Por uma coabitação frutuosa entre as ONG, os Órgãos Locais de Estado e os Municípios no âmbito da descentralização governamental em Moçambique

Por: Iceu Carlos

Introdução

A cooperação e coordenação das instituições administrativas do Estado, nomeadamente, governos centrais, provinciais, distritais e autárquicos, e sua relação com as ONG's (Organizações NãoGovernamentais) no quadro da sua convivência, tem sido, ao que tudo indica, um dos temas com menor debate científico. Entretanto, para o caso de Moçambique, a legislação produzida pela Assembleia da República para regular os termos de relacionamento entre as três entidades (órgãos locais, municipais e ONG's) é remarcável. A título de exemplo, a Constituição da República de Moçambique, no seu artigo 262, estabelece que "os Órgãos Locais de Estado têm como função a representação do Estado ao nível local para a administração e o desenvolvimento do respectivo território e contribuem para a integração e unidade nacionais". De facto, tal representatividade abrange não só órgãos centrais, como também, provinciais, distritais, e até locais, postos administrativos e povoações. Quanto aos municípios, de acordo com a mesma constituição, pelo artigo 272, o Poder Local alicerça-se nas autarquias locais. Ademais, o decreto 11/2005, de 10 de Junho, no seu artigo 95, referente a cooperação entre os órgãos locais do Estado e as autarquias locais, estabelece que podem firmar entre si parcerias, sem prejuízo das suas competências respectivas, formas de cooperação, para melhorar a prossecução do interesse público, nomeadamente no domínio da programação e implantação das políticas sectoriais nacionais e locais de desenvolvimento. Aquele decreto alude que essa cooperação pode ser extensiva às outras organizações, como sejam as ONG's nacionais e estrangeiras, como o é o caso da presença da USAID no distrito e Município de Massinga. Contudo, pese embora haja tal avanço no plano legislativo, a prática desse relacionamento, no terreno, parece estar longe de ser profícua. Foi na base das realidades acima descritas e ciente de que não caberia uma discussão de todas as ONG existentes no país, que se desenvolveu o presente artigo, afim de se demostrar com evidências a influência da USAID na coabitação entre os órgãos locais e o município de Massinga, no âmbito do processo de descentralização em curso em Moçambique no período referente a 2008-2014.
Procedimentos metodológicos
A pesquisa recorreu ao método qualitativo na sua vertente dialética. Este método defende a inexistência de algo acabado, quer dizer, o fim de um processo é sempre o início de uma nova fase.
3 A escolha deste método deveu-se ao facto deste estudo procurar analisar a coabitação entre as ONG's, órgãos locais e o município de Massinga no âmbito da descentralização e desconcentração administrativas. No que concerne a metodologia, a pesquisa desenvolveu-se em três fases: Na primeira fez-se um estudo bibliográfico e documental, como também, a leitura de monografias, dissertações e artigos científicos publicados atinentes ao tema. Estes estudos inserem-se na problemática que incluiu a descentralização, autarcização e a contribuição das ONG nacionais e estrangeiras em Moçambique. O segundo momento foi o de trabalho de campo, onde para além da recolha de dados, recorreu-se à técnica de observação directa e indirecta. Esta última consistiu na elaboração de entrevistas semi-estruturadas e inquéritos dirigidos as entidades do município de Massinga, aos órgãos locais de Estado ao nível do distrito e a USAID. A pesquisa compreendeu uma amostra de 10 indivíduos, dos quais 3 técnicos da USAID. A escolha destes profissionais justifica-se por terem trabalhado dentro da organização no sector social, higiene e saneamento e na
área de cooperação. Ainda recorreu-se a 3 funcionários de Órgãos Locais de Estado do distrito de Massinga que para além das entrevistas concedidas, forneceram relatórios anuais de desempenho desde 2008-2014. E, finalmente, foram contactados 3 técnicos do município e o seu respectivo presidente. A última fase foi obviamente, de discussão dos dados do trabalho do campo, seguida da sistematização da informação e, por fim, a elaboração da redacção final.
O artigo procura encontrar interfaces e limitações da autarcização e os imperativos de coordenação dos municípios localizados ao nível dos distritos com as ONG's no processo de tomada de decisão nas acções de desenvolvimento social, fundamentalmente ao nível do perímetro municipal, no caso em epígrafe, com o exemplo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional no município de Massinga.
4 Organizações não governamentais nacionais e estrangeiras e a promoção da descentralização em Moçambique Elementos que influenciaram o nascimento das ONG's A emergência das organizações não-governamentais pode ter sido estimulada pela conjuntura das duas grandes guerras mundiais, bem como da subsequente Guerra Fria que se tornou numa plataforma de confrontações indirectas entre os EUA e a URSS1. De facto, Se a primeira Grande Guerra não marcou de forma clara o movimento e a actividade das organizações não-governamentais, o mesmo não aconteceu com os acontecimentos decorrentes da II Guerra Mundial, [os quais] influenciaram de forma decisiva a criação e as práticas das ONG por toda a Europa Ocidental (Ribeiro, 1995, p. 29).
Essas organizações se expandiram pela maioria dos países, tendo sido notórias no ocidente e trouxeram muitas vezes, inovações à configuração da sociedade civil. Os Estados Unidos da América (EUA) após II Guerra Mundial, através da USAID2 , uma dessas organizações não governamentais, concederam múltiplos "apoios" aos países da América Latina, promovendo programas de "ajuda" económica e social com um alcance na difusão dos valores e práticas sociais do bloco capitalista.
Nos países do terceiro mundo, em particular em África, as ONG fizeram as suas primeiras incursões em campo nos primeiros anos da década 80, período que, coincidentemente a USAID começou a operar em Mocambique.
Throughout the 1980s, western donor commitment to funding NGO's was premised on the assumption that too much government power had been a major constraint to humanitarian intervention in Africa […] like Ethiopia and Sudan, Mozambique was became a testing ground for massive operation NGO relief programmes backed by significant Northern government and multilateral aid (Bennett, 1995, p. 70)3
1Segundo Mauri (2013, p. 18), os acontecimentos posteriores a II Guerra Mundial constituíram a base para o nascimento de Organizações Não Governamentais, no quadro dos acontecimentos que tiveram a ver com as ideologias montadas pelos blocos beligerantes e o surgimento do movimento dos não-alinhados. Neste período nasceram várias organizações não-governamentais movidas de um sentimento de solidariedade, na tentativa de enfrentar o momento de crise a que o mundo estava mergulhado.
2Esta sigla significa: Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. (United States Agency for International Development); A USAID surgiu em 1961, com a assinatura do Decreto de Assistência Externa, pelo então Presidente John F. Kennedy, unificando diversos instrumentos assistenciais dos Estados Unido.
3Durante 1980, os doadores ocidentais comprometeram-se em financiar as ONGD dando como suposto que fosse o poder governamental o problema maior nas intervenções humanitárias em Africa como Etiópia e o Sudão, Mocambique tornou-se num lugar de experimentação para operações massivas.
5 Depois da independência, o país foi dirigido por um regime de partido único tendo optado por uma economia centralmente planificada. Assim, o Estado e o partido eram os únicos intervenientes de vulto na vida política, económica e social. Portanto, esta postura governamental não estimulou muito o surgimento livre e espontâneo das ONG's.
A internacionalização dos procedimentos financeiros como nova ordem globalizante, o nascimento de alianças económicas de grande escala como a União Europeia (EU), a contraposição de uma nova economia do Sul com a confirmação dos Não-Alinhados, a dificuldade do emprego também nos países desenvolvidos e o renascimento do nacionalismo, introduziram novas linhas de tensão e alteraram também os objectivos das ONG que também são resultado dos acontecimentos ocidentais. (Saraiva, 2001, p. 100) Em 1984, Moçambique aderiu ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional abrindo caminho para a proliferação das organizações não-governamentais internacionais. A abertura ao capitalismo viria a ser alimentada com ordem constitucional de 1990 que oficializou a existência das ONG nacionais. Em seguida, o fim da Guerra Fria trouxe, na acepção de Ribeiro (1995, p. 49), mudanças significativas no campo político e diplomático, com o declínio do socialismo e a fragmentação dos Estados Nacionais. Arias (1966, p. 13) concorda com Ribeiro ao afirmar que, com a queda do muro de Berlim, em 1989, houve uma consciência mais alargada sobre a importância e impactos dos eventos.

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