Tenho duas grandes amigas que tiram música no marfim alemão.
Duas meninas que brincam de ser bailarinas.
Duas mulheres que socorrem minha fome na madrugada silenciosa.
Que enfeitam meus cabelos e secam minhas lágrimas.
E que escrevem versos tristes e cartas de um amor que jamais direi.

Tenho dois grandes amigos que me mostram as cores do arco-íris depois da chuva.
Dois meninos que aguçam minha curiosidade diante de um Picasso na parede fria.
E me dizem toda a grandeza do mundo que surge do alto da serra.
Recebo deles a dor do abandono da criança suja no sinal.

Tenho dois outros amigos que me chamam a sonhar com Liszt e Chopin.
Por eles entraram em minha vida os trinados na árvore perto de casa.
E o som louco das buzinas que os homens loucos insistem em apertar.
É dessa amizade que ganho todo dia um pouco mais de mim e do mundo.

Outros amigos me levam por caminhos que escolhi e quero andar.
Com eles fujo das armadilhas que me rondam em dias cinzentos de solidão.
E me lanço no desejo cadenciado de encontrar o que se esconde de mim.

Tenho ainda uma amiga genial que me mostra por inteiro ao mundo.
E me arma e veste para as batalhas que enfrento e venço.
É como um general no controle das minhas experiências mais sagradas.

De uns tempos para cá esses meus amigos dizem o que não quero ouvir.

As bailarinas sustentam com dificuldade o alimento que devo levar à boca.
E diante de meus olhos incrédulos exibem vincos profundos que eu não vi nascer.
De uns tempos para cá o horizonte é como um quadro mal pintado.
A música se mudou para a casa do vizinho mais distante.
E a minha voz se mistura com outras tantas que um dia ouvi.

De uns tempos para cá meus amigos estão em mim como eu estou neles.
E estamos todos de passagem, passando como quem vai recolher o trigo que secou ao sol.
Vamos eu e eles com tanta pressa que mal vemos o sino da igreja saudar os novos dias.