Adotou o nome cristão de Catarina do Brasil. É considerada a mãe biológica de boa parte da pátria brasileira.

(Pedro Calmon)

O conhecimento das imagens, de sua origem, suas leis, é uma das chaves de nosso tempo.Para compreendermos a nós mesmos e para nos expressarmos é necessário que conheçamos a fundo os mecanismos dos signos aos quais recorremos.

(Pierre Francastel)

RESUMO:

 Um híbrido entre amor, paixão, sofrimento, dor, permeado pela beleza dessa vivência, valorização das origens da nacionalidade e do mito do bom herói, assim foi plasmada e exaltada a figura do indígena nos trópicos. A literatura brasileira nos apresenta o índio como parte integrante e fundadora da idealização da nação brasileira, que se tornou personagem central dos textos de escritores e poetas românticos no Brasil oitocentista. O objetivo da nossa pesquisa é abordar as relações entre a narrativa literária nacional e o universo imagético oitocentista, do período romântico, no ideário artístico da Academia Imperial de Belas Artes; analisar as iconografias da personagem indígena feminina na Coleção de Arte Brasileira do Século XIX, no acervo do Museu nacional de Belas Artes.

No romance Iracema, narrativa literária de José de Alencar, ou na narrativa imagética de José Maria de Medeiros, percebemos o quanto os autores imprimiram a ideia de nacionalidade, de uma Pátria idealizada em suas obras. A intenção era fazer que seus admiradores entendessem que, através de seus personagens nativos, queriam trazer a público idealizações identitárias representadas por indígenas.

Essas idealizações de heróis caracterizavam uma tentativa de simbolizar uma tradição do Brasil, ou seja, estabelecer uma linguagem brasileira através dos elementos autóctones. Assim, Alencar estabeleceu um consórcio entre os nativos (que fornecem a abundante natureza) e o europeu colonizador (que, em troca, oferece a cultura, a civilização).

Observamos, na obra alencariana, como, por exemplo, em O Guarani (1887) além de outros clássicos como Iracema e Ubirajara a defesa desse consórcio. Assim, em todo momento, a natureza da pátria é exaltada, sendo transformada no cenário perfeito para um encontro simbólico entre uma índia e um europeu, em Iracena.

Já na criação da personagem Paraguaçu, de Santa Rita Durão, é o próprio autor que nos afirma que a razão do seu poema Caramuru (1781) era o “amor à pátria”; embora tivesse vivido quase todo o tempo em Portugal, Santa Rita confirma a tendência nativista de seu poema, no qual narra as aventuras; em parte históricas, em parte lendárias, do náufrago português Diogo Álvares Correia, o “Caramuru”.

Em meio às aventuras do protagonista, o autor aproveita para fazer longa descrição das qualidades da terra, conforme nos cita o próprio Durão em Frutos, caça e pesca do Brasil: “Não são menos que as outras saborosas. / As várias frutas do Brasil campestre; / Com gala de ouro e púrpura vistosas / Brilha a mangaba e os mocujés silvestres” (DURÃO: 1977, p. 114-116).

Assim, na idealização da pátria na narrativa literária de Durão, encontramos uma Paraguaçu feita personagem central, em seu mais conhecido texto, cujo subtítulo, Poema épico do descobrimento da Bahia, remonta ao tempo em que os primeiros europeus chegaram e travaram contato com os nativos.

O primeiro contato de um europeu com os nativos se dá através de Caramuru, o Dragão do mar, que é o nome dado ao português Diogo Álvares Correia que, após sofrer um naufrágio, passa a viver entre os índios Tupinambás no litoral baiano. Como era costume de alguns povos, ele e seus companheiros sobreviventes, iam ser devorados num ritual de antropofagia, mas salvou-se graças a índia Paraguaçu, que intercedeu a seu favor e conseguiu também salvar seus companheiros graças à ignorância dos índios, que não conheciam a pólvora.

Os índios, assustados com a aparição de Diogo e com o tiro disparado de sua arma de fogo (espingarda), equiparam-no a Tupã e passaram a respeitá-lo como sendo uma entidade enviada pelos deuses. Ele se encanta com Paraguaçu, filha do morubixaba Taparica, da nação Tupinambá da Bahia, que era uma bela índia de pele branca.

Diogo é considerado um herói cultural porque ensina as leis e as virtudes aos índios, considerados bárbaros. Já instalado na aldeia, Diego percebe a possibilidade de difundir a fé cristã entre os índios, passa a doutriná-los em uma gruta que havia encontrado e que se assemelhava a uma igreja.

Mais adiante, Diogo ajuda a resgatar a tripulação de um barco espanhol que havia naufragado e vê a possibilidade de retornar à Europa através da nau francesa que viera resgatar aquela tripulação. Parte, com Paraguaçu, deixando para trás as belas índias que haviam se apaixonado por ele, incluindo Moema, a mais bela, que se atira ao mar, em direção ao navio, na tentativa de alcançar o seu amado.

Embora Paraguaçu estivesse prometida para o índio Gupeva, conseguiu unir-se a Caramuru e, quando já tinham alguns filhos, viajaram para a Europa. Ao chegar lá com Caramuru, é batizada na França e recebe o nome de Catarina Alvares em homenagem a mulher do capitão do navio que os levou à Europa. Os dois são festejados e recebem as honras da realeza lusitana. Chegaram a Saint Malo em julho de 1528, onde Paraguaçu foi batizada. Regressando à Bahia, o casal teve importância fundamental no estabelecimento de alianças entre os Tupinambás e os portugueses.

Christovão de Avila, neto da décima terceira geração de Paraguaçu, aborda a importância da celebração que acontece no carnaval, de Paraguaçu junto com o aniversário de Salvador, que se deve a um regresso ao passado, à história da origem da nação brasileira. Ele diz que “Inúmeras pessoas conhecem a figura de Cataria Paraguaçu batizada em Saint-Malo, na França, como Catherine Du Brésil ou ainda Catarina Álvares Caramuru, mas poucas têm a dimensão do seu papel na construção dos nossos costumes, da nossa vida social” (DE ÁVILA: 1999, p.1). Para De Ávila, a celebração dos 450 anos da cidade de Salvador e dessa heroína nacional no carnaval são valiosas oportunidades para levar a todos o conhecimento histórico.

Após a missa que celebrou o aniversário de morte de Paraguaçu, foi anunciada a restauração da Igreja da Graça e da Casa do Castelo D’Ávila que está localizado na Bahia, Praia do Forte.

A relação de Catarina com a paróquia se deu, em 1530, quando a escolhida de Diogo, em um dos seus sonhos, viu, em uma pradaria extensa, os escombros de um navio destruído com os sobreviventes passando frio e fome. Ao lado dos aventureiros do mar, estava uma mulher alva e magnífica, que levava uma criança junto ao peito.

Tomando conhecimento do sonho de sua escolhida, Diogo ordenou que toda aquela extensão fosse explorada em busca da mulher descrita por Paraguaçu. Primariamente, nada foi encontrado. Como o sonho se repetisse, Caramuru fez novas expedições de busca e, em uma delas, achou um grupo com cerca de duas dezenas de navegantes espanhóis que disseram não haver qualquer presença feminina entre eles.

Caramuru regressa à Vila Velha ao cair da noite, onde tem conhecimento de outro sonho de sua esposa com Nossa Senhora.  A santa pedia uma igreja. Logo depois, em outra expedição de busca, Caramuru encontrou, em uma habitação indígena, uma representação da mãe de Jesus com Ele nos braços. Tal imagem viria a ser adorada no altar da Paróquia da Graça, construída por Caramuru e Paraguaçu.

Nas representações iconográficas do século XIX, as aparições da Virgem para Catarina não são mencionadas, no entanto são representados crucifixos adornando seu pescoço. No que se refere ao nativismo, não vemos a presença do aspecto heroico e viril que a literatura louva, principalmente, se analisarmos os textos de Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, por exemplo, já indianistas e não mais nativistas.

Os artistas brasileiros preferiram retratar temas líricos e trágicos, essencialmente românticos, podemos comprovar isso se observarmos o fato de que Aimbire, Atala, Moema e Lindóia são retratas moribundas ou já mortas. É difícil encontrarmos um personagem nativo com caráter de cavaleiro medieval europeu, tal qual Peri e Jaguarê, talvez sendo o único que tenha sido retratado desta maneira seja o próprio Felipe Camarão, quando expulsa os invasores do Nordeste provenientes dos Países Baixos – fato histórico que encontramos na representação da Batalha dos Guararapes de 1879 de Victor Meirelles.

Na opinião de Monterato, o aspecto acadêmico de grande parte das representações também as impediriam de apresentarem uma confecção essencialmente indianista, como vemos em História da arte, com apêndice sobre as artes no Brasil (1978, p.284): “Romance, pintura e escultura, sob a influência do academismo, chegaram a criar um Indianismo superficial, contraditório entre a linguagem formal clássica e os enfeites indígenas”.

Bardi reconheceria que a pintura brasileira com temática indianista teve o seu papel em função de “desenganchar a pintura da época em relação à rotina da temática de gênero do academicismo francês. É o único período em que a pintura e a literatura se contatam” (1975, p.178), mas, em seguida, ele nos diz que “os esforços nos dois setores parecem mais de químicos preocupados em realizar um determinado produto, não dispondo dos elementos indispensáveis ou os tendo tão deficientes quanto adulterados” (p. 178), dividindo com Monterato a opinião de haver um caráter artificial nessas obras.

Luciano Migliaccio (2000), provavelmente, achou um caminho para solucionarmos tal questionamento. Ao explanar sobre Moema de Victor Meirelles, compactua com o artista que:

Reformulou em termos nacionais um outro gênero: a paisagem histórica, que, unindo o indianismo ao romance sentimental e ao erotismo por meio da imagem feminina, tornou-se característico da pintura brasileira durante toda a segunda metade do século. (MIGLIACCIO, 2000, p.  105)

Em verdade, em grande parte das obras brasileiras de temática indianista - nus femininos - se buscava valorizar o cenário (paisagem). Migliaccio defende que, do ponto de vista clássico, o nu feminino na paisagem:

Busca uma harmonia entre forma humana e paisagem, entre erotismo e contemplação da natureza. Moema é, portanto, idílio, mas um idílio trágico, e completa lembrando que as Iracemas e Marabás de Rodrigo Duarte, de Amoedo e de Parreiras ecoam a mesma triste poesia, que Meirelles soube primeiro executar. Demonstram que Meirelles tocou um nervo sensível da imaginação do povo brasileiro. (MIGLIACCIO: 200, p.106)

Provavelmente, podemos associar o nosso indianismo ao orientalismo, salvo que, no orientalismo, valorizavam-se escravas e odaliscas despidas em haréns; já, aqui, encontramos mulheres nuas em harmonia com a paisagem exuberante ou a heroína épica, no caso especial de Paraguaçu.

Entretanto, nas obras O Último Tamoio (1883) de Rodolfo Amoedo, Rio Paraíba do Sul (1866) de Almeida Reis e Alegoria do Império Brasileiro (1872) de Chaves Pinheiro, bem como o Felipe Camarão na Batalha dos Guararapes (1879) de Victor Meirelles são expoentes de um tipo de pintura que sacraliza o índio como herói destemido, neste momento, estas iconografias idealizam o herói típico da nacionalidade brasileira em oposição ao europeu colonizador, como afirma José Leite (1988, p.256).

Já a escultura, na condição de alegoria, tem, no trabalho de Chaves Pinheiro, a identificação explícita entre o Brasil e o índio e, nessa identificação, podemos captar as características tradicionais do índio romântico: forte, robusto, viril, sereno, tranquilo e belo. Se é um trabalho que usa a imagem do nativo como alegoria, também não deixa de ser uma celebração ao índio rousseauniano, ou seja, o mito do bom selvagem, que tem sua origem em Montaigne, quando avistou os índios que Diogo trouxera consigo (e os exibiu para a realeza francesa) supôs a consciência social dos índios em um ambiente estranho a eles e afirma que os mesmos ficaram admirados com as diferenças entre sua terra natal e a Europa (MONTAIGNE: 1987, cap. XXXI).

Com referência à análise/leitura iconográfica da estatueta da índia Paraguaçu (1908), é importante pontuar que, embora a mesma pertença, cronologicamente, ao período republicano brasileiro, esta pesquisa estuda um conjunto temático indianista do período oitocentista na Coleção de Arte Brasileira do Museu Nacional de Belas Artes. Esse conjunto de obras que tem como tema o indianismo está sendo estudada exatamente por formarem esse conjunto que, como os textos literários da época, apresentam a preocupação dos segmentos de poder em construir uma identidade brasileira, mas sob a égide da idealização.

O artista Bernardelli nasceu, viveu, teve sua formação e atuou basicamente no século XIX, logo, seu imaginário e sua simbologia pertencem a este período.

Retomando o tema da iconografia em Paraguaçu, consideramos que a expressão indianismo nas artes visuais, principalmente na pintura e na escultura bem como o tema do nu feminino na paisagem, que também apareceu em outros países latinos, como na Caçadora dos Andes, de1891, do mexicano Felipe Gutiérrez, é uma terminologia que não fecha em uma única definição em função de sua complexidade.

Com a estatueta Paraguaçu (1908), Bernardelli retoma a representação do índio na primeira década do século XX, mudando esteticamente seu modo de representá-lo. Ao invés de um personagem excluído da formação do país, em Paraguaçu, vê-se o selvagem adaptado à civilização e que dará continuidade ao processo histórico do país. Nela, Bernardelli representa a índia colonizada, personagem do livro de Santa Rita Durão, que segura, com naturalidade, uma espingarda 8, a arma de fogo que Caramuru utilizou para surpreender e impor-se aos indígenas.

Concluindo este breve artigo,  foram apontados alguns aspectos de representação da pintura Iracema, de Medeiros e da escultura de Paraguaçu, na arte brasileira, de autoria de Rodolfo Bernardelli, procurando demonstrar como esse escultor se revelou inovador ao longo de sua trajetória ao criar imagens que dialogam com as convenções da escultura de sua época, tanto pela abordagem inserida no conjunto dessa pesquisa como por sua execução formal.

A nível de esclarecimento, como descrito no resumo desse artigo, Iracema e Paraguaçu juntamente com outros personagens como Lindóia, Moema, Exéquias de Atalá, Faceira e Marabá que fazem parte dessa pesquisa e que serão publicados na sequência dos artigos, compõe o conjunto de personagens (femininas) do indianismo brasileiro na Coleção de Arte Brasileira do século XIX, na coleção do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.

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