Para uma filosofia da educação infantil (3) A criança e a infância

Quanto mais simples o objeto de nossa reflexão, mas difícil sua conceituação. A simplicidade beira a evidência. E o que é evidente dispensa as definições, pois se autodefine mediante sua manifestação aos sentidos. Isso se aplica à criança. Qualquer adulto é capaz de diferenciar uma criança de um adulto. Alguns, até em tom de brincadeira, poderão dizer que criança é a pessoa que não é adulta nem idosa.

Em nosso viver cotidiano, sabemos, perfeitamente quem são as crianças. E esse saber do cotidiano nos permite distinguir claramente as crianças dos adolescentes, dos jovens e dos adultos. Isso para a compreensão cotidiana. Entretanto quando queremos desenvolver alguma reflexão ou determinar responsabilidades... esbarramos na delimitação das fronteiras. Uma dessas dificuldades se dá justamente quando queremos entender o que é isso que se denomina de educação infantil.

 

A dúvida

Assim sendo, se estamos querendo saber a pertinência de uma “educação infantil”, além de sabermos a abrangência do que é educação, precisamos saber o que vem a ser isso que chamamos de criança. E qual sua relação com o “infantil”?

E aqui se nos impõe uma primeira dificuldade: quando falamos em ser criança e ser infantil estamos falando da mesma realidade? A dúvida é pertinente pois quando lemos o ECA ( Estatuto da Criança e do Adolescente) encontramos a denominação “criança”. Quando lemos a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) encontramos a denominação “criança”. E assim por diante, mas quando se fala em educação escolar para a criança encontramos a denominação de “educação infantil”. A educação infantil destina-se à criança.

Então, o que caracteriza o ser criança? Qual a diferença em relação ao “ser infantil”? Ou estamos falando da mesma realidade quando falamos em infantil e criança?

Não teremos uma resposta a essa indagação se recorrermos ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Para a lei 8069-90, que criou o ECA, criança é um pessoa que ainda não completou 12 anos, pois se ela tiver idade entre 12 e 18 anos passa, “automaticamente”, a ser adolescente. E permanece adolescente até os 18 anos, quando escapa da tutela do ECA... a não ser que essa pessoa se encaixe em alguma situação especial, pela qual permanecerá protegida pelo estatuto até os 21 anos. Mas o ECA não nos diz o que é a infância, embora defenda os direitos da criança!

Por sua vez as Diretrizes Curriculares para Educação Infantil embora não nos digam o que é, pelo menos nos oferecem algumas características da criança: trata-se de um “sujeito histórico” detentor de direitos; um sujeito que “constrói sua identidade pessoal e coletiva” nas interações; é, por fim, um sujeito que “constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade”. Mas também não nos dizem o que é a infância, embora sejam as diretrizes para a educação infantil.

 

Psicologia e história

Saindo da documentação oficial, não ficaremos menos confusos se recorrermos por exemplo, à psicologia. Para esta ciência não tem uma resposta, mas a indicação de que se deve observar os comportamentos e não tanto a idade, pois existem pessoas com mais de 12 anos que mantêm comportamentos de criancinhas. Ou, então, pessoas com pouca idade e que apresentam comportamentos de adultos. E, evidentemente, crianças com comportamentos de crianças.

Os psicólogos nos informam que a criança passa para a adolescência “por volta” dos 12 anos. E sai da adolescência por volta dos 18 anos. Mas não estabelece limites precisos, como se observa coma legislação. Podemos imaginar que é levando isso em consideração que o ECA acena para a possibilidade de em casos específicos se poder prolongar a período da adolescência até os 21 anos. Mas, também a psicologia não nos informa claramente o que vem a ser a infância.

Do ponto de vista da história se tem a informação de que em tempos diferentes foram criadas concepções diversas a respeito da criança. Pelo menos na história do mundo ocidental se pode dizer que há uma relativa ausência da criança nos documentos históricos. E quando aparecem são mostradas como pequenos adultos. Um exemplo disso está no mundo espartano, onde desde cedo eram preparadas na academia militar, o que leva a supor que as vissem como pequenos adultos a serem preparados para a guerra.

 

Valorização da criança

Seculos depois, nos primórdios do capitalismo, no contexto da revolução industrial, a criança era só mais um operário que, juntamente com as mulheres, custavam menos para o dono da fábrica. Em inúmeras ilustrações desse período se podem ver crianças ao lado de senhoras trabalhando no interior de fábricas inglesas. Isso indica o grau de exploração a que eram submetidos o mundo feminino e o infantil. As crianças e as mulheres eram sinônimo de baixos salários e alto lucro para os donos do capital.

Mais alguns séculos se passaram e quando chegamos aos nossos dias cresce o discurso pela valorização do infantil e do feminino. E de fato isso se fez: criou-se o discurso pela educação infantil e nasceram as creches e as escolas onde as crianças permanecem aos cuidados de alguns adultos para que as mães possam se dedicar mais integralmente ao trabalho em seus empregos, sem a preocupação de parar para alimentar os filhos. Deixando seus filhos num ambiente escolar as mães operárias passam a dedicar o mesmo tempo que os homens ao emprego e, por isso, começam a reivindicar equiparação salarial.

 

Sem voz, mas criativo

E aqui podemos nos deter no significado do infantil e da criança. A origem etimológica de infantil é o latim. Essa é uma palavra que tem a ver com uma fase da vida da pessoa na qual ela não dispõe de uma fala própria (o in – como prefixo de negação – acompanha o fan que é a partícula do verbo falar. Daí o infans, incapaz de falar, o sem voz). Por isso a necessidade de amparo do adulto sobre o mudo infantil. O infante só tem voz quando sua voz é a do adulto; pode falar quando sua fala é a fala do adulto.

Já que o mundo infantil é o do que não tem voz e a fala do infantil é a fala do adulto. O adulto passa a dizer que nesse mundo infantil a criança é um ser com amplas possibilidades e capacidades de produzir novidades. Embora vivendo um período “ser sem voz” (infans) a criança é o ser capaz de criar (sentido etimológico da palavra criança).

Como a criança vive o mundo infantil – aquele que não tem voz própria vive um período criativo – deve ser confinada ao ambiente escolar onde, mediante a voz de comando do adulto, pode ser conduzida no processo criativo. E assim a escola infantil ganha ares de importância, não porque liberou sua mãe para uma jornada de trabalho externo ao lar, onde desenvolve outra jornada de trabalho; mas porque potencializa naquele ser sem voz (do mundo infantil) sua capacidade criadora, pois pode viver como criança.

 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO