Pensamentos sobre a morte

Todo final de ano a imprensa, talvez por falta de assunto, chama a nossa atenção para o grande número de personalidades famosas que teriam falecido durante o ano. Cantores e cantoras, atores e atrizes, empresários, atletas e políticos; todos têm suas vidas expostas, mostrando, de preferência, os aspectos mais tristes, trágicos e bizarros de suas biografias. A cada ano a prática jornalística se repete, mas, mesmo assim, quer se fazer parecer que hoje vivemos em um período único, como se antes não tivesse havido outro igual.

No entanto, mudaram apenas os nomes e algumas poucas circunstâncias do passamento das celebridades. Para o público, ávido por sensações, os principais personagens das apresentações que se sucedem nas páginas das revistas ou nos sites de famosos, são a fama, o poder, o dinheiro, os amores, as alegrias, os escândalos e as desgraças. As personalidades mortas são apenas personagens de uma história que no fundo é sempre a mesma; mudam apenas os atores.

A impressão de que em determinado ano morreram mais celebridades do que em períodos passados, pode também ser relativa. Talvez, porque coincidentemente nos últimos tempos tenham falecido pessoas que são conhecidas para nós, nosso grupo social, para nosso país. Muito provavelmente essas mortes, que nos chamam a atenção, sobre as quais vemos e fazemos comentários, pouco ou nada significam para pessoas de outros grupos, países ou culturas. Tudo, em última instância, depende do ponto de vista de quem percebe ou não o fato. Até a morte de celebridades supostamente famosas é relativa, ou, dito de outra forma, até a fama na morte é relativa ao meio histórico, geográfico, ou social.   

Há outras relativizações da morte. Não só da morte de indivíduos conhecidos, mas de pessoas comuns. Por vezes nos ocorre a lembrança de pessoas que conhecíamos no passado, em diversas fases de nossa vida, e que faleceram. Lembramos daqueles que, como nós, eram jovens e morreram. De repente, não estavam mais: um acidente, uma doença rápida e depois só a memória. O que teriam feito na vida, como viveriam e o que poderiam ter sido? (Quantos pais não se perguntaram isso durante toda a história da humanidade?) Sobre este fato escreve o filósofo Arthur Schopenhauer em Parerga e Paralipomena:

A profunda dor causada pela morte de todo ser de quem se é amigo surge a partir do sentimento de que, em todo indivíduo, existe algo de inefável, próprio apenas a ele e, portanto, inteiramente irrecuperável.” 

Em Senilia, pensamentos na velhice o pensador também registra:

A vida deve ser vista integralmente como uma lição rigorosa que nos é dada, embora nós, com nossas formas de pensamento voltadas a objetivos totalmente diferentes, não consigamos entender como chegamos ao ponto de precisar dela. Mas, para isso, devemos nos lembrar de nossos amigos falecidos com satisfação, considerando que superaram sua lição e desejando que ela tenha sido aproveitada.”

Ao longo da vida encaramos a morte de maneiras diferentes – poderíamos dizer pontos de vista diferentes, o que novamente nos remete à ideia da relatividade. Quando somos jovens, se não nos deparamos com ela na morte de parentes ou amigos, quase não tomamos conhecimento da “indesejada das gentes”, como a chamava o poeta Manuel Bandeira. Já na idade adulta, às voltas com a vida familiar e profissional, caso não se faça diretamente presente em nossas vidas, também pouco a percebemos. O frenético ritmo da vida, a energia, os planos e objetivos, a longa estrada ainda pela frente, nos afastam do pensamento da morte. Em se aproximando a velhice, quando começamos a ver, aqui e ali, tombarem aqueles que vinham nos acompanhando – os nossos pais –, começamos a nos dar conta de que aquele muro alto e cinza, que primeiro desconhecíamos e depois parecia estar muito longe, agora se aproxima.

Escreve na antologia A arte de envelhecer o filósofo contemporâneo italiano Franco Volpi:

Naturalmente, existe o implacável mecanismo de contagem do tempo, o rigor da decadência biológica o unus dies par omni: a morte, ou seja, o dia que, de maneira singularmente democrática, é de fato igual para todos. Na juventude, quando, por assim dizer, escalamos a montanha da vida, não conseguimos ‘ver a morte, pois ela está no sopé do outro lado da montanha’. Porém, depois que ultrapassamos o cume, ‘então avistamos realmente a morte, que até esse momento conhecíamos apenas de ouvir falar.’ Tomamos consciência de sua aproximação devido ao esgotamento de todas as forças do organismo, aquele processo bem triste do ‘marasmo’, que, não obstante, é necessário e até mesmo benéfico e salutar: ‘Pois sem essa preparação (a diminuição de todas as forças), a morte seria difícil demais.”

Até os enterros guardam uma certa relatividade. Quantas vezes já não ocorreu, a cada um de nós, irmos a um enterro e lá encontrarmos parentes e pessoas conhecidas – esses encontros memoráveis que geralmente só ocorrem nessas ocasiões especiais: casamentos, cada vez mais raros, batizados cujo número também sofreu perceptível queda, e enterros, cuja frequência permanece igual. Continua sempre atual a expressão latina: Vixit, viveu, já não vive.

O relativismo ao qual me refiro com relação aos enterros é a questão da perspectiva. Vamos ao enterro de um parente, no qual encontramos outros familiares com os quais conversamos durante as longas – e geralmente frias – noites de velório. Passado um período, somos chamados a comparecer a outro sepultamento, exatamente daquele familiar com o qual havíamos conversado durante algumas horas naquele velório passado. Num futuro longínquo ou não, não o sabemos, muitos daqueles parentes e amigos estarão conversando por algumas horas, numa noite fria, durante o nosso próprio enterro. E assim gira a roda da vida, a bhavacakra dos budistas.

Talvez, por toda esta visão relativística em relação à morte e ao morrer, é que os grandes mestres espirituais da humanidade sempre foram reticentes em relação à morte e ao que vem depois. Nunca tentaram formar um quadro detalhado do que aconteceria após nossa morte, deixando transparecer que o “hoje e o aqui”, eram mais importantes do que fantasiosas elucubrações a respeito de um estado, sobre o qual provavelmente nem eles tinham uma ideia clara formada.

Finalizamos com pensamentos de alguns filósofos sobre a morte:

Nenhuma desgraça pode atingir aquele que deixou de ser; em nada difere do que seria se jamais tivesse nascido, pois sua vida mortal lhe foi arrebatada por uma morte imortal.” (Lucrécio, Da Natureza)

É decerto medonho viver quando não se quer, mas seria ainda mais pavoroso ser imortal quando se quer morrer.” (G. C. Lichtenberg, Aforismos)

Não morres por estares doente; morres por estares vivo.” (Michel de Montaigne, Pensamentos)

A morte – o senhor absoluto.” (Georg W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito)

O que aguarda os homens após a morte não é nem o que esperam, nem o que acreditam.” (Heráclito de Éfeso, Fragmentos)