PROJETO DE UNIFICAÇÃO DOS COMANDOS DAS POLÍCIAS NO ESTADO DE SANTA CATARINA

Data: 06.08.2003, horário: 10:00 horas:

Estava na sala do Delegado Tim Omar e perguntei pelo pessoal e ele respondeu que Valdir havia estado ali e aguardou um pouco, no entanto, como tinha um relatório para fazer acabou descendo. Já de início perguntei se o pessoal havia assinado o “documento”. Tim respondeu afirmativamente e que estava fazendo uma comunicação interna encaminhando o documento para o Chefe de Polícia. Tim fez referência ao absurdo de terem colocado no “projeto” que os Oficiais do Corpo de Bombeiros seriam considerados autoridades de polícia judiciária. Tim perguntou qual era a minha opinião a respeito do “projeto” e a razão daquelas monstruosidades. Argumentei:

- “Olha Tim esse ‘projeto’ está cheio de erros, mas quem vai estudar isso, quem vai aprovar isso, não entende nada de polícia, então eles aprovam qualquer coisa, dependendo dos lobbies e da vontade do governo. Quando se trata de um projeto da magistratura ou do Ministério Público eles fazem uma obra jurídica procurando se garantir de tudo quanto é jeito e ninguém se arvora a mexer numa vírgula. Agora, quando se trata de polícia é um samba de crioulo doido, todo mundo na polícia quer apitar. Eles já fazem de sacanagem, procuram se cercar de um monte de garantias, tudo dentro daquela ideia imperialista, expansionista, invadem competência dos outros. No caso do Corpo de Bombeiros a luta deles é acabar com os ‘voluntários’, criar obrigações para a sociedade em termos de laudos de incêndio, funções periciais... Imagina, compara uma carreira de “Bombeiro Voluntário” e uma de “Bombeiro Militar”. É brutal, o voluntário é uma mão de obra barata, você os velhinhos lá trabalhando com sessenta, setenta e até oitenta anos, com amor ao trabalho, ganhando um salário de INSS. Já o militar faz carreira igual a de Oficial da Polícia Militar, ganham mais do que as Forças Armadas, tem os mesmos direitos, inúmeras vantagens nos vencimentos, e com quarenta e poucos anos se aposentam com salários nas alturas, e quem é que paga essa conta? É aquilo que eu já falei, isso está no sangue deles, construir quartéis, viaturas, barcos, helicópteros, incutir no cidadão a ideia de dependência deles para sua segurança, assim eles vão desenvolvendo programas nas escolas para crianças, procuram mitificar heróis do salvamento, do fogo..., procuram doutriná-las no sentido de cultuar uma imagem favorável, que são imprescindíveis à sociedade que inocentemente acaba aceitando isso tudo por que não vê uma outra opção, aliás, eles não deixam crescer nada, podam, fazem lobbies junto ao governo, aos políticos... Eles acabam criando na sociedade um sentimento favorável à instituição de tal forma que questionar a organização deles se torna antipatriótico, e nisso trabalham a história, criam medalhas, fazem comemorações cívicas... E tu já visses, o tamanho do Estado vai ficando cada vez mais pesado, porque isso importa em impostos, orçamentos...  e quem é que paga a conta? Eles não querem nem saber, não tem limites. É um crime acabar com os Bombeiros Voluntários, uma mão de obra bem mais barata, salários dentro de um padrão suportável para as prefeituras que fazem convênios com o Estado. Mas eles são que nem trator, está no sangue deles, na doutrina, fazem tudo isso de forma velada, e aí de quem for contra os seus interesses. É como o caso das Polícias, não existe dentro da sociedade um poder, uma instituição responsável por fazer a reengenharia do Estado, das instituições... eles não deixam e as pessoas cada vez mais com sua capacidade de reação comprometida para reverter esse processo de dominação. Olha só o nosso projeto de mudar o modelo das Polícias?”

Tim permaneceu em silêncio ouvindo meu desabafo, dando sinais que concordavam com meu raciocínio, porém, não externava nenhuma opinião. Em razão disso, partir para completar meu raciocínio:

- “Olha Tim o que eles querem é fazer de conta que estão trabalhando, que existe um ‘projeto’, que estão discutindo alguma coisa. É uma palhaçada. Eles vão empurrando com a barriga e as pessoas não conhecem as instituições por dentro, só a imagem que é repassada. Apresentar um projeto desses cheios de erros, longe do que são nossas aspirações é brincadeira. O que nós estamos apresentando aí não vai dar em nada. É só para a gente dizer que fizemos alguma coisa, que estamos trabalhando, e como você mesmo já falou uma vez aqui, isso é uma mega fractal, a sociedade não está nem aí, e eles se aproveitam, atuam pelos bastidores, vão empurrando com a barriga e aprovam tudo...”. 

Tim pareceu impressionado com meu parecer e me olhou sério,  disposto a referendar todas as minhas palavras, tudo o que eu tinha escrito. Acabamos entrando numa outra “fractal” e eu fui comentando:

- “O cérebro humano é como um prédio. Imagina vários andares, setores. Se você não visitar os vários andares regulamente, o que vai acontecer depois de alguns anos? Imagina aqui no nosso prédio,  você pega o elevador e vem para o quarto andar e entra direto na tua sala? Faz isso durante a alguns anos... Pois é, a questão é multidisciplinar. É por isso que é importante você procurar durante a vida conhecer de tudo, se interessar por tudo, aprender novas habilidades...  Eu li um livro chamado “ecologia do cérebro” muito bom e é isso que propõe...”.

Tim pareceu impressionado e se interessou pelo livro. Comentei que foi uma equipe da Unicamp que escreveu a obra e que era muito boa. Tim pediu emprestado o livro e eu me comprometi a trazê-lo. Em seguida Valquir entrou na sala e ficou meio deslocado com a nossa conversa. Tim comentou algo que parecia meio sem pé e sem cabeça:

- “Mas tu não te sentes mal com esse conhecimento todo? Não tens dificuldades para te relacionar? O meu filho está fazendo doutorado e tem estudado muito... Como é que tu fazes?”

Com Valquir já estava presente eu preferi dar um corte e me reportei a R. W. Emerson:

- “É importante você dar uma atenção especial a sua percepção para que possa conhecer melhor as pessoas, saber onde está pisando e como deve se fazer presente no seu mundo. R. W. Emerson tem uma máxima interessante nesse sentido, prá ti que tá bom no inglês, lá vai: ‘Be wiser than other if you can, but the never tell than!’”.

Tim ficou surpreso e passou a tentar traduzir essa frase, demonstrando um certo esforço. Eu me adiantei para facilitar as coisas e fui dizendo e fiz um comentário contendo mais ou menos uma resposta:

 - “A questão é se procurar ser mais sábio durante a vida. Então, doutor Tim, seja mais sábio, se puderes! É importante buscar sempre mais sabedoria. Esta aqui é bem mais fácil, e boa prá você pensar um pouco: ‘In the Land of the blind,  the on-eyed man is king’”.

Tim comentou que deveria ser alguma coisa com “rei”. Depois pediu para que eu repetisse a primeira máxima de Emerson e ele conseguiu parece que entender e completou: “... jamais dizer, não é isso?” Fiquei quieto em sinal de anuência parcial. Procurei ficar quieto até para que Valquir não se sentisse deslocado e começasse com alguma coisa, mas Tim insistiu:

- “Puxa, que assunto importante. Não imaginas o que nós estávamos conversando. Me empresta esse livro sobre neurociência, quero ler!”

Senti que devia encerrar aquela conversa, antes porém, como Tim estava reclamando de uma pontada na cabeça..., argumentei:

- “Muitos acham que a enxaqueca se dá em razão da baixa serotonina. Mas não é nada disso. A enxaqueca é justamente causada pelo excesso de serotonina. As pessoas comem chocolate, massas, doces, o que acaba agravando o quadro. A hipófise sintetiza...”.

Tim me olhou e sem perder a etiqueta concordou:

- “Sim. Sim, é isso mesmo!”.

Valquir entrou na conversa dizendo:

- “Eu tenho um assunto...”.

Antes que ele terminasse a frase interrompi para dizer:

- “Eu também tenho”.

Valquir me olhou curioso e argumentou:

- “Vamos lá então. Vamos ver se o assunto que tu tens é o mesmo que eu quero tratar”.

Voltei a carga:

- “Eu quero discutir o caso da Sandra Andreatta ontem”.

Valquir me fitou nos olhos e disse:

- “É isso mesmo. Só que não é Sandra Andreatta. É a Sandra Mara Pereira”.

Valquir fez um relato da notícia que tinha saído naquele dia nos jornais:

Reação de taxista impede assalto – Na confusão, delegada e policial civil foram dominados por PMs quando detinham os ladrões - Uma confusão na madrugada de ontem terminou com uma delegada e um policial civil dominados pelos "colegas" da Polícia Militar, em Florianópolis. Mesmo depois de se identificar e estar com o assaltante em seu poder, a delegada Sandra Mara Pereira conta que foi insultada com palavras de baixo calão, revistada e só não foi presa porque o policial civil foi reconhecido por um soldado. O incidente teve início numa tentativa de assalto frustrada contra um taxista. Mauricio Ricardo Tolentino conduzia seu táxi pela Avenida Mauro Ramos quando dois rapazes solicitaram uma corrida até o Morro do Horácio. No bairro Agronômica, o jovem, de 21 anos, e o adolescente, de 17, anunciaram o assalto. Transtornado com o fraco movimento, o taxista acelerou o veículo em direção à 5ª delegacia da Capital. "Estou cansado de ser assaltado, e meu lucro naquela hora era de apenas R$ 18. Então, disse para eles que se atirassem todos morreriam, e continuei acelerando", contou o taxista. Com medo, o assaltante de 21 anos pulou do carro em frente ao presídio masculino de Florianópolis. Segundo Tolentino, o veículo estava a 70 quilômetros por hora quando o ladrão deixou o carro. ‘Avistei o taxista entrando no pátio da delegacia buzinando e dando luz alta. Cheguei ao veículo e detivemos o adolescente que estava no banco traseiro em estado de choque’, afirmou Sandra. Taxista é agredido pela Polícia Militar - Desprovida de um carro da Polícia Civil naquele instante, Sandra solicitou o reforço de um policial e entraram no táxi para capturar o segundo assaltante. Em frente ao presídio, o homem foi preso pelo policial que acompanhava a delegada. No mesmo instante, duas guarnições da PM chegaram ao local e teve início a confusão. ‘Saímos às pressas e não colocamos o colete à prova de bala que tem a identificação. Com isso, dois soldados me dominaram e realizaram a revista, mas a minha arma eles não tiraram. Mesmo quando me identifiquei, eles continuaram com palavras de baixo calão e agrediram o taxista’, contou a delegada. Ontem, a delegada encaminhou uma representação à diretoria da Polícia Civil contra os PMs. Ela não repudia a abordagem deles, mas não admite o desacato e a falta de apuração depois de se identificar. O comando da Polícia Militar não quis se pronunciar até ser notificado” (DC, 6.8.2003). 

Depois do relato  sugeri que cada um desse a sua opinião sobre o acontecimento. Acabou começando por mim que argumentei:

“Sinceramente, eu acho que ela errou. Nossos Delegados não podem ficar se expondo. Ela saiu da Delegacia com um policial para atender uma ocorrência quando deveria mandar seus policiais fazer isso. É que nem a história da rainha nas abelhas. Como é que a rainha vai e expor?”

Valdir Batista quis argumentar alguma coisa em favor da Delegada Sandra dizendo:

- “Mas isso já aconteceu comigo”.

Voltei à carga:

- “Não. Nossos Delegados não podem se expor assim em ocorrências simples. Tudo bem se tiverem que sair à campo numa ação planejada, num caso de importância... Mas uma vítima está registrando uma ocorrência na Delegacia e o Delegado ouve o relato e já pega um policial e sai atrás do ladrão por aí? Não dá. Se todo Delegado fizer isso quem é que vai comandar o quê? O serviço na Delegacia acaba parando porque o Delegado está na rua atrás de marginal. Quem tem que fazer isso são os policiais. Excepcionalmente os Delegados devem sair em diligências. Aí acabou acontecendo o que ocorreu. A Sandra Mara acabou sendo algemada por um soldado da Polícia Militar. E vocês viram como é que acabou a nota no jornal? O comando disse que se negaria a comentar o fato. Devem estar todos rindo da nossa cara lá, bem feito. Ela foi se nivelar por baixo. Vê se um juiz, um promotor faz uma coisa dessas. Ninguém!” 

Valquir intercedeu para dizer:

- “Eu concordo com o Felipe. Tenho o mesmo pensamento. Eu já participei de uma diligência com a Sandra. Nós fomos até o Morro da Caixa  e eu estava no comando da operação e quando eu me dei conta a Sandra estava com um capuz preto na cabeça. Eu olhei aquilo e perguntei para ela: ‘o que é isso Sandra? Pra que tu precisas esconder o teu rosto? Tu não és uma autoridade policial?’ Não é importante que os Delegados sejam conhecido na sua comunidade? Imagina que coisa bonita o Delegado ser conhecido, ser respeitado. Não, a Sandra chegou lá com o capuz na cabeça e todos os policiais que estavam com ela também estavam. Brincadeira. Eu disse para ela tirar...”.

Desde o início da conversa com Tim Omar eu estava ainda com Suzana Half na cabeça, lembrando a conversa que tivemos no dia anterior à tarde. Ela me relatou o porquê das diferenças entre seu marido e o Chefe de Polícia Dirceu Silveira. Suzana lembrou que quando seu marido era Delegado Regional de Canoinhas Dirceu Silveira era o Delegado de Comarca de Porto União e era seu subordinado. Tudo que Suzana relatou havia me deixado com o estômago embrulhado, mas de qualquer maneira era a palavra dela... 

Voltei meus pensamentos para o momento e lembrei que na reunião de ontem Braga havia lembrado o caso de um Diretor, cujo processo disciplinar estava sendo engavetado politicamente. Ouvi Valquir dizer:

- “Tem que se aposentar esse pessoal. A Emenda Constitucional Vinte prevê que as carreiras que atuam em atividades de risco poderão ter aposentadoria especial. A Lei Complementar Cinqüenta e Um continua em vigor. A reforma previdenciária não vai revogar a aposentadoria especial...”. 

Eu perguntei para Valquir se ele tinha certeza disso e  ele se mostrou bastante crédulo:

- “Imagina um policial com sessenta anos correndo atrás de um bandido. Não tem a mínima condição”. Tim do outro lado paredce3u cresceu na sua cadeira:

- “Eu não concordo. Por que o policial não pode trabalhar até os setenta anos. Eu não vejo problema algum!”

O assunto começou a ganhar peso e acaloramento. Valquir insistiu no seu ponto de vista e eu acabei tendo que funcionar como  mediador:

- “O Valquir está dizendo que a aposentadoria do policial tem que ser aos trinta anos, mas se alguém quiser ficar até os setenta? É uma opção. Imagina um policial neurótico, doente... que insista em continuar trabalhando e já deu uma série de problemas? A instituição tem que mandar embora, vocês não acham?”

Tim acabou concordando.  Não sei por que, levantei uma “pena” fazendo uma indagação aos presentes:

- “Vocês sabiam que o Hélio Costa tem um corsa só para uso exclusivo dele?” 

Braga ficou quieto e Valquir se mostrou incrédulo e fez o seguinte comentário:

- “Eu não entendo como é que o Valério também tem um carro só para ele. Por que o ‘Chefe de Gabinete’  do Delegado-Geral tem que ter um carro para ir para casa?”

A conversa foi se aprofundando e Tim defendeu que Delegados devessem ter um veículo oficial nos seus deslocamentos e citou como exemplo os policiais americanos que depois de alguns anos cuidando dos veículos oficiais têm o direito de opção de compra dos mesmos pela metade do preço. Eu e Valquir ficamos numa posição de intransigência defendendo o patrimônio público. Depois de muito bate-boca lancei uma:

- “Então que perguntemos isso à sociedade, o que ele acha disso. Vamos perguntar ao povo se ele concorda que os Delegados, os policiais, possam usar os veículos oficiais nos seus deslocamentos para o trabalho, fiquem com os carros finais de semana nas suas casas e depois de alguns anos possam ainda adquiri-los pela metade do preço? Simples, vamos fazer uma consulta popular!”

Tim Omar, parecendo contrariado, se mostrou irredutível e eu lembrei que na época que fui Diretor da Penitenciária de Florianópolis, logo que assumi o cargo, uma das primeiras medidas foi colocar o veículo e o motorista do Diretor à disposição do Setor de Saúde... Quando me perguntaram por que eu estava abrindo mão do meu carro oficial, já que nenhum outro diretor tinha agido daquela maneira, era inédito, eu respondi que preferia usar meu carro particular nos deslocamentos ao trabalho ou vinha de ônibus, não podia aceitar que tivesse essa mordomia enquanto setores importantes estavam sem viaturas. Valquir disse esse era também o seu pensamento. Tim lançou uma:

- “Então o doutor Felipe pegava ônibus, andava junto com os bandidos dentro dos ônibus. Que perigo doutor o senhor fazer isso. Fazia isso mesmo?”

Argumentei que fiz quase toda a minha faculdade de Direito pegando dois ônibus, do Bairro Coqueiros até a Trindade... 

(...)”.