PORQUÊ TRATAR A DOR?

António Lourenço Marques*

 Resumo:

 A dor e o sofrimento são experiências interligadas. Neste artigo, são definidos ambos os conceitos assim como alguns aspectos da fisiopatologia da dor, em particular, os que se relacionam com a plasticidade do sistema nervoso. São também descritas as implicações nefastas da dor não tratada nas várias dimensões do ser humano. Finalmente, referem-se as circunstâncias da formação da Unidade de Tratamento da Dor e Medicina Paliativa do Hospital do Fundão.

Summary:

 Pain and suffering are interconnected experiences. In this article, both concepts are defined as well as some aspects of pathophysiology of pain, in particular those related with the plasticity of nervous system. The harmfull implications of the unrelieved pain in the various dimensions of human being are also described. Finally, it refers to the foundation of Pain Relief and Palliative Care Unit of Hospital do Fundão.

 
 A LUTA CONTRA A DOR

A luta contra a dor constitui um movimento universal e perene do homem e representa um dos sustentáculos mais fortes do edifício maravilhoso da medicina. A lei “ninguém deve sofrer dor desnecessariamente”, que agora se proclama, concentra os sucessivos avanços, sempre difíceis e demorados, deste combate, e determina uma obrigação iniludível dos profissionais de saúde: enquanto promovem o tratamento das doenças têm também o dever de evitar a dor e o sofrimento desnecessários dos seus doentes.

É de realçar esta orientação incisiva da arte médica para o século XXI, como se estivéssemos insatisfeitos com a tendência tradicional da medicina orientada no sentido algo exclusivista da erradicação das doenças, entendidas estas como realidades demarcadas, com grande precisão, à luz de uma metodologia de cariz científico e com o recurso crescente de tecnologia apropriada.

Ora, na realidade, não há doenças mas sim pessoas doentes e, por isso, cada vez mais se entende que a assistência deve ser global, uma vez que a doença atinge, habitualmente, todas as dimensões do ser humano, isto é, os seus aspectos físicos, psíquicos, sociais e espirituais.

O tema presente é a dor, a queixa mais frequente daqueles que procuram o médico. É claro que este sintoma assinala a doença e, nesse sentido, é um indicador precioso. É, no entanto, uma experiência que envolve sofrimento, ou seja, um estado em que impera um sentimento global negativo sobre a própria vida, com decisiva repercussão na sua qualidade, quando a queixa se torna permanente.                                                          

 O QUE É A DOR     

Para nós, a melhor definição de dor continua a ser a proposta pela Associação Internacional para o Estudo da Dor, que a enuncia como “uma experiência sensitiva e emocional desagradável relacionada com uma lesão real ou potencial dos tecidos do corpo ou descrita nos termos de uma tal lesão”.

O termo inglês que lhe corresponde é “pain”, derivado da palavra latina “poena”, que significa castigo. É pois um vocábulo que reflecte um sentido de condenação, ou de punição através dos sentidos. Afinal, é algo que pertence à constituição delicada da biologia. Mas, realce-se também que, logo desde o alvor da consciência, o homem terá determinado uma luta sem tréguas à sua existência. A própria utilização de opiáceos para aliviar a dor, medida que consideramos já muito elaborada, teve a sua origem há mais de 4.250 anos.

Reconheçamos porém que, embora desagradável e talvez por isso, a dor não é absolutamente inútil. Não há dúvida que é uma das mais eficazes formas que a natureza encontrou para assinalar o irregular funcionamento do organismo, com vista à autodefesa e ao equilíbrio. Se não existisse tal sinal, a vida humana seria certamente muito mais frágil. Neste sentido, não será aconselhável a sua eliminação imediata e cega. Mas, logo que compreendidos o seu significado e a sua função, deve ser minimizada, tornando-a, pelo menos, suportável. E quando é inútil, decisivamente abolida.

Vejamos porquê. É uma experiência que influencia, como já se disse, a qualidade de vida dos próprios doentes. Anotemos algumas das suas implicações. Na esfera física, determina a diminuição da capacidade funcional, altera o sono repousante e pode causar náuseas e perda do apetite. No domínio psicológico, é geradora de ansiedade, medo, depressão e irritabilidade, diminui a satisfação de viver e pode provocar um esmagador sentimento de insegurança. Do ponto de vista social, prejudica o relacionamento interpessoal, afecta a actividade sexual e pode alterar a fisionomia do próprio doente, tornando desagradável a sua presença. Finalmente, na dimensão espiritual, agudiza o sofrimento, pode determinar crises angustiantes e atingir mesmo as crenças religiosas, conduzir ao desespero.

Compreende-se assim que o tratamento da dor e a suavização do sofrimento sejam objectivos centrais dos profissionais da medicina. E note-se que este propósito não se esgota apenas pelas implicações citadas. É que as investigações clínicas mais actuais reforçam a ideia de que há outras vantagens muito objectivas no tratamento da dor, em particular se este for feito de uma forma enérgica e regular, desde a sua primeira manifestação, de preferência, até, antes, quando se sabe que vai ocorrer.

 PREVENÇÃO DA DOR

Um dos campos mais promissores desta investigação tem a ver com a prevenção da dor, ou seja, com aquilo a que se chama analgesia preventiva. Está demonstrado que a intervenção analgésica, antes do estímulo doloroso actuar, pode ter benefícios certos, já que evita ou reduz, de forma marcada, a dor subsequente, a qual pode ser então tratada com medidas mais simples ou com doses menores de medicamentos. Este interessante fenómeno explica-se através do moderno conceito da “plasticidade do sistema nervoso”. Expliquemos melhor. As células nervosas, que são o suporte do fenómeno doloroso, podem sofrer alterações estruturais e funcionais permanentes, quando sujeitas a certos estímulos nocivos ou traumáticos. O sistema nervoso não está pré-programado, pelo que tais estímulos podem produzir alterações profundas da anatomia e do “ambiente” bioquímico que suporta os processos fisiológicos relacionados. São alterações ou “deformações” que, uma vez produzidas, vão persistir e influenciar decisivamente os processos dolorosos posteriores. Tal “plasticidade”, ou seja, a capacidade do sistema nervoso se modificar desta forma, permite acumular a sua memória, ampliando e reforçando as experiências subsequentes. Quer dizer, o sistema nervoso pode ficar mais sensível e a dor ser de maior intensidade. Perante estímulos intensamente dolorosos, como por exemplo nas incisões cirúrgicas, se tal “memória dolorosa” for prevenida ou minimizada pela administração prévia de analgésicos durante o acto da anestesia, depois da intervenção cirúrgica são necessárias menores quantidades de analgésicos e o doente, regra geral, tem um pós-operatório mais tranquilo.

As experiências em animais são conclusivas. Estímulos dolorosos muito intensos aplicados nos tecidos profundos do organismo, no laboratório, determinam hipersensibilidade aos estímulos posteriores. Mas se antes da aplicação dos estímulos, se forem administrados certos analgésicos, diminui drasticamente tal hiperexcitabilidade.

Sabe-se, por outro lado, que a dor pode diminuir a capacidade imunológica do indivíduo, facilitando e agravando as infecções e pode alterar as respostas fisiológicas normais perante o stress. A cicatrização das feridas parece ser também mais demorada nos doentes com dor não tratada.

MEMÓRIA DOLOROSA E DOR “ULTRAPASSADA”

Do que dissemos, podemos retirar uma conclusão: na presença de estímulos dolorosos (como, por exemplo, os desencadeados pelos tumores) se não houver medidas terapêuticas correctas logo que a dor começa a manifestar-se, a “memória dolorosa” inscrita no sistema nervoso dos doentes pode ficar comprometida, gerando-se situações de grande sofrimento, progressivamente mais difíceis de atenuar. Nestes casos, podemos falar em dor “ultrapassada ”, ou seja, em dor que já não cede ao tratamento convencional, quando o tempo de vida que resta é muito curto.

Infelizmente, há muitas doenças que cursam com dor. São particularmente dolorosos os cancros sólidos e a SIDA. Se a medicina não tivesse evoluído, cerca de 90% dos doentes, vítimas de tais enfermidades, quando em estádios avançados, sofreriam dores de moderadas a intensas.

Ora, hoje, o avanço da medicina da dor, com os seus aportes e contributos multidisciplinares, tornou virtualmente possível, tratar este sintoma, na quase totalidade dos casos, ou seja, em cifras para além dos 90%. Só que a realidade mostra que tais recursos benfazejos não são muitas vezes aplicados ou, então, são insuficientemente utilizados, pelo que um grande número de pessoas, no mundo, sofre desnecessariamente. A dor aguda não é tratada em quase metade das situações e a dor crónica ainda é mais sofrida. Há países pobres em que a dor do cancro, por exemplo, não é tratada em cerca de 90% dos doentes. Mesmo nos países desenvolvidos, só cerca de metade destes usufrui de correctas terapêuticas da dor. E, no mundo, morrem, por ano, muitos milhões de pessoas com esta doença. Em 1996, faleceram de cancro 6.346.000 indivíduos, e a OMS prevê, para o ano 2 000, cerca de 7 milhões de óbitos pela mesma causa (4 milhões de homens e 3.2 milhões de mulheres).

Se nos referirmos à SIDA, a prevalência da dor crónica e o panorama do seu tratamento é tanto ou mais desolador. Cerca de 50 a 60% dos doentes hospitalizados têm dor, que passa a atingir perto de 70%, quando no domicílio. Nas fases terminais, esta grandeza chega aos 97%. Quantos são tratados? O facto de existirem poucos estudos sobre o seu tratamento reflecte, provavelmente, a penúria de cuidados, pelo que não será exagerado afirmar que o fim destas vidas pode estar a ser, em muitos casos, verdadeiramente difícil e desumano. Em 1996, 1.5 milhão de indivíduos morreram, no mundo, por esta gravíssima infecção.

Também nos velhos o problema é preocupante. Um número estimado entre 25 a 50% das pessoas com mais de 65 anos, apresenta problemas de saúde que implicam o sintoma dor. Ora, há estudos que apontam, em países desenvolvidos, como por exemplo nos Estados Unidos, carência de tratamento em cerca 80% de tais doentes.

Por outro lado, no panorama geral, as crianças e as mulheres integram ainda, lamentavelmente, o grupo de pessoas que menos usufrui dos tratamentos da dor.

“A DOR PODE SIGNIFICAR A DIFERENÇA ENTRE A VIDA E A MORTE…”

Não tratar a dor, ou tratá-la de forma incorrecta, não tem, como vimos, qualquer vantagem. Um dos mais importantes investigadores modernos dos processos da dor, e um pioneiro da nova fase desta luta, o professor americano de Psicologia, Ronald Melzack, afirmou que devido ao grande impacto na morbilidade e na mortalidade dos doentes “a dor pode significar a diferença entre a vida e a morte”. Neste sentido, é bem conhecida a associação entre a dor e a depressão nervosa, e está definitivamente estabelecido que a dor é um importante factor do risco de manifestação da vontade de morrer e de suicídio.

Reafirma-se que a dor aguda e a dor ligada ao cancro e à SIDA, devido aos grandes avanços técnicos e farmacológicos, hoje disponíveis, podem ser eficazmente tratadas em quase todos os doentes. A utilização de opióides é a chave de ouro deste tratamento. E a abordagem multidisciplinar tem permitido inovadores e decisivos progressos, não só no conhecimento científico da dor, mas também nas possibilidades terapêuticas.

A UNIDADE TRATAMENTO DA DOR

 Lamentamos porém que, apesar destes êxitos e da importância do fenómeno, a indiferença pública sobre o tratamento da dor não seja uma raridade.

Quando há sete anos, em 1992, o Jornal do Fundão publicou a notícia e a imagem cruel de um homem, com a face destruída por um tumor, afastado da assistência numa pequena aldeia da Serra da Gardunha, espicaçou-se a indiferença. Surgiu nessa altura a Unidade de Tratamento da Dor do Hospital do Fundão, que aos poucos se foi implantando, num percurso difícil, mas que avançou, como provam os inúmeros doentes aqui tratados e os próprios acontecimentos de hoje, marcados pela visita, à Unidade, do Senhor Presidente da República. Também a recente interferência clarividente da Senhora Ministra da Saúde, no esclarecimento desta realidade do Hospital do Fundão, permitiu aclarar melhor o seu futuro. Continuamos a pensar que o texto da oficialização deve ter em conta o Serviço do Hospital que lhe tem dado o suporte médico especializado.

Não é fácil andar mais depressa neste combate urgente em prole do tratamento da dor inútil, em todos os casos, sem excepção, e em todas as pessoas, sem exclusão. São neste sentido as palavras do presidente da Associação Portuguesa para o Estudo da Dor, o Dr. Nestor Rodrigues, proferidas no dia 14 de Junho, em Lisboa, na cerimónia da comemoração do primeiro Dia Nacional da Luta contra a Dor, em boa hora criado pela Senhora Ministra da Saúde: “Algo tem de ser mudado, desenvolvido, orientado e pressionado. O que actualmente se passa em Portugal é uma vergonha no sentido humanitário e um escândalo no que se refere aos gastos em Saúde Pública”. Uma denúncia assim tem necessariamente que nos fazer pensar, para continuarmos a nossa luta e trabalho ainda com mais vigor.

Bibliografia:

Coniam S. W., and Diamond A. W. Practical Pain Management. Oxford University Press, 1994.

World Health Organization. Cancer Pain Relief. Geneva, 1996.

Woodruff R. . Cancer Pain. Asperula Pty Ltd, European Edition, Melbourne, Australia, 1997.

Assessment and Treatment of cancer Pain. Payne R., Patt R. C., Hill C. S, Editors. IASP Presse, 1998.

Oxford Textbook of Palliative Medicine, second edition. Doyle D., Hanks G. W. C., MacDonald :. Oxford Medical Publications, 1998.

        

(Comunicação proferida na Biblioteca do Hospital do Fundão, no dia 26 de Junho de 1999, na oportunidade da visita do Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio)

* Chefe de Serviço de Anestesiologia.

Unidade de Tratamento da Dor e Medicina Paliativa do Hospital do Fundão, Centro Hospitalar da Cova da Beira.