Pentateuco: algumas notas (5) Quem era esse povo?

Quem lê a bíblia com os dois olhos – o olhar da fé e o olhar da curiosidade (que também pode ser chamada de razão ajudada pela ciência) -, com certeza já se perguntou: Quem foi esse povo que descobriu a ação de Deus em sua história? Quem foi esse povo que se percebeu/disse escolhido por Deus?

Trata-se de um povo que aprendeu a ouvir a promessa e a aliança trazida por Moisés no processo da libertação do Egito: “Tomar-vos-ei por meu povo, e serei o vosso Deus. E sabereis que eu sou Yahweh, o vosso Deus, que vos faz sair de sob as cargas do Egito” (Ex, 6,7).

E se buscarmos mais explicações, outras respostas poderiam ser acrescentadas a partir de outros textos como algumas passagens do Gênesis, como nas descrições da criação, do livro do Gênesis (Gn 1 e 2). Depois a descrição da aliança, feita com Noé, após o dilúvio (Gn 9,8). Mas, principalmente teremos a origem desse povo na figura de Abraão:

Iahweh disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E farei de ti um grande povo, eu abençoarei e engrandecerei o teu nome; sê uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; Por ti serão benditos todos os clãs da terra. (Gn, 12,1-3).

Em alguns lugares os descendentes de Abraão são chamados simplesmente “filhos de Abraão”. Entretanto, se olharmos para as anotações dos arqueólogos, veremos que na região em que a bíblia foi se formando ao longo dos séculos, existiram vários povos diferentes. Na volta do Egito os sucessores de Moisés (cf Ex 3,8) disputaram a terra prometida com os cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus, e jebuseus.

O fato é que houve muita disputa pela posse da região, hoje ocupada pelo Estado de Israel. E sabemos que num processo dessa natureza, o contato entre povos, invariavelmente ocorre interação cultural. Dessa forma, as tradições, as histórias populares, os mitos, lendas e crenças se entrecruzaram e se influenciaram mutuamente. Por isso é que podemos dizer que, do ponto de vista histórico, antropológico e cultural – e especificamente literário – não houve um povo que produziu a bíblia, mas ela foi sendo gerada ao longo dos séculos pelo contato e interação de diversos povos.

O resultado desse entrecruzamento foi organizado e redigido pelos descendentes de Abraão. Entretanto devemos nos lembrar que Abraão havia migrado da região mesopotâmica; interagiu com os povos de Canaã; migrou para o Egito e voltou para Canaã. Nesse processo sempre manteve-se em contato com outros povos. Ele e seus descendentes nunca viveram isolados. Na paz ou na guerra sempre interagiu com seus vizinhos.

O mesmo podemos dizer dos seguidores de Moisés (um os descendentes de Abraão), ao conduzir os hebreus (hoje chamados de israelitas). Também esses, no deserto e na reconquista da “terra prometida”, pela paz e pela guerra, interagiu com diferentes povos.

Podemos dizer, portanto que, o olho da fé nos faz ver a eleição divina. A ação divina é que mobiliza a escolha de um povo. Mas o olho da razão no permite ver um longo processo de interação do qual resulta um povo que percebeu que sua história se constituiu de forma diversa da história de outros povos. Nessa história e nessa tradição é que se forjou a bíblia. Até que começou a ser compilada vários séculos depois, já no tempo de Salomão e seus sucessores, por volta do século X aC. Nesse período começou a compilação das tradições e dos textos a partir dos quais podemos, até hoje, ouvir a voz de Deus.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura - RO