Pentateuco: algumas notas (7) O que dizem os textos bíblicos?

Para o homem de fé, a bíblia é palavra de Deus. E para quem não acredita, é uma grande interrogação. E quem se deixa levar pela curiosidade da fé vê na bíblia um universo de novidades que se revelam diariamente...

Não devemos esquecer que estamos diante da palavra de Deus em linguagem humana; e a linguagem humana reflete o meio, o ambiente, o contexto e todas as demais condicionantes que produzem o homem. Por isso devemos manter a consciência de que essa palavra divina, mesmo sendo palavra libertadora e salvadora é, ao mesmo tempo, condicionada pelas contingências humanas. Daí que cabe aos cristãos procurar a voz de Deus escondida no discurso humano, pois a inspiração divina também se utilizou das sutilezas em que viveram homens concretos.

Por esse motivo não devemos nos esquecer que a bíblia não nasceu pronta e que seu texto atual foi se construindo aos poucos. E o texto atual é resultado de diversas influências. Sendo assim, quanto mais entendermos a situação humana em que o texto foi produzido, mais claramente perceberemos a palavra de Deus, pois Ele se dá a conhecer no meio da nossa realidade, em nossa história.

Como estamos falando de uma Palavra divina, influenciada pela ação e mediação humana, temos que saber quais são as influências que agiram sobre o texto bíblico. Uma linha de influência vem das diversas religiões dos povos com os quais os hebreus fizeram contato. São diversos os sinais de mitos e rituais religiosos de outros povos presentes, principalmente no Pentateuco. Só como exemplo, tomemos o mito babilônio da criação. Parece que esse mito mesopotâmico, está na origem do mito bíblico da criação. Ou seja, o autor do texto bíblico quando falou sobre a criação humana, para transmitir a palavra de Deus, inspirou-se, entre outros, no mito mesopotâmico da criação.

Com base em quê podemos fazer essa suposição? Um argumento nasce da arqueologia e da história. Os pesquisadores nos informam que a cultura mesopotâmica é muito mais antiga do que a cultura hebraica. Os povos que criaram os mitos mesopotâmicos viveram antes do povo hebreu, de onde nasceram as narrativas bíblicas.

Um outro argumento nasce dos especialistas que comparam e analisam os textos antigos. Neste caso as narrativas mesopotâmicas e as da bíblia. A ferramenta teórica que os especialistas usam para isso chama-se critica literária e crítica das formas. E a comparação dos textos mostra muitas semelhanças formais, embora os conteúdos sejam distintos.

Podemos também mencionar um argumento antropológico. Isso significa que o fato de Canaã estar localizada numa rota por onde passavam inúmeras caravanas deixou marcas sobre acultura dessa região. Além disso, a “família” de Abraão, de acordo com o texto bíblico, é originária da Mesopotâmia, conforme podemos ler em Gn 11,4: “Abrão partiu, como lhe disse Iahweh, e Ló partiu com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando deixou Harã”. Dessa forma teria trazido em sua bagagem cultural informações daquela região.

Outra linha de influências pode ser percebida na teoria das tradições ou das fontes. Essa teoria demonstra que o texto bíblico atual foi sendo produzido ao longo de vários séculos. Na realidade o Pentateuco teria começado a se formar por volta dos séculos X e IX antes de Cristo e teria chegado à configuração que hoje conhecemos depois do século VI, posteriormente ao Exílio (período em que as lideranças do povo de Deus foi deportada para a Babilônia).

Os pesquisadores encontram pelo menos quatro tradições – ou fontes – distintas como sendo as bases de onde surgiram o texto. Essas tradições orais que deram origem aos atuais textos teriam se desenvolvido em diferentes época e em locais distintos. Seus objetivos também são diferentes. E por isso apresentam a mensagem divina com características diferentes umas das outras.

Em nossas bíblias em Português nem sempre percebemos essas particularidades, mas na língua original (hebraico ou grego) as particularidades da linguagem são mais evidentes. A partir disso foi que os pesquisadores puderam perceber que existem quatro fontes originantes. Duas são as mais antigas, possivelmente anteriores ao Exílio babilônico, ainda do período monárquico. Uma chama a Deus de Iahweh. Por isso os pesquisadores chamarem essa de tradição Javista (J), possivelmente produzida no século IX, em Judá. A outra chama a Deus de Elohin: é a tradição eloista (E), teria sido produzida em Israel, depois da ruína do reino do norte. Essas duas fontes nos preservaram partes muito antigas do Pentateuco.

As outras duas fontes foram sistematizadas no período do exílio na Babilônia ou são pós exílicas. Trata-se das tradições sacerdotal (P) e deuteronomista (D). O documento sacerdotal teria surgido durante o período exílico, quando os sacerdotes judeus reinterpretaram sua história para reanimar os exilados. A fonte deuteronomista possivelmente se originou com a reforma do templo no reinado de Josias (sec VII aC).

Essas particularidades de linguagem não são perceptíveis em nossa língua, nas traduções que usamos. Por isso nosso estudo pode se concentrar nas descontinuidades, repetições e semelhanças com outros textos de outras culturas. Tanto que podemos dizer que o texto atual da bíblia é uma colcha de retalhos. Temos hoje um texto que, para os olhos leigos, é único e coerente. Mas se olharmos com um pouco mais de atenção começaremos a perceber várias descontinuidades, interrupções ou ligações de ideias quase sem sentido. São, portanto, vários os elementos intrigantes: por que são necessárias duas versões da criação, como se pode ver em Gênesis 1 e 2? De onde se originou a humanidade, se após a morte de Abel, Caim foi expulso do paraíso? Se Adão e Eva foram criados por Deus e são os primeiros serem humanos, como explicar que Caim tenha medo de ser perseguido e morto pelos estrangeiros quando o virem com a marca de assassino? De onde surgiu a esposa de Caim?

Vale ressaltar que a bíblia não é um livro de história – no sentido da ciência da história – mas uma palavra para alimentar e orientar as ações das pessoas de fé. Por isso, a resposta a essas e outros pontos curiosos, contraditórios ou duvidosos pode ser dada não pela fé, mas pela pesquisa histórica e pela análise literária do texto. Ou, dizendo de outra forma, as informações históricas e da crítica literária (as informações da ciência) podem nos ajudar a superar uma fé infantil para desenvolver em nós uma fé amadurecida, esclarecida, como o desejava o apóstolo Paulo.

Além disso, o fato de sabermos que a bíblia não nasceu pronta e que é tributária das interações culturais não invalida em nada o fato de ser Palavra de Deus. Apenas reforça a ideia de que Deus age sempre a partir das ações humanas. Ele, certamente, poderia ter influenciado diretamente, como que ditando, o texto bíblico. Entretanto preferiu usar a história humana para demonstrar que não é um Deus ausente, mas presente na história.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura - RO