PAUL TILLICH: UM INOVADOR PERIGOSO?

Por Werner Schror Leber | 15/05/2020 | Filosofia

O nome de Paul Johannes Oskar Tillich é bem conhecido por pesquisadores e comentadores na área da teologia e ciência da religião aqui no Brasil, mas na grande maioria dos centros de estudos da filosofia no Brasil, especialmente as universidades públicas, ele é quase um desconhecido.2 Tillich teve formação filosófica e teológica. A sua obra teológica é uma das mais significativas de todo o século XX, mas é também, sobretudo filosoficamente relevante e inovadora à medida que também recebeu críticas severas da tradição evangélica, especialmente da assim chamada Teologia Liberal da Europa, que tinha em Karl Barth seu mais expressivo representante.3 Nesse segundo aspecto se encontra a grande diferença de sua teologia em relação a outras, sobretudo às teologias da história de seu tempo na Europa. A maneira como entendeu a filosofia e a intercambiou com problemas teológicos, desde a antiga ao idealismo passando pelo existencialismo contemporâneo, tornou a sua teologia interessante ao mesmo tempo em que despertava críticas e a ira de conservadores. Esse intercâmbio, evidentemente, não é novo. Ao longo da tradição, filosofia e teologia tiveram um relacionamento intenso, mas esse relacionamento é posto em novos patamares por Tillich à medida que ele considera as teses naturalistas e sobrenaturalistas da tradição filosófica equivocadas para a abordagem do problema. O pensamento de Tillich ultrapassa os ditames que caracterizam o pensar teológico tradicional. Ele foi notadamente um filósofo da religião, mas mais do isso, as particularidades com que analisou o problema teológico permitem que ele seja considerado um filósofo da teologia4 . Ele soube captar detalhes que moldaram a filosofia em suas diferentes épocas históricas e foi um leitor crítico da tradição filosófica ocidental, de modo que as recepções disso se mostram de forma muita criativa em sua ontologia, e dela para o todo de sua teologia. As recepções que Tillich teve da filosofia e a forma criativa com que as utilizou na maioria de seus textos, foi o que fez dele um pensador peculiar da tradição cristã. Parmênides, Platão, Aristóteles, sua repercussão no estoicismo e na Patrística, são bem presentes em sua ontologia. Mas o mesmo ocorre também com Kant, Heidegger, Böhme, Schelling, Hegel, Kierkegaard e Husserl. Por esse motivo uma abordagem crítica de sua ontologia implica também diretamente o intercâmbio entre a filosofia e a teologia exigida para o seu sistema. A invocação da filosofia como fundamento e princípio das formulações teológicas não se mostram apenas em suas obras mais consagradas. Em 1953, quando se encontrava no Seminário Teológico Unido de Nova York, Tillich proferiu uma série de palestras sobre a formação do pensamento cristão e os pressupostos filosóficos que o orientaram em seus distintos períodos. Essas palestras exemplificam como ele costumava interpretar o cristianismo do ponto de vista histórico e apontar que a teologia foi sempre recorrente a determinados princípios filosóficos – a determinadas ontologias – que lhe serviram como orientação5 . Certamente, esse não é o seu mais importante texto, e menos ainda o é para os objetivos desta dissertação. Mas ele é importante porque permite mostrar que Tillich não apenas reúne dados históricos da filosofia, mas, ao contrário, interpreta princípios filosóficos e os relaciona criativamente a diferentes sistemas teológicos do período cristão. 

CAMINHO HETEROGÊNEO: ONTOLOGIA CONTRA O HISTORICISMO

Diferentemente da maioria dos teólogos contemporâneos, optou por um caminho peculiar para elaborar seus pensamentos. Além da filosofia, sempre primordial e constantemente solicitada para a consecução de sua teologia, Tillich era familiarizado também com outras áreas, como a história, a música e a arte.6 E todas elas, de uma forma ou outra, ocupam espaço nas suas obras. O que permite dizer que os escritos de Tillich, de modo geral, são permeados por um dinamismo eclético que ultrapassa o campo estritamente teológico. Por esse motivo também sua teologia não seguiu uma rota pautada pelo conservadorismo da clericalidade teológica. Antes, suas obras constituem uma crítica ao conservadorismo que tornou a teologia cristã refém das concepções de mundo modernas. A trajetória de Tillich diferencia-se daquela percorrida pela maioria dos teólogos contemporâneos por várias razões. A mais crucial de todas, indubitavelmente, está na ascensão do nazismo e a consequente Segunda Guerra Mundial, que o obrigou a deixar sua pátria, a Alemanha. É certo que a saída de sua terra natal contribuiu incisivamente para modificar suas perspectivas. Mas também não se pode dizer que as suas peculiaridades de teólogo inovador se devam somente a isso. Tillich se compreendeu como alguém que precisa estar comprometido com os princípios cristãos e a sua tradição. Muito antes do nazismo essa característica já se mostrava em seus escritos e, por diferentes caminhos, se manteve por sua vida toda. Porém, pensar a tradição não significa posicionar-se tradicionalmente. Apresentar-se como um teólogo comprometido com a tradição e o seu respectivo círculo teológico não é simplesmente sinônimo de tradicionalismo. Na perspectiva de Tillich, pensar a tradição é criticá-la desde os seus fundamentos e confrontála com as modernas concepções de conhecimento7 . É no espaço da vivência existencial alienante, onde a preocupação suprema atinge o crente, que a teologia precisa saber dar respostas. É dali que surge a inovação tillichiana. O que significa que Tillich foi um pensador que se situava na praticidade da teologia, na dinamicidade do Evangelho frente aos desafios que o crente enfrenta nas ambiguidades da vida, naquela relação que ele mesmo designou como “Divino/Demoníaco”.8 Ele não queria fazer especulações filosóficas com assuntos teológicos sem comprometimento vivencial. Não basta uma filosofia teológica ou uma filosofia da religião. A teologia não pode ser apenas um exercício acadêmico. Porém, “prático” não deve ser interpretado como antiteorético, conforme se lê na seguinte passagem: Na qualidade de teólogos podemos falar, e devemos falar, a respeito de tudo que existe entre o céu e a terra – e até mesmo além da terra. Mas essa fala só se torna teológica quando faz parte de nossa preocupação suprema, quando se relaciona com o que decide sobre nosso ser ou não ser no sentido de nosso destino e significados eternos. Esta é a verdade muito mal-entendida presente na afirmação de que a teologia é uma disciplina prática. Quando entendemos “prático” em oposição a “teórico” a afirmação torna-se totalmente errada, uma vez que a verdade é um elemento essencial daquilo que nos interessa em última análise. A teologia é prática quando considera seu objeto em relação profunda com o nosso ser. Preferimos empregar o termo “existencial”, com Sören Kierkegaard, em lugar do temo “prático” por causa da deformação popular que afetou o termo, principalmente por causa do sabor antiteorético que tem, e também por causa da tentativa da escola Ritschliana se separar a teologia da filosofia e de, ao mesmo tempo, sacrificar a verdade à moral. 9 O sentido prático da teologia, que ele denomina também “suprema preocupação”, é a situação existencial – o problema teológico de cada situação específica com a qual a teologia deveria estar comprometida10. O ponto de partida da filosofia e da teologia é o mesmo, segundo sua percepção, ou seja, a problemática existencial. Tillich reivindica as noções da filosofia existencialista por considerá-las em melhores condições de expressar a relação entre a fé cristã e a preocupação ontológica do ser humano atual. Por essa razão que o pensamento de Tillich é uma teologia onde os princípios filosóficos – a ontologia - são solicitados a comparecer porque conceitualmente são mais bem apropriados para tratar da problemática religiosa. Tillich pode ser caracterizado como filósofo da teologia.11 Os assuntos capitais da teologia, como, por exemplo, a revelação, não são produtos constituídos pela mente. Não são objetos de um modo direto. A filosofia participa porque ontologicamente tem melhores chances para enfrentar os temas aos quais a revelação divina responde e corresponde. A rigor, como se sabe, toda filosofia tende à ontologia12. Os elementos ontológicos são sempre os mais centrais e limítrofes na filosofia, por isso Tillich os julgou essenciais para a metodologia de sua Teologia Sistemática.13 Mas é necessário perceber que: A filosofia, embora conhecedora dos pressupostos existenciais da verdade, não vive com eles. Volta-se imediatamente ao conteúdo e tenta apreendê-lo diretamente. Em seu sistema faz abstrações da situação existencial de onde esse conteúdo se origina. Não reconhece nenhum compromisso com tradições ou autoridades especiais. 14 A teologia não é uma filosofia e nem pode sê-lo. Também Schleiermacher e Kierkegaard sabiam disso muito antes de Tillich. Em termos conceituais a teologia pode estar em desvantagem à filosofia, mas em comprometimento vivencial jamais. Tillich tinha clareza de que a teologia estava órfã no mundo secularizado, mas não derrotada. A religião e a fé encontravam-se em desvantagem diante da lógica filosófica e das ciências. Estavam fora de moda e por isso não conseguiam legitimidade acadêmica e dignidade ontológica. Era necessário um outro critério para tratar desses assuntos. A existencialidade, a vida com todas as suas implicações sombrias, é o começo de sua teologia. Tillich esteve alinhado com as correntes filosóficas críticas da tradição cartesiana objetivista de nossa filosofia, como, por exemplo, Kierkegaard e mais tarde, o método fenomenológico de Husserl. O comprometimento com aquilo que toca o ser humano de modo incondicional, a trevas da fé como queria Kierkegaard, constitui o primado da tarefa teológica. A revelação indica a fronteira e não podia ser destruído pela autonomia racional, o eros filosófico, porque a sua constitutividade transcende a capacidade natural da razão. Nesse sentido, Karl Barth estava certo quando denominou Deus “o totalmente outro”.15 Negá-las não é sinônimo de destruí-las. A racionalidade cartesiana moderna nega, sobretudo o existencialismo ateu de Sartre, mas engana-se quando ao alcance de sua negação. O ser humano é muito menos do gostaria de ser e Deus é muito mais do que se pode saber ou demonstrar. Ainda assim, contudo, mesmo trazendo uma outra proposta para lidar com a tradição cristã na modernidade secularizada, afastando-se do biblicismo dogmático e da teologia natural, buscando nos elementos ontológicos um fundamento mais consistente, Tillich não abandonou a tradição cristã que trouxe do berço. Falou dela de maneira variada e, de certo modo, falou dela também de uma única maneira: sob o crivo da revelação divina incondicional. Incondicionalidade que, sob as suas perspectivas cristãs, tornou-se a ontologia do Logos Encarnado de seu sistema teológico. Construiu uma apologia da fé dessa tradição, que se encontra respaldada em seus muitos textos, sendo a TS o compêndio mais elaborado de suas pretensões teológicas. O que significa que Tillich sempre se compreendeu como um filósofo crítico da teologia ao mesmo tempo em que se compreendia também como um pastor comprometido que precisa trazer respostas aos anseios e aflições do seu rebanho em sua situação existencial específica. Ele mesmo não se deixou sem testemunho disso quando afirmou: Pressuponho em meu inteiro pensar teológico a história toda do pensamento cristão até hoje, ao mesmo tempo em que também considero a atitude dos que duvidam, dos que se afastam e dos que se opõe a tudo que é eclesiástico e religioso, incluindo o cristianismo. Preciso falar a estes. Minha tarefa dirige-se aos que fazem perguntas. É por causa deles que estou aqui. 16 Estava convencido de que o cristianismo, as religiões de um modo geral, são expressões culturais que surgem e desaparecem também. São criações históricas e por isso mesmo desaparecerão. Mas o Cristo não é a igreja, e menos ainda, a filosofia e a teologia. O Cristo surgiu em algum momento histórico determinado (cronos), mas é mais do que a história. O Cristo revelou-se na história, mas sua revelação não é histórica.17 Ele não é uma figura da história e não está sujeito às mudanças desta. Ele não é uma moda passageira, mas sim o fundamento eterno que não pode ser derrotado pela razão técnica. O tempo do Cristo não é cronológico, mas kairológico. O Logos Encarnado, o Cristo, é o fundamento permanente e único do ser. O logos que era praticado na filosofia patrística ressurge em Tillich como ontologia essencial, capaz de correlacionar a pergunta existencial e a resposta incondicional. [...]

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