A morte é um mal universal. Desde quando aprendemos sobre o que é um silogismo utilizando o exemplo de Sócrates ser um humano [1], até o momento em que perdemos alguém próximo, a morte é algo que nos humaniza. Afinal, dificilmente se verá um ser humano que não a venceu, ou que escapou dela.

Porém, como humanos, temos um privilégio sobre os demais seres vivos, nós temos a capacidade de refletir sobre ela. Não apenas sofremos com a morte de alguém querido e/ou próximo, nós conseguimos fazer reflexões, devaneios sobre a morte, como algo pertencente a própria vida (paradoxo profundo esse).

Ainda que para o filósofo grego Epicuro "a morte não seja nada para nós" (já que para ele, quando o corpo retorna aos seus elementos, este mesmo corpo não possui mais nenhum dos sentidos, e para Epicuro o que não possui nenhum dos sentidos é algo nada demais para nós) [2], a morte de outra pessoa sim, é algo para nós. Nós realizamos cerimônias para dar um último adeus a outro alguém. A vida é composta por cerimônias (seja ao nascer, seja no primeiro ano, nos aniversários de 15, 18, celebrações de casamento); e mesmo que em todas essas citadas o clima seja de alegria, a morte também não escapa das solenidades. E a importância desses eventos são tantas, que Salomão (possivelmente) escreveu que " é melhor ir a uma casa onde há luto do que a uma casa em festa" [3] (sendo o motivo dado no prosseguimento do texto ser algo a ser muito pensado).

O luto descrito no texto de Eclesiastes, é a forma pela qual classificamos o pesar, a tristeza causada pela morte de alguém (quanto mais próximo for a nós, maior tende a ser o luto gerado pela morte desse próximo). Este termo veio do latim luctus, e tem como significado "dor", "mágoa", "lástima" [4]. Seja pela dor da partida, ou pela incerteza de muitos quanto ao destino das pessoas após a morte, o luto também é algo inerente a nós humanos. Seja homem, seja mulher, nós sofremos ao ver a morte de alguém (ainda mais querido), por mais que saibamos que a morte seja algo praticamente inevitável, isso não nos impede de ficarmos tristes e sorumbáticos.

Com o passar do tempo, e com a integração maior entre as pessoas graças ao avanço das tecnologias que propiciaram uma comunicação mundial, o luto passou a ser compartilhado por mais pessoas. Porém, com o acesso a informação também estendido, o mesmo luto passou a ser não somente sentido pela saudade da pessoa, pelas lembranças de momentos bons, mas também pelas crenças e opiniões que os defuntos possuíam. Ou seja, a morte passou a ser uma ferramente de propagação de crenças e ideologias. O luto, antes quase sempre restrito á personalidade da pessoa, se tornou uma arma política.

No dia 14 de março de 2018, cerca das 21h30 no Rio de Janeiro, a então vereadora do PSOL, Marielle Franco, foi assassinada dentro de um carro, juntamente com um rapaz chamado Anderson Pedro Gomes (motorista do carro)[5].
Marielle era conhecida por lutar pelos chamados "direitos humanos", onde estão incluídos luta contra racismo, contra a disriminação às mulheres, aos homossexuais, e aos pobres em geral [6].

Como se pode perceber (principalmente por ser membra do PSOL), Marielle possuía crenças e ideologias mais ligadas à esquerda. Portanto, toda sua luta por direitos humanos era algo enviesado a pautas socialistas e comunistas. Marielle era como qualquer um de nós, mesmo não concordando com seu viés político, ela possuía esse direito de ter a ideologia que tinha.

Qual o primeiro problema, então, com sua morte? Afinal de contas, é mais um caso de assassinato que ocorre no Rio de Janeiro. É que, por mais simbolismos que ela traga, as circunstãncias de seu falecimento geraram reboliços na esquerda brasileira. O Rio de Janeiro está passando por uma intervenção federal. A segurança pública está sob os encargos do exército, sob os encargos do governo federal [7]
E, como o atual presidente é severamente repudiado por praticamente todos os membros de PT, PSOL, PCdoB e outros partidos com ideologias mais à esquerda (inclusive era pela própria Marielle em vida), o assassinato da quinta vereadora mais votada em 2016 no Rio de Janeiro [8] deu força para as críticas dos membros e militantes desses partidos (bem como de cidadãos comuns com ideologias esquerdistas) quanto a essa intervenção.
A morte de Marielle serviu como munição às criticas vindas dessas pessoas.

Mas, não bastando isso, ainda há um segundo problema. A postura de certos ex-colegas da falecida vereadora quanto ao crime, a violência e a polícia militar, não eram muito rigorosas. Seu ex-colega de partido, o deputado estadual Marcelo Freixo, por exemplo, é conhecido por posturas mais brandas em relação à bandidagem [9]. E isso, fez com que algumas pessoas com ideias mais próximas à direita se aproveitassem da morte de Marielle para criticar as opiniões de políticos e  de algumas pessoas de esquerda sobre os três ítens citados acima (algumas crenças partilhadas pela própria Marielle).

Após essas duas constatações, pode-se dizer que há um lado certo nessa história? Acredito que não.

Por mais que eu acredite que o posicionamento de partidos como o PSOL não sejam corretos nem eficazes na luta contra o crime, por mais que acredite que a desmilitarização da polícia, a permanência do estatuto do desarmamento, e a culpabilização de fatores eternos ao indivíduo que se envolve com o tráfico sejam coisas erradas e que não apenas não diminuem, como propiciam o aumento do tráfico de drogas e de assaltos, a morte de um ser humano (que apesar dos pesares, não era um Hitler ou Stálin, muito longe disso) como Marielle deveria ser, antes de tudo, sentida (principalmente pelos mais próximos dela).

Sua pessoa, antes de seus ideais, é que devem ser levados em conta. Ela era uma pessoa guerreira (mesmo discordando do que embasava sua luta), alguém determinada, deveras corajosa. Isso tem de ser reconhecido. Marielle foi mais uma pessoa a padecer no Rio de Janeiro, vítima de algo que assola o estado gravemente desde o final da década de 90 [10].

A morte de alguém não pode ser reduzida a ser uma ferramenta política. Isso é utilizar o ser humano; isso é objetificar o ser humano. A dor da perda de alguém não pode ser instrumento para mera propagação de ideologias, como vem sendo por muitos.

O que impediria de eu ou você estar no lugar dela? Absolutamente nada. Qualquer ser humano, sob as condições em que ela e o motorista estavam, quase certamente morreriam (como ambos morreram).
A morte é algo mais profundo que crenças e ideologias, e o luto, a tristeza, o pesar pela vida que se foi, têm de ser respeitados.
Quantas pessoas virão a óbito que se tornarão, mesmo com a cessação da vida, simples elementos políticos?

É preciso que o luto volte a ser mais sincero, mais honesto. Ficamos enlutados sim, pelo que a pessoa cria e fazia. Porém, antes disso, ficamos enlutados, porque com a morte de alguém próximo, de alguém querido, vemos e sentimos aquilo queé praticamente algo inescapável a todos os seres humanos: a morte; o fim da vida na Terra.

[1] https://www.philosophy.pro.br/validade.htm

[2] http://classics.mit.edu/Epicurus/princdoc.html

[3] https://www.bibliaonline.com.br/nvi/ec/7

[4] http://oquevidomundo.com/voce-sabia-n-origem-luto/

[5] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/vereadora-do-psol-marielle-franco-e-morta-a-tiros-no-centro-do-rio.ghtml

[6] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43398816

[7] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43079114

[8] https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/quinta-vereadora-mais-votada-do-rio-e-assassinada-apos-evento-15032018

[9] https://www.youtube.com/watch?v=IcA-vNHMoDE;
https://oglobo.globo.com/opiniao/prisao-um-mau-negocio-11528564#ixzz2skSX0ba9
https://twitter.com/marcelofreixo/status/830163629769125889

[10] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,taxa-de-homicidios-aumentou-37-entre-1992-e-1999,20020619p53235
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/18/rio-fecha-2017-com-maior-taxa-de-mortes-violentas-dos-ultimos-oito-anos.htm
https://exame.abril.com.br/brasil/a-escalada-da-violencia-no-rio-de-janeiro-em-4-graficos/