Pietro Scola – 2020
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Patologia e moralidade

O considerado normal e o apontado como patológico jamais foram lineares e unanimes no decorrer do processo sócio-histórico da humanidade. Em determinados períodos o patológico era visto como um corpo estranho, um antígeno que penetraria um dito organismo e consequentemente perturbaria o seu equilíbrio. Nesse caso podemos incluir espíritos, bactérias, demônios, vírus, etc. Não obstante, em outros períodos mais modernos as patologias eram frisadas por um invés psíquico-individual, ou seja, genéticas, internas e que fazem parte desse próprio organismo. Aqui podemos mencionar a época em que a homossexualidade era considerada doença, a loucura, as deficiências e muitos outros. Nessa perspectiva de causa sui (causa de si mesmo), o patogênico é criado e repercutido pelo e para o próprio organismo.

O objetivo desse texto é aventar como o patológico e o normal não se atém a nenhuma ciência exclusiva, mas escorregam de saber a saber, metamorfoseando-se e trocando de posição conforme o olhar que recaí sobre um dito fenômeno. O âmago passa a ser então a valoração que se dá a um certo acontecimento, que passaria necessariamente por um espectro relacional, ou seja, moral. Etimologicamente, “patologia” vem do grego páthos, que significa paixão ou doença, e lógos, estudo, tratado. Portanto, significa estudo das doenças e paixões. Define-se patologia como o ramo da medicina que descreve as alterações anatômicas e funcionais causadas pelas doenças no organismo. Interessante notar que, em nenhum dicionário, especializado ou não em termos médicos, encontra-se averbado o termo patologia como sinônimo de doença, enfermidade ou afecção. “Possivelmente, estamos diante do que os linguistas chamam de neologismo de significado; a mesma palavra incorpora outro significado além do primitivo, tradicional. Como a evolução semântica das palavras é imprevisível, bem pode ser que tenhamos no futuro de acrescentar mais um significado à palavra patologia.” (Rezende, 2007. p. 102)

Adiante, notemos a frase "A saúde é a vida no silêncio dos órgãos". Esta frase famosa do cirurgião francês René Leriche indicava como a doença é, em última instância, o que faz o corpo falar. A partir desta frase podemos pensar duas vertentes: a primeira na qual a experiência da doença é o que rompe uma certa imanência silenciosa entre o sujeito e o seu próprio corpo; é ela que transforma o corpo em um "problema" que determina exigências de saber e configura necessidades de cuidado e intervenção (Safatle, 2011), segundamente nos coloca concomitantemente um saber que deve ser sempre apreendido pelos órgãos e seus funcionamentos, forcluindo o sujeito que ali habita nesse corpo e apregoa um saber que transforma a doença em discurso pronto para ser lido e interpretado pelo olhar clínico. Diferentemente, para Canguilhem (1966) isto implica dizer que a doença só existe, e só pode ser prevenida, pois antes existiu um doente. Isto ainda implica dizer que o primeiro a queixar-se é o doente e, portanto, a patologia do saber médico não pode estar dissociada da realidade do indivíduo. O autor ainda complementa afirmando que "não há nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência e que especialmente no caso que nos interessa, é o ponto de vista do doente que, no fundo, é verdadeiro" (Canguilhem, 2002, p.68).

É verdade que estamos acostumados a pensar que a configuração do nosso saber sobre uma doença é resultado direto do quanto somos eficientes em combater o sofrimento que ela traz. De certa forma isso nos diz que a terapêutica do sofrimento enquanto fenômeno e sua respectiva anulação são categorias suficientes para assegurar o sucesso dos dispositivos clínicos. Todavia, importante salientar que uma tal perspectiva é extremamente ideológica, no sentido de que há um sistema de conhecimentos e disciplinas que leva a uma práxis buscando naturalizar seus instrumentos e rituais de pesquisa, até de justificação. Considerando que a patologia, como anteriormente dito, não é simplesmente uma doença, mas um sofrimento, então seria possível questionar o sofrimento, recoloca-lo em um trilho sócio-histórico?

“Desde o século XVIII, a medicina tem tendência a narrar sua própria história como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experiências, constante e estável, em oposição às teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob sua especulação, a pureza da evidência clínica. [Na verdade, tudo se passaria como se:] Na aurora da Humanidade, antes de toda crença vã, antes de todo sistema, a medicina residisse em uma relação imediata do sofrimento com aquilo que alivia” (Foucault, 2005, p. 53). Quando classificamos como patológico um sistema ou um mecanismo funcional isolado, esquecemos que aquilo que os torna patológicos é a relação de inserção na totalidade indivisível de um comportamento individual. Há uma diferença qualitativa fundamental que atinge todo o organismo com a integralidade de seus processos e funções. Pois não haveria um único fenômeno que se realizaria no organismo doente da mesma forma que no organismo são (Safatle, 2011). Canguilhem chega mesmo a afirmar que na maioria esmagadora dos casos ser doente é simplesmente viver uma vida diferente. O normal e patológico só coexistem no interior de uma relação entre organismo e meio ambiente, não havendo, portanto, continuidade quantitativa entre normal e patológico, mas sobretudo uma descontinuidade qualitativa: “Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores às normas anteriores, serão chamadas patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes – no mesmo meio – ou superiores – em outro meio – serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade” (Canguilhem, 2002. p. 113).

Lacan, em 1966, já nos advertia, no colóquio “O lugar da psicanálise na medicina”, organizado por Jeanne Aubry, realizado no Colégio de Medicina, no Hospital PitiéSalpêtrière, que o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo parece levar a uma falha epistemossomática. “O corpo, em relação à medicina, é considerado um sistema homeostático, em sua pura presença animal, dela excluído o desejo e o gozo que é reconhecido através de suas manifestações, sob a forma de dor e sofrimento”. (Valas, 1986, p. 88). Da mesma forma, Lacan percebeu certa confusão entre os conceitos de normalidade e patologia. Ao discernir a diferença entre as estruturas, desfez por exemplo a dúvida sobre a neurose como patologia ou normalidade. Descrevendo posteriormente as categorias clínicas: neurose, psicose e perversão. Ainda nesse campo, a abordagem da clínica psicanalítica com o normal e patológico passa por um viés mais amplo, segundo Eisenbruch (2010) “A psicanálise salienta a subjetividade do corpo e dos afetos que nele habitam, principalmente a angústia; a importância que o sujeito dá à sua patologia e às circunstâncias dos efeitos patógenos. A angústia reside também na relação vital quando o sujeito se depara com o desejo inconsciente. Desejo que apresenta uma perplexidade diante de seus efeitos. Angústia que nos concerne na medida em que ela está associada com o que prevalece no inconsciente, o que na angústia é efeito da verdade do desejo. A verdade do desejo inconsciente adquire frequentemente uma figura paradoxal perante a psicopatologia. Paradoxo que sublinha o caráter errático e excêntrico do desejo. Paradoxo frente a um corpo que goza de si mesmo. Partindo da demanda de cura em relação à patologia orgânica nos confrontamos com a fissura que existe entre demanda e desejo. O paradoxo reside no fato que a demanda de cura pode ser diametralmente oposta ao que deseja o sujeito.” (p.141)

Para a psicanálise então, haveríamos uma interação com o sofrimento e o sintoma muito semelhantes a frase de Hipócrates em que “antes de curar alguém, pergunta-lhe se está disposto a desistir das coisas que o fizeram adoecer.”

Por fim, segundo Andrade (2008) “Nietzsche também coloca em xeque o vínculo entre saúde mental e a voluntariedade da ação. Questiona a concepção médico-psiquiátrica que toma os atos conscientes e refletidos como saudáveis e os automáticos e incontroláveis, que se contrapõem e vencem a força da consciência, como patológicos. Nietzsche rompe a separação entre corpo e alma, entre instintos e consciência, considerando que todos os pensamentos, sentimentos e ações são guiados secretamente por necessidades fisiológicas, sendo apenas frutos da pluralidade de relações instintuais. Portanto, são sempre resultados da dinâmica relacional e espontânea da vontade de potência. A concepção de livre-arbítrio, segundo a qual é possível deliberar sobre as ações e agir de outro modo do que aquele que se age, é uma concepção falsa. Nietzsche assevera que ‘exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer- subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força”’ (p.288) “Segundo Nietzsche, os conhecimentos, mesmo os científicos, são perspectivos, colocados, ainda que inconscientemente, a serviço da conservação e aumento da forma de vida daqueles que os engendram. Cada um, conhecendo a partir de sua perspectiva, conhece do modo que melhor favorece a expansão de sua própria força vital. Nietzsche, com isto, dissolve a separação e a relação de poder existente entre o especialista que sabe e o paciente que ignora. O paciente é o seu próprio especialista, pois é ele quem melhor se conhece, na medida em que se vivencia. E é também o que sabe o que é melhor para si, já que seu conhecimento constitui-se visando sua própria conservação e aumento de vitalidade.” (p.294)

Em conclusão, quando dizemos que algo é normal ou patológico, é necessário avaliar sob qual perspectiva nos baseamos. Todo binarismo é uma tentativa de generalização e consequentemente um ato que esmaga subjetividades. Na clínica ou no cotidiano esses dois elementos constituem uma força disciplinadora que fomenta regimes de visibilidade, intentando posicionar aqueles que são considerados dentro ou fora de um pré-determinado sistema que tenta ser homogêneo. Ao falarmos de saúde ou doença por exemplo, talvez seja um bom caminho contextualizar que não apenas a subjetividade e o psiquismo são singulares, mas até mesmo a corporeidade que ali está acoplada. Assim sendo, poderíamos dizer que o conhecimento teórico de um corpo ou de uma estrutura psíquica apenas seriam validos se também validássemos a subjetividade subentendida. O uso que o sujeito dá ao corpo, bem como as conexões que elege ter em sua vivência são fundamentais para que possamos ter uma manejo clínico como um todo, sempre sabendo que em última estância, a classificação de sofrimento ou prazer parte do sujeito, não de uma voz especializada sobre ele.


Referências bibliográficas

Canguilhem, G. (2002). O normal e o patológico. 5.ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Safatle, V. (2011). O que é uma normatividade vital? Saúde e doença a partir de Georges Canguilhem. Scientiae Studia, 9(1), 11 27. https://doi.org/10.1590/S1678-31662011000100002

Foucault, M. (2005) La naissance de la clinique. Paris: PUF.

Valas, P. (1986) “Horizons de La psychosomatique". In: WARTEL, Roger et al. Le phenomena psychomatique e la psychanalyse. Paris: Navarin.

Rezende, J. M. (2007). Patologia como sinônimo de doença. Revista De Patologia Tropical / Journal of Tropical Pathology, 36(1). https://doi.org/10.5216/rpt.v36i1.1825

Eisenbruch, R. (2000). Leitura e diagnóstico do sintoma orgânico. Psicologia USP, 11(1), 137-153. https://doi.org/10.1590/S0103-65642000000100009

Andrade, D. (2008). Para Além Da Loucura E Da Normalidade: Nietzsche contra a recepção psiquiátrica. Revista de Filosofia Aurora, 20(27), 279-301. doi:http://dx.doi.org/10.7213/rfa.v20i27.1795