei antidrogas.

“(...) Descriminalizar significa tirar da conduta o caráter criminoso, mas mesmo assim este ainda irá possuir sanções a serem aplicadas no âmbito penal, trata-se de descriminalização formal, ou seja, a que tira o caráter criminoso, mas ainda permanece no âmbito do Direito Penal, em outras palavras, o fato deixa de ser considerado crime, mas continua com o seu caráter ilícito, tratando-se de uma infração sui generis (TOALDO; LOPES, 2006)”.

Assevera Raul Cervini (2007) que “a descriminalização é sinônimo de retirar formalmente ou de fato do âmbito do Direito Penal, certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas”.

“(...) a nova Lei de Drogas, no art. 28, descriminalizou a conduta da posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de de ‘infração penal’ porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem pena de prisão não se pode admitir a existência de infração ‘penal’ no nosso País (GOMES, 2007)”.

Neste caso, com os argumentos supracitados, a conduta de portar droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar para consumo pessoal foi descriminalizada formalmente, com a edição da nova lei antidrogas.

Contudo, observa-se que as sanções penais constantes no art. 28 são claramente penas alternativas, não negando-se que a conduta prevista no referido dispositivo continua tendo caráter criminoso, havendo assim em verdade que se falar apenas em “despenalização”.

“A posse de droga para consumo pessoal não está mais sujeita à pena de prisão. Doravante está sancionada com penas alternativas, que serão impostas pelos Juizados Criminais. Aliás, depois que a infração do artigo 16 passou para os Juizados Criminais, nenhum usuário mais foi condenado à pena de prisão, salvo em casos excepcionalíssimos” (GOMES, 2007).

  

Compreenda-se assim que a conduta em análise não está revestida de licitude, “pois da mesma maneira o usuário ou dependente responderão penalmente como incurso no artigo 28 da Lei de Drogas (ROSÁRIO, 2008)”.

“Ao contrário do que tentam apregoar alguns laxistas do Direito Penal dito Moderno, a conduta de quem “adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” [1] não foi descriminalizada e, assim, longe está de ter ocorrido o fenômeno da abolitio criminis” (ZAUPA, 2006).

Todavia, há quem entenda que não houve nem descriminalização, tampouco despenalização da conduta de trazer consigo ou adquirir para uso pessoal a droga. Conforme lecionam Greco Filho e Rassi (2008), “a Lei não descriminalizou nem despenalizou a conduta de trazer consigo ou adquirir para uso pessoal nem transformou em contravenção. Houve alterações, abrandamento, mas a conduta continua incriminada”.

Contudo,observam-se mais firmemente argumentos que corroboram com a tese de que em verdade houve despenalização da conduta em análise, uma vez que assim entende o STJ, bem como o STF, como pode ser observado mediante análise do Recurso Extraordinário a seguir.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO N° 430105 DE RIO DE JANEIRO. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE

“A Turma, resolvendo questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/06 (Nova Lei de Tóxicos não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art. 16 da Lei 6.368/76, julgou prejudicado recurso extraordinário em que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar conduta capitulada no art. 16 da Lei 6.368/76. Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal (...)”.

Há uma grande diferença nesta lei de drogas em relação ás anteriores, no trato penal com o usuário, dependente químico. Estes passaram a ser entendidos como sujeitos de direitos que necessitam de suporte, de ajuda.

Conforme se pode constatar, são tipificadas as condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo. Sendo assim, conforme bem preceitua Gama (2006), “não faz parte do tipo penal o fato de a pessoa ‘usar a droga’, mas as condutas periféricas ao consumo como adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo”.

  1. A influência do paternalismo na lei de drogas

É sabido que a legislação de um Estado nos moldes do nosso, a saber, um Estado Democrático de Direito, deve ser pautada em seus princípios básicos, devendo privilegiar assim a autonomia volitiva do agente, uma vez que a dignidade da pessoa humana é princípio básico, portanto norteador dos atos estatais. Porém, isso não se observa em alguns atos do Estado, inclusive neste, no que tange a edição da Lei 11.343/06, se mostrando assim um Estado paternalista.

Observe-se que as normas editadas em um Estado Democrático de Direito dependem de legitimidade, e tal legitimidade decorre da observância da vontade privada, ou seja, das particularidades dos sujeitos. Dessa forma, subsiste o ato volitivo do sujeito em face de ações paternalistas do Estado que, de forma protetiva, eiva a vontade do cidadão.

                            

“A problemática da legitimidade no específico campo das normas penais, mormenteas leis incriminadoras, choca-se às vezes com o fenômeno denominado paternalismo. Este figura como a postura ingerente na liberdade deliberativa do sujeito com vistas à manutenção de seu bem-estar ou evitar-lhe a causação de algum prejuízo. É a imposição de uma conduta para o próprio bem da pessoa ou para protegê-la de si mesma” (MARTINELLI, 2010).

                           

A conduta tipificada no art. 28 da Lei 11.343/06, a saber, portar droga para consumo pessoal, é punida pelo Estado. Contudo, o consumo de drogas prejudica o usuário, e sabe-se que o bem jurídico protegido pela Lei antidrogas é a saúde pública. Sendo assim, há uma conduta paternalista por parte do Estado no tocante ao dispositivo em análise, pois a saúde pública é bem jurídico difuso, e sabe-se que o consumo de drogas atinge a saúde de um agente, ou seja, afeta um particular.

As penas previstas no art. 28 àquele que adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo drogas sem autorização ou determinação legal são claramente restrições à conduta do usuário (advertência, prestação de serviço comunitário ou se submeter a programa educativo). Como entender este ato estatal, que com a edição da nova Lei de drogas (11.343/06) despenalizou a conduta, se mostrando contraditório, ao punir uma conduta sabidamente pessoal, ao passo que com a despenalização da conduta se mostrou de certa forma mais condicente com a conduta?

Desta forma, observa-se claramente que o Estado está ultrapassando a esfera de escolha do cidadão, havendo assim um flagrante paternalismo estatal.

“A crítica reside pertinentemente na intenção estatal de inserção e exercício depolíticas públicas de prevenção aos malefícios do uso contínuo e habitual de tóxicos, através de mecanismo de clara e inequívoca gravidade repressiva que maneja com a capacidade de escolha pessoal materializada na liberdade. É louvável e caroável que as políticas estatais sejam simétricas à manutenção do bem-estar da população, mas desde que facultem livremente a opção pela aceitação ou negação dessa ou daquela recomendação” (FERREIRA; SANTOS, 2011).

Ações estatais que busquem informar o sujeito acerca do malefício que o uso da droga causa à saúde do particular são claramente salutares e necessárias. Contudo, na medida em que o Estado interfere na esfera de escolha e arbítrio do cidadão, tal ato se torna ilegítimo, irregular, por configurar manifesto paternalismo estatal.

Os atos paternalistas no plano criminal são ilegítimos, uma vez que o Direito Penal deve ser baseado na mínima intervenção. Sendo assim, está ferindo o Princípio da intervenção estatal mínima.

REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 6° ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

FABBRINI, Renato N., MIRABETE, Julio Fabbrini; Manual de direito penal, volume 1: parte geral, arts. 1° a 120 do CP. 24 ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2007.

FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; SANTOS, Wisley Rodrigo dos. Um exame analítico acerca do paternalismo jurídico-penalna lei de drogas e seu antagonismo crítico à luz da autonomia da vontade pessoal. Disponível em: <http://www.cesumar.br/prppge/pesquisa/epcc2011/anais/wisley_rodrigo_dos_santos.pdf>. Acesso em: 18 outubro 2012.

GAMA, Ricardo Rodrigues. Nova Lei sobre Drogas - Lei 11.343/2006: comentada. 1° ed. Campinas: Russel Editores, 2006.

GOMES, Luiz Flavio. Lei de Drogas Comentada artigo por artigo. Lei 11.343/2006. 2° ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2007.

GRECO, Vicente Filho; RASSI, João Daniel. Lei de Drogas Anotada. 2° ed. Saraiva: 2008.

HABIB, Sergio. A nova lei de tóxicos e a despenalização do uso de drogas. Revista Jurídica Consulex, n 139, ano VI, pag. 103.

MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo jurídico-penal. 2010. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Departamento de Pós-Graduação em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia, São Paulo.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2007.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 9ª edição. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2009, p. 120.

Recurso Extraordinário n 430105 de Rio de Janeiro. Ministro Sepúlveda Pertence. 13. 02. 2007.

ROSÁRIO, Cynthia do. Lei antidrogas: descriminalização ou despenalização do porte de drogas para consumo pessoal, 2008.

SILVA, David André Costa. Do tratamento diferenciado dado ao usuário de drogas: medida despenalizadora mista. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8949> . Acesso em: 19 outubro 2012.

TOALDO, Adriane Medianeira; LOPES, Carina Deolinda da Silva. A Lei 11.343, de 26 de agosto de 2006: Considerações Gerais e legais a respeito do usuário de drogas e sua reinserção no meio social. Disponível em: http://www.lex.com.br/noticias/artigos/defaul.asp?artigo_id=1220983&dou=1. Acesso em: 20 outubro 2012.

ZAUPA, Fernando Martins. O art. 28 da Lei nº 11.343/06 (posse de droga para consumo pessoal) e suas repercussões no mundo jurídico e fático – uma visão não garantista.