Pentateuco: algumas notas (2) (Antes da bíblia a vida)

Como qualquer outra produção humana, a bíblia não nasceu pronta. E não nasceu bíblia. Nasceu quando as pessoas começaram a perceber alguma manifestação de Deus nos fatos do cotidiano. E o povo passou a perceber que Deus lhes falava de diversas formas e em diferentes situações. Na carta aos hebreus podemos ler: "Muitas vezes, e de muitos modos, Deus falou aos nossos pais, pelos profetas, mas, ultimamente, falou-nos por seu Filho" (Hb 1,1-2). O povo percebeu que Deus fala pelos acontecimentos e, por isso ao longo de muitos séculos, foi registrando por escrito, alguns acontecimentos ou a interpretação desses acontecimentos. Também ocorria que, por vezes, um determinado personagem sentia-se tocado por Deus para escrever sua mensagem, como o caso de Jeremias, que empresta sua palavra a Deus. E explica isso comentando a ordem de Deus: "Toma um rolo e escreve nele todas as palavras que te dirigi a respeito de Israel” (Jr 36,2).

A bíblia desenvolveu-se, inicialmente na forma oral. Por isso falamos em tradição oral. Ou seja, ela foi sendo gerada nas noites ao redor da fogueira ou nos momentos de celebração durante as festas da tribo, quando os anciões contavam as histórias dos antigos. Contavam como o deus da tribo interferira em favor da tribo e em defesa de um patriarca. Essas histórias passaram a formar uma tradição. E os mais novos, ao envelhecerem, contavam as histórias que os antigos lhes haviam contado. Eram, sempre, histórias recheadas com as experiências do cotidiano. Eram uma espécie de reflexo do cotidiano. Era a vida sendo contada, cantada e revivida. (Por conta dessa tradição oral é que antes de uma verdadeira consciência a respeito de Deus, havia uma noção de que um deus acompanhava o povo, de um deus que gostava do povo, de um deus que escolhia o povo). Também por esse motivo em diversos pontos dos livros do Pentateuco aparecem nomes distintos para Deus: Iahweh (Gn 4,1-16), Deus Altíssimo (Gn, 14, 17-23), El-Shadai (Gn 35,11) entre outros e somente séculos depois se desenvolve a consciência de de que Deus é inominável e, na conversa com Moisés (Ex 3,13-15) apresenta-se como “Eu sou”

Somente depois de muitos séculos de tradição oral foi que aquelas histórias contadas e recontadas ao redor da fogueira e nas celebrações da tribo começaram a ser anotadas, redigidas. Diferentes tribos registraram diferentes experiências e isso foi, cada vez mais, enriquecendo as narrativas. Embora fossem histórias e tradições e experiências diferentes, todas tinham um elemento em comum: a convicção de que nessas experiências de vida ocorrera uma manifestação divina. Esses contadores das histórias tinham consciência de que estavam narrando fatos, situações relacionadas à sua tribo, mas também sabiam pela fé, que eram histórias em que ocorrera uma manifestação de Deus. Por isso valorizavam a história e a vida da tribo, pois estavam convictos de que se tratava da narrativa da intervenção de Deus em sua história. Era, portanto, a vida da tribo que começava a ser não só contada, mas principalmente registrada em pequenas e diversas versões escritas.

Foram surgindo, em diferentes localidades e ligadas a diversas tribos, inúmeros escritos que foram sendo colecionados, lentamente e ao longo de muitos séculos. Pequenos fragmentos juntados a outros fragmentos, ao longo de muito tempo, passavam a formar um rolo, contendo várias histórias; várias versões de celebrações; várias versões da percepção da ação divina no cotidiano; várias versões sobre o cotidiano de diferentes tribos. Da junção de tudo isso, pequenos retalhos de vida, formaram-se vários livros sobre a vida.

E a vida virou bíblia...

 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, Filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO