Pentateuco: algumas notas (3) O chão onde nasceu a bíblia.

Para entendermos a mensagem da bíblia não é suficiente ler apenas o texto, como se fosse algo mágico. Precisamos entender as condições em que cada texto bíblico foi produzido. Esse deve ser o critério para entendermos a bíblia e, especialmente, os cinco primeiros livros: o conjunto de textos chamados de Pentateuco, visto que eles nasceram em situações e contextos diferentes. Ou seja, cada um dos livros do Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio tem sua história de formação e nasceu com a finalidade de mostrar uma face da história e da fé de um povo que se percebeu merecedor de uma atenção diferenciada da parte de Deus.

E assim podemos começar retomando uma antiga afirmação: Da mesma forma que dizemos que a bíblia não nasceu pronta, também não foi gerada num único lugar. O vento da inspiração divina (Gn 1,2 “o vento de Deus pairava sobre as águas”) espalhou a semente da palavra por diversos lugares e, por isso, foram muitas as pessoas que a acolheram e colheram seus frutos, produzindo, inicialmente a fala dos antigos e em seguida, a redação dos textos.

Podemos dizer que o chão em que nasceu a Bíblia é a região do médio Oriente a qual também recebe a denominação de Crescente Fértil. Trata-se de uma faixa de terra espremida entre desertos e o mar Mediterrâneo. Ao norte começa na Mesopotâmia (entre os rios Tigre e Eufrates) desde sua foz no Golfo Pérsico, região central do deserto Arábico. Passa por uma estreita faixa de terra entre o mar Mediterrâneo e a região do rio Jordão. E vai até o norte do Egito, na região do rio Nilo.

Nessa região, atualmente, localizam-se alguns países (ou pelo menos parte deles) cujos nomes aparecem constantemente nos noticiários, em virtude dos conflitos que lá ainda ocorrem: Israel, Jordânia, Líbano, Síria, Iraque, Egito, Turquia e Irã.

A denominação de “Crescente Fértil” se deve ao fato de a região, no mapa, apresentar o formato de uma lua crescente, E em virtude da presença desses rios e mares, entre desertos e montanhas, apresenta condições para cultivo. Foi justamente nessa região, nas proximidades dos rios Tigre e Eufrates que a história localiza algumas das mais antigas civilizações.

Ou seja essa é outra das característica dessa região: o fato de, há mais de 10 mil anos, aí terem surgido os primeiros aglomerados humanos dedicados à agricultura. E isso ocorreu justamente onde hoje se localizam Jordânia e Síria. Esse inovação – a agricultura – diferenciou essas sociedades das africanas as quais, inicialmente viviam da coleta e caça. O fato de terem desenvolvido a agricultura as forçou a desenvolver outro estilo de vida: os grupos humanos, antes nômades, sem passaram a se fixar numa mesma região por mais tempo, num processo chamado de sedentarismo. Essa experiência sedentária permitiu a criação de organizações sociais básicas, as cidades-Estado e posteriormente códigos de leis (como o de Hamurabi) e os rudimentos da escrita (cuneiforme na Mesopotâmia; e ideográfica-hieroglífica no Egito). Em virtude dessas inovações a região é considerada Berço da Civilização.

Esses rudimentos culturais: organização social/política, escrita, código de leis, entre outros, estão na base do surgimento da bíblia. Com o nascimento da escrita (experiência que demorou vários séculos para se concretizar) as diferentes sociedades passaram a registrar sua história, não como livro de história, mas como documentação contábil e registros dos produtos armazenados (essa era a função de José, no Egito – Gn 39,1-6). Elementos desses registros, mais tarde, foram incorporados à bíblia formando seus trechos mais antigos.

Na parte central da crescente fértil localiza-se o atual Estado de Israel. Em tempos mais antigos essa região era conhecida como Palestina. Também foi chamada de Canaã. Embora a história bíblica envolva a região mesopotâmica e egípcia, o centro dos episódios bíblicos é a Palestina. Para ali convergiram Abraão e seus descendentes, vindos da Mesopotâmia, mas especificamente de Harã, região mesopotâmica. Em Gênesis 12,4-10 podemos ler esse episódio, mostrando a trajetória de Abraão até Canaã, em uma lista de localidades: Abraão saiu de Harã, chegou a Canaã, foi a Siquém e Moré onde recebe a promessa da terra (“À tua descendência darei esta terra”) nas proximidades de Betel e Hai. Mais tarde, possivelmente em razão de alguma crise de produção (“Havia fome naquela terra”), Abraão migrou para o Egito.

Séculos depois desse episódio ocorreu outro fenômeno marcante, mencionando várias localidades e diferentes povos. No episódio do Êxodo, o grupo de Moisés, para se reinstalar em Canaã fez contato vários povos com os quais disputou a posse da região. Após atravessarem o deserto, vindos do Egito, o grupo de Moisés chegou às terras em que viviam cananeus, heteus, amorreus, perizeus, heveus, e jebuseus, conforme se lê em Êxodo 3, 6-10. A disputa pela terra é narrada nos livros de Josué e no livro dos Juízes.

Essa terra “que mana leite e mel” (terra fértil; terra de fartura) foi prometida a Abraão que a conquistou dos seus antigos habitantes. Posteriormente ao Êxodo a região foi reconquistada pelos sucessores de Moisés. Dali os hebreus foram retirados – pelo menos suas lideranças – e levados para a Babilônia (cativeiro ou exílio babilônico). Na Palestina viveram os profetas e ali pregou Jesus de Nazaré. Esse pano de fundo histórico mostra quão conflituosa foi a relação entre os povos antigos e ajuda a entender os conflitos atuais, em que estão diretamente envolvidos os atuais israelitas, sírios e palestinos e indiretamente as outras nações da região.

Podemos dizer, portanto, que a semente da palavra se espalhou por toda a região fértil do Oriente Médio, germinando na vida de muita gente. Mas essa semente frutificou, na forma de texto final, na Palestina.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura - RO