Pelas margens se tem os rios.

O que é ser, sem ser. Se não existe o lado escuro, o lado claro perde a razão de existir. Em um dia perdido na história de uma escola pública de um país onde quem não morre precisa provar que está vivo, um idoso perguntava para uma criança de poucos nove anos, “... e se existisse somente a noite, o que seria dela?” A criança pensou, ao seu modo, no seu ritmo e, sem muita convicção respondeu: ela não existiria. Para que ela exista não é preciso que haja o dia?

Uma inquietação está, a cada dia, mais presente, levando profissionais de todas as áreas do conhecimento a se questionarem sobre os rumos que serão dados aos jovens em processo de formação, em um país exposto a tantos desmandos, descaminhos e a falta de norte para as decisões mais simples. Na infância e na adolescência uma indefinida sensação de falta de respostas. Um infindável rio de perguntas parece fazer ondas que se propõem a perturbar a sociedade em busca de respostas, de soluções, de encaminhamento.

Com a constante metamorfose que identifica a necessidade natural do ser humano em mudar, em incorporar novos saberes a cada novo dia, salta como um sortílego a olhos vistos: limites. Seria um rio, um rio sem suas margens definidas e firmes no seu papel de guardiãs das águas, das plantas ribeirinhas, da fauna e da flora terrestre ou aquática? Como dá limites ao rio sem contrariar seus impulsos?  A força da água se sobrepõe às expectativas de quem se atreva a enfrentá-la. Os limites que o rio encontra, ao longo de sua caminhada até alcançar o seu destino é que definem sua silhueta, seu perfil, seu estado de espírito, sua força e sua presença no universo da geografia que o mundo tanto reverencia.

A água que corre pelo rio traz em si o seu estado físico indiscutível e inalterado: estado líquido. Se congelar, para. Se evaporar seca. Como a água que congela para, a criança que não desperta para conhecer o novo ela perde o sentido; como a água evapora e esvazia o rio, a criança que não dispõe de bases sólidas para o seu desenvolvimento pleno ela perece ainda na fonte; se as águas de um rio permanecem líquidas e cristalinas, esse rio vive e avança e produz, e cria múltiplas oportunidades de fertilizar solos por onde passar, a criança está prestes a receber informações, processá-las; receber lições e compreendê-las, cumprir orientações e difundi-las; aprender com o exemplo e reproduzir conhecimentos. Como a água líquida e cristalina do rio fertiliza e cria vida por onde passa, a criança livre dos medos, das frustrações e do isolamento seguirá decidida para cumprir o seu papel: adulto responsável.

Nossas Margens são os nossos limites. Os nossos limites é o que nos mantêm atentos aos resultados obtidos pelas nossas ações e aptos para o enfrentamento de novos desafios  “É preciso que reconheçamos as nossas próprias margens, para que possamos construir limites com os jovens”. Não se cobra o que não se tem capacidade de compreender nos outros. Não é digno para um adulto, principalmente se esse adulto for um pai responsável pela formação de um filho, cobrar desse, aquilo que nunca lhe foi ensinado. E não lhe cabe inferir que a criança saia, porque aprendeu por si mesma. Afinal, criança não existe para saber, se não souber; não existe para fazer, se não souber; se não existe para assumir responsabilidade se não souber. E, se não sabe, os pais não ensinaram.

Numa analogia pura e simples, para a comparação estabelecida entre os limites de um rio que não as suas margens. (especificamente, duas margens. Não uma, nem três)  e os limites de uma criança que são os seus pais, ( seus pais, não seu pai, sua mãe...) O rio precisa dos seus limites para seguir o seu curso. A criança depende de adultos: seus pais, para que os professores possam dar segmento aos ensinamentos fixados, praticados e internalizados pelas crianças. Agora “educadas” para aprender as lições do “ ter”. Sim, porque as lições do “ser” já foram apreendidas.

Considerando a complexidade das lições que foram ensinadas às crianças, por medida de segurança é preciso que pais e professores tenham igualmente reconhecido os seus próprios limites. É preciso que reconheçamos as nossas próprias margens, para que possamos construir limites com os jovens, sem o reconhecimento desses limites, seguiremos o longo processo de crescimento, sem que sejamos afogados por esse rio. Rio de margens, rio de limites, rio da vida.

Para que um adulto esteja apto a enfrentar os seus próprios limites ele precisa trazer no seu histórico, marcas de uma aprendizagem que lhe custou  algum sacrifício. Sacrifício aqui visto como “catraca” imposta pela sociedade sem que ultrapasse o sentido de limite, não se torne um impedimento. O Rio não é impedido de avançar, quando ele respeita suas margens. Uma criança não tem o direito de definir o que lhe convém a partir do que lhe é apresentado pela vida, pela idade, pelos fatos e pelas dificuldades.

O que precisa ficar evidente é que criança é criança e, como tal, ela não tem que ter o celular igual ao dos pais; o espaço igual ao dos pais; o olhar, igual ao dos pais; a coragem igual à dos pais; a liberdade igual à dos pais. Criança tem que pensar que pensa, mas tem que fazer o que lhe é  determinado e da melhor forma possível. Na linguagem jovem: sem “chiar”. Para ser um adulto completo é preciso ter limites. Para que uma criança venha ser um adulto completo precisa de limites.

E não se trata de uma margem direita, ou uma margem esquerda, mas de margens que indiquem um encaminhamento para objetivos bem definidos capazes de seguir, sempre pautados em princípios morais a partir de exemplos deixados por gerações que em seu tempo acertaram o melhor perfil de seres humanos equilibrados. “...assim caminha a humanidade”.

“Uma criança estava sozinha no aeroporto a espera do seu voo. Após esperar um tempo foi colocada na fila de embarque. Quando o avião decolou a criança começou a colorir um desenho. Os passageiros se admiravam ao ver a tranquilidade daquela criança mesmo estando só. De repente, o avião entra em turbulência e todos os passageiros ficam desesperados, com medo. Mas a criança continuava tranquila em sua poltrona colorindo seu desenho. Quando a turbulência passou, uma passageira que estava ao lado da criança perguntou: Você não ficou com medo da turbulência?' A criança, sorrindo, respondeu: Não. O meu pai é o piloto!'...”

O pai sempre será o piloto para os seus filhos. Independente das circunstâncias quem envolvam os dois níveis etários, não se pode perder de vista quem é que determina o ritmo da vida. O diapasão deve ficar sempre de acordo com o que precisa ser feito. As mudanças são iminentes, os desafios constantes, mas não cabe a um pai, justificar sua “omissão” enquanto provedor de lições que apenas cuidou de prover o supérfluo, o desessencial e, sob a desculpa do sinal dos tempos, deixou de estar presente na formação do seu filho. No limite do seu rio, nas margens de suas limitações,  investindo como se estivesse promovendo o seu próprio desenvolvimento biopsicossocial.

*Sebastião Maciel Costa