Pentateuco: algumas notas (4) Região de conflitos

Conhecendo o “chão onde nasceu a bíblia” podemos entender que essa não é uma região que se caracteriza pela paz. Pelo contrário, manifesta-se como um caldeirão em ebulição. Essa fervura vem produzindo inúmeras guerras ao longo de mais de três milênios de história. Desde antes da bíblia ser escrita, a relação entre os povos era conflituosa. Nos mais de mil anos em que ela foi redigida permaneceram os conflitos e nos dias atuais os noticiários, quase que diariamente, nos falam das guerras em que a região está imersa.

Ao lermos a bíblia temos a noção do volume dessa beligerância nos quais os hebreus estão diretamente envolvidos. Só a título de exemplo podemos tomar o livro dos Juízes que é a narrativa das guerras dos seguidores de Moisés na conquista de Canaã. Nesse livro um dos episódios mais conhecidos é a epopeia de Sansão, o hebreu que se relaciona com uma estrangeira contra os quais os hebreus estão em guerra. Além desse, vários outros episódios poderiam ser elencados para ilustrar a beligerância dos hebreus e de seus vizinhos: a saga da travessia do mar vermelho, narrada no livro do Êxodo; a conquista de Jericó, no livro de Josué; a própria linguagem do profeta Amós (nos oráculos contra os povos, nos capítulos 1 e 2) pode ser tomada como um exemplo da violência que envolveu os povos antigos.

Entretanto os conflitos não ocorrem somente na região cananeia, mas em toda a Crescente Fértil. As nações do norte (da Mesopotâmia) disputam entre si a supremacia da região e disputam com o sul (Egito) o domínio das rotas comerciais. Com base nisso podemos dizer que a fertilidade da “Crescente Fértil” não está apenas em seu solo devido a presença de águas, mas também na potencialidade para os conflitos e pelas disputas entre grupos e nações. Esse panorama nos permite dizer que, diante da pergunta sobre como viviam os povos que produziram os textos da bíblia a resposta seria muito fácil: em guerra.

Quais os motivos para tantos atritos?

Seguramente eles não ocorriam por causas religiosas, mas econômicas. Mais especificamente pelo domínio das rotas comerciais. As nações do sul e do norte sempre desejaram dominar a região central – Canaã – porque essa era a melhor rota para as caravanas de mercadores: facilidade de locomoção e presença de água. O contato norte-sul somente era possível pelo corredor de passagem nas proximidades do Jordão ou no litoral do Mediterrâneo. Portanto dominar a região significava dominar o comércio e, portanto, impedir os adversários de comercializar também. Ilustra isso o alerta do profeta Amós:

“ ‘Mandai recado aos palácios da Assíria e aos palácios da terra do Egito, dizei que se reúnam no planalto de Samaria, para ver quanta desordem, quanta exploração dentro dela. Não sabem viver com honestidade’, – oráculo do Senhor –; com extorsão e exploração acumulam riquezas em suas casas. Por isso, assim diz o Senhor Deus: ‘Os inimigos farão o cerco ao teu país, tua segurança cairá de vez e teus palácios serão todos saqueados’ ”. (Am 3,9-11)

Partindo disso podemos perceber que, além dessa região ter sido a pioneira na organização da agricultura e estruturação de cidades e estados, criou, também a prática de as nações mais fortes dominarem as mais fracas Desenvolveu, também a arte da guerra, da qual os assírios foram um exemplo pela sua crueldade em relação aos vencidos. Foi dessa forma que ao longo de milênios diversas nações se alteraram no mando da região. Desde os acádios, os sumérios, os babilônios e os assírios. E mais tarde os gregos e depois os romanos. Todas essas nações se alternaram na disputa e no domínio da região de Canaã; e isso ocorreu ao longo de quase três milênios da história bíblica.

Essa sucessão de conflitos repercutiu na literatura e na religião. Quando analisamos as manifestações religiosas dessa região, percebermos que as divindades se envolvem nos conflitos humanos ou eles próprias eram beligerantes entre si. Não só os textos bíblicos refletem os conflitos e guerras, mas também os textos extra bíblicos. Exemplos disso está na literatura e nos mitos mesopotâmicos, egípcios e gregos. Na mitologia de todos esses povos podemos observar os deuses brigando e uns querendo dominar sobre os outros; por vezes tomando partido de algum mortal ou de um grupo humano; noutros momentos como que se divertindo diante dos dramas humanos. Toda essa situação em relação aos deuses desses povos, pode ser tomado como reflexo dos conflitos entre as nações antigas, dessa região.

Um exemplo dessas desavenças, pode ser tomado da mitologia mesopotâmica. No poema “Enuma Elish” e na epopeia de Gilgamesh. O herói lendário, Gilgamesh, se sobrepõe aos seus adversários matando-os. No início dessa epopeia comenta-se a chegada de Enkidu e como Gilgamesh é poderoso e temido.

Gilgamesh correu o mundo, mas, até chegar a Uruk, não encontrou quem pudesse opor-se à força de seus braços. […]

Os deuses escutaram o lamento do povo. Os deuses do céu gritaram para o Senhor de Uruk, para Anu, o deus de Uruk: "Uma deusa o fez forte como um touro selvagem; ninguém pode opor-se à força de seus braços. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos.

A mesma ideia de sociedade conflituosa pode ser encontrada no poema/mito da criação babilônico, chamado de Enuma Elish. Nesse poema, logo nas linhas iniciais aparece uma discussão entre duas divindades, Tiamat e Apsu, que trocam ameaças:

“Apsu abriu a sua boca e falou e para Tiamat, o cintilante, ele dirigiu a palavra:...o caminho deles...Durante o dia não tenho descanso, e de noite não consigo deitar-me em paz.

Mas eu destruirei o seu caminho. Eu o destruirei...”

Algo semelhante manifesta-se nos mitos egípcios onde Horus, Isis e outras divindades se envolvem em confrontos mortais, matando seus adversários para se impor sobre eles.

Séculos depois, nos deparamos com a literatura e os mitos gregos. Também aqui manifestam-se os atritos e conflitos entre as divindades. caso clássico é o caso de Cronos devorando os deuses que são seus filhos.

Como o texto, enquanto produção literária, é produção humana e os humanos, ao escrever, imprimem no texto reflexos de sua realidade, podemos perceber que o conflito entre as divindades reflete os confrontos entre os grupos que disputam o poder; e se quisermos, também refletem os dramas pessoais...

No caso da literatura que hoje é a bíblia não é diferente. Olhando os textos bíblicos podemos ver como Javé se posiciona ao lado dos descendentes de José, quando estes, seguindo Moisés, fogem do Egito na basilar experiência do Êxodo. Primeiro abre o mar para a passagem dos hebreus, depois afoga os egípcios; coloca-se entre os hebreus e os egípcios ora como uma nuvem, ora como coluna de fogo. Depois, no período dos juízes confabula com eles, sugerindo táticas de guerrilha. Ou seja, o Deus bíblico acaba se mostrando um Deus guerreiro, partidário daqueles com os quais se alia. Em Dt 3,22, Moisés instrui seus sucessores: “Não tenhais medo deles, pois quem combate por vós é Iahweh, vosso Deus”

Por essas e outras é que podemos afirmar: o Deus bíblico é partidário de seu povo e manifesta-se em sua história. Não se dá a conhecer na paz e na meditação, como na experiência religiosa budista ou em outras experiências orientais, onde a oração e o silêncio são caminhos para a paz. No universo bíblico a paz é o outro lado do conflito. Ou seja, a paz até pode acontecer, mas será uma conquista da espada e da aliança com Deus. Será consequência da vitória sobre os inimigos e, portanto, será sempre uma paz ameaçada pelos inimigos derrotados...

Isso nos aponta para algumas características do Deus bíblico: manifesta-se na história e a partir do conflito. Além disso escolhe os seus, tomando seu partido. E mais, ele não age só, pelo contrário, coloca-se ao lado dos seus escolhidos exigindo compromisso e contrapartida. Isso é o que se percebe no episódio da sarça ardente, no livro do Êxodo (3,7-10), quando Javé se dirige a Moisés, confiando-lhe uma missão:

Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seus clamores por causa dos seus opressores; pois eu conheço suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo das mãos dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel […]. Vai, pois, eu te enviarei ao Faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os filhos de Israel.

Como se pode perceber, assim como os deuses antigos dos povos antigos, o Deus da bíblia é um Deus que assume o conflito. Daria pra dizer mais: ele se revela a partir do conflito porque toma para si as dores do povo. Ele vê, ouve, desce e envia...

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura - RO