Para sepultar de vez o defunto chamado “Reforma da Previdência” (2ª PARTE)

Outra questão importante pouco analisada, dentro da discussão da previdência, é sobre as diferenças entre os dois regimes de previdência. No Brasil, temos o Regime Geral de Previdência Social – RGPS, que conta com cerca de 53 (cinquenta e três) milhões de contribuintes; sendo a maioria empregados do setor privado e empresas de economia mista (80%), contribuintes individuais (16%), trabalhador doméstico (3%), e outras categorias (1%). O outro é o Regime Próprio de Previdência Social – RPPS, com cerca de 7 (sete) milhões de contribuintes; funcionários públicos estatutários e militares em atividade.

São duas realidades bem diferentes e, por isso, devem ter suas análises e propostas separadas. É preciso maior transparência para informar esses dados para a sociedade.

O regime Geral de Previdência Social - RGPS, representa a maioria das aposentadorias; cerca de vinte e nove milhões de aposentados. Nesse regime, a média das aposentadorias é de R$ 1.170,00 reais, sendo que mais de setenta por cento dos aposentados recebem em torno de apenas um salário mínimo, ou seja, R$ 954,00 que será o valor já corrigido a partir de 2018. (Fonte: www.previdencia.gov.br/reforma).

Já o RPPS tem cerca de três milhões e quinhentos mil aposentados. De acordo com as informações disponíveis, é no RPPS onde se encontram as maiores diferenças entre os salários; com uma maioria (90%) com aposentadoria média de R$ 8.950 e outros 10% com aposentadoria média de R$ 25.000.

O que se precisa discutir com a sociedade é se queremos que o governo federal seja o responsável pelo pagamento dessas aposentadorias bem acima da média do funcionalismo público ou se os funcionários dessas carreiras terão a opção, por exemplo, de contribuírem a parte para um fundo de previdência fechado. As distorções são geradas principalmente devido à falta de definição de um teto previdenciário para algumas categorias. O que gera grande desequilíbrio e injustiça na previdência pública é a média de uma parcela de aposentados de algumas carreiras do Ministério Público que recebem em média R$ 18.000; do Judiciário com R$ 26.300; e Legislativo com R$ 28.500. Isto é a média de uma parcela dessas três áreas. Isto significa que temos aposentadorias bem acima de R$ 30.000.

Na onda da discussão, nas redes sociais, pela aprovação ou não da reforma da previdência, já tive oportunidade de ver propostas das mais absurdas. Uma delas defendia que as aposentadorias dos servidores públicos deveriam ser próximas as dos cargos semelhantes do setor privado.

Nesta discussão não podemos abrir mão da coerência e razoabilidade. Quando uma pessoa faz concurso público para juiz, professor, enfermeiro, promotor, guarda-vidas, médico, carteiro, farmacêutico, economista ou para outro cargo, ele precisa estudar muito, pois a concorrência é também muito grande. Por outro lado, os salários e direitos, são bem maiores que os da iniciativa privada; a estabilidade também é um atrativo e outras vantagens como planos de saúde e aposentadoria. Poderia ser diferente? Sim, poderia. Mas, não podemos deixar de analisar também as consequências, caso este fosse o modelo escolhido, que isto poderia acarretar para toda a sociedade. É relevante e indispensável destacar a diferença entre a natureza do trabalho prestado. Quando você opta em trabalhar em uma empresa privada, você provavelmente irá participar de uma seleção ou poderá simplesmente ser indicado pelo sócio ou dono da empresa. A partir desse momento, você deverá defender os interesses da empresa, do empregador; caso contrário, será demitido. É assim que funciona no mercado de trabalho. Quando você opta em trabalhar no setor público, a primeira exigência é ser aprovado em concurso público. Ao tomar posse, você terá que atender e defender o interesse do cidadão, do contribuinte; deverá defender o interesse do Estado. Geralmente não levamos isso em consideração. O funcionário público, que foi aprovado no concurso, não pode em hipótese nenhuma se sentir desguarnecido ou vulnerável no exercício da função pública. Temos que ter consciência que o servidor público está defendendo o interesse do Estado, o interesse do contribuinte. Ele precisa sentir que tem o “poder de império”, outorgado ao Estado, em suas mãos enquanto estiver no exercício de sua função. Por isso, deve ter estabilidade. A estabilidade, não deve ser vista como um benefício ou uma garantia de emprego para o servidor público. Ao contrário, é uma garantia para a sociedade. É uma garantia para exercer sua função com autonomia. Sua finalidade é dotar o servidor público de poder para não sucumbir às pressões ilegítimas, exercidas sobre seu trabalho, de entes privados na defesa de seus interesses pessoais. Não podemos esquecer que a prestação do serviço público é uma das mais importantes e essenciais atividades de uma sociedade.

Se o cidadão, ao decidir pela prestação de algum serviço através da empresa privada, e não gostar do serviço prestado, ele terá a opção de mudar o prestador do serviço. Para isso, basta trocar de empresa. Mas, se você, enquanto cidadão, não puder pagar pelo serviço privado e decidir pela prestação de algum serviço público, caso você não goste do atendimento você não terá outra opção. Podemos até reclamar, mas a qualidade do serviço não vai mudar de uma hora para outra. Servidor público mal remunerado significa baixa qualidade no atendimento à população. É isso que nós queremos? Temos que ter clareza que edital de concurso público com baixos salários só garante contratação de profissionais de baixa qualificação. Essa é uma decisão que cabe à sociedade decidir. Me desculpe a insistência, pois estou sendo repetitivo, mas, já argumentei diversas vezes que a luta de classes é uma luta política, é luta por interesses. Mas, é também uma luta ideológica. Ela começa a ser travada na disputa ideológica. Se não entendermos essa lógica e essa dinâmica, impostas pela sociedade capitalista, não vamos conseguir fazer política. Precisamos entender que a luta de classes, a luta política, é uma luta concreta, não tem nada de abstrato. Ela traz consequências diretas para nossa vida, ela tem impacto direto em nossa vida material. É lá que se decide tudo que a gente faz, é lá que se decide o preço do feijão, do arroz, de tudo que a gente necessita para sobreviver. É vital discutir esse assunto; precisamos entender que a luta de classes é uma luta de interesses, que a sociedade é dividida em classes sociais. As classes sociais têm classe, econômica e política, dominante. As pessoas antes de se preocupar em fazer política, elas precisam comer, beber, se vestir, ou seja, precisam viver. A classe política dominante sabe disso, sabe que isso joga a seu favor, sabe que antes de mais nada precisamos viver. Por isso que Marx perguntou: trabalhamos para viver ou vivemos para trabalhar? Essa é a verdadeira luta política. É a luta por disputa de interesses; não estamos falando de luta armada. Ela também existe, mas estamos falando de luta ideológica. Disputa de interesse. Luta política.

De outra forma, a política vai estar condenada a ficar nas mãos da classe, econômica e política, dominante. Quem tem condição, econômico-financeira favorável, não está preocupado com a reforma da previdência ou qualidade do serviço público. Isto não vai alterar a realidade de suas vidas. Se alguém de uma família, com boa condição financeira, precisar de um bom médico, não vai depender de hospitais públicos. Certamente irá procurar um bom médico no Brasil ou mesmo no exterior.          

Imagina um juiz federal recebendo salário similar, à média do mercado, de um advogado. Qual a vantagem de estudar tanto para receber o mesmo salário pago por uma empresa privada. Na empresa privada você pode receber uma proposta melhor para trabalhar em outra empresa. Para o funcionário público, não funciona dessa maneira. Se o salário for o mesmo, a motivação e o interesse para entrar no serviço público não será o mesmo. A procura, por parte dos profissionais mais bem qualificados, vai reduzir e, com isso, vai reduzir também a qualidade do funcionário público de um modo geral. É preciso saber se a sociedade está disposta a correr esse risco, a bancar esse ônus!  Se um juiz der uma sentença errada para um réu, devido a sua falta de competência para analisar o código penal, o problema passa a ser bem complicado. Imagina que por um erro, por incompetência de um juiz, alguém seja condenado a vinte anos de prisão ao invés de dez anos, que seria a pena correta a ser aplicada caso o juiz fosse melhor qualificado para interpretar corretamente o código penal. A sociedade, representada pelos indivíduos, tem todo o direito de decidir se um juiz deve receber o mesmo salário médio do mercado de trabalho de um bom advogado, mas, enquanto indivíduo, também não poderá reclamar se tiver que cumprir uma pena de dez anos a mais! O exemplo é simplista, devo admitir, mas permite entendermos que a questão não é tão simples assim como querem fazer passar algumas pessoas. O servidor público, independentemente de seu cargo, não é apenas um prestador de serviço público, ele é uma instituição da sociedade.

Se a motivação maior para a reforma da previdência é o déficit no orçamento federal, então devemos discutir também a sangria, de R$ 350 bilhões anuais, só com pagamento de juros da dívida pública causada aos cofres da União. Já passou a hora de abrir a caixa-preta da dívida pública.

As instituições não governamentais e os partidos políticos, que são contrários à reforma, não defendem valores absurdos para os aposentados. Ao contrário, somos críticos com as aposentadorias milionárias. Sabemos que existem abusos e defendemos que sejam corrigidos e não permitidos no futuro. Mas, isso deve ser feito a partir de estudos envolvendo o governo e os representantes das categorias. Sabemos que existem beneficiários no RPPS (Funcionários públicos estatutários e militares da ativa), que recebem valores fora da realidade do país. Mas, sabemos também que são uma minoria de 10% entre os funcionários públicos. Os que desejam aposentadorias fora da realidade da previdência e compatíveis com os salários da ativa, devem contribuir para um fundo de previdência a parte, um fundo de previdência fechado, nos moldes dos fundos de previdência dos funcionários do Banco do Brasil, Banco Central, CEF, Petrobras e outras empresas de economia mista. O “Fundo dos recursos” dos dois regimes devem ser separados para facilitar sua gestão.

Como um país continental como o Brasil pode sobreviver, conforme previsto no orçamento de 2018, com apenas R$ 113 bilhões destinados aos investimentos públicos e reservar R$ 1,16 trilhão (Um Trilhão cento e sessenta bilhões de reais) somente para refinanciamento da dívida pública e mais R$ 316 bilhões para pagamento de juros para beneficiar cerca de quinhentos grandes investidores entre banqueiros e grandes grupos econômicos. O que precisa de reforma é a dívida pública, pois se não fizermos este dever de casa, dentro de quatro ou cinco anos no máximo, corremos o risco de amargar a mesma experiência desastrosa que já passaram Grécia, Itália, Portugal, Argentina, Irlanda, Rússia e outros países com alto índice de endividamento. Precisamos de uma comissão de auditoria composta por entidades da sociedade civil organizada para revelar a situação real tanto da dívida pública quanto da previdência social. Basta de boatos e informações desencontradas.

Se realmente fosse necessária uma reforma previdenciária o governo não teria dificuldade em demonstrar claramente os números. Os argumentos carecem de robustez. Déficits devem ser comprovados através de fluxo de caixa e não com afirmações vazias do tipo “se não fizer a reforma não teremos dinheiro para saúde e educação”. Afirmações dessa natureza não passam de ameaças desesperadas de um governo ilegítimo e totalmente “leiloado” entre o que se tem de pior na política brasileira. O maior problema da previdência é político. Há décadas os governos veem desviando recursos do fundo previdenciário. O montante é na casa dos trilhões.

Em todos os países europeus que fizeram algum tipo de reforma previdenciária, o índice que mede o percentual da população com idade superior a 64 anos em relação ao total da “PEA - População Economicamente Ativa”, é superior a 25%. No Japão é de 36%, Alemanha 32%, Itália 31%, Grécia 29%, Suécia e Portugal são 28%. No Brasil esse índice é de apenas 12%, conforme demonstrado, através de gráfico, na apresentação do Tesouro Nacional, do próprio governo, em dezembro de 2017. (Fonte: Tesouro Nacional. Apresentação Dívida pública federal, Dez/2017, slide nº 17).

A situação é tão surreal que o próprio governo usa esse dado para demonstrar que a situação macroeconômica do país está sob controle. O casuísmo e oportunismo não têm limites. Quando é para justificar, em relação ao risco de descontrole da dívida pública, que o ambiente macroeconômico do país está saudável e sob controle, o governo afirma que esse índice é muito bom quando comparado com outros países. Ou seja, a previdência não representa um problema de curto prazo para o país. Mas quando é para defender a reforma da previdência o governo esconde esse dado!

De acordo com estudos desenvolvidos, por diversas entidades da sociedade civil, os modelos macroeconômicos e atuariais apresentados pelo governo brasileiro, para demonstrar o déficit da previdência, não são capazes de apresentar resultados consistentes.

“O primeiro desses três artigos, intitulado "Quão acuradas são as projeções financeiras e atuariais do Regime Geral de Previdência Social?", faz o exercício de aferir o grau de confiabilidade das previsões realizadas pelo governo federal para os últimos quatorze anos (2002-2015). Para tanto, investiga os resultados previdenciários do RGPS previstos em cada Anexo IV da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) dos anos de 2002 a 2015 e os compara com os resultados efetivamente realizados, divulgados nas estatísticas oficiais. Constataram-se erros entre o previsto e o realizado, como se deve esperar de qualquer previsão. Mas encontraram-se também erros de elevada magnitude para a maioria dos anos. Neste sentido, as projeções do resultado previdenciário, feitas entre 2002 e 2015, não são sequer minimamente bem-suce­didas. Ao contrário, são sistematicamente equivocadas no curto prazo. Esses erros são tão consideráveis que, no longo prazo, tornam sem qualquer significado ou serventia todas aquelas previsões. Como confiar na robustez de previsões de longo prazo (para 2060), quando as previsões realizadas para quatorze anos já se comprovam tão extremamente falhas? Esses resultados levaram à conclusão de que as projeções do governo se apoiavam em metodologia impotente para produzir resultados confiáveis. (Fonte: Previdência Social em 2060: as inconsistências do modelo de projeção atuarial do governo brasileiro. Cláudio Alberto Castelo Branco Puty e Denise Lobato Gentil (organizadores). Brasília: ANFIP/DIEESE; Plataforma Política Social. 2017.)

Para confirmar as conclusões apresentadas acima, gostaria de ratificar a mesma conclusão que também pude vivenciar ao trabalhar com projeções de fluxos de caixa de grandes empresas. Trabalhei durante oito anos com projeções de fluxo de caixa para calcular o valor de empresas para posterior venda no mercado de capitais. Com o objetivo de acompanhar a qualidade e nível de acerto, de tais projeções e com intuito de aperfeiçoar nosso trabalho, a Divisão de Modelagem Financeira, da Diretoria de Finanças do Banco do Brasil, criou um índice que media o nível de distorção (desvio das projeções) em relação ao resultado efetivo constatado nos balanços patrimoniais das empresas. Ou seja, demonstrava o quão longe os seus valores se encontravam em relação ao valor esperado. O resultado demonstrou que, já no primeiro ano de projeção, o índice chegava, em alguns casos, acima ou abaixo de 40% do resultado efetivo da empresa.

Diante desses relatos, como podemos confiar minimamente em estudos, por parte do governo, que sugerem a existência de déficits nos fluxos de caixa da previdência para 2060, ou seja, para daqui a mais de quarenta anos! Isso é totalmente surreal.

Está claro que o país não precisa fazer essa discussão de forma tão precipitada e oportunista. Principalmente se considerarmos que o governo não tem o mínimo de credibilidade para fazer essa reforma. O objetivo é na verdade garantir a reforma antes das eleições de 2018; é cumprir as promessas feitas e as exigências dos grandes grupos econômicos que apoiaram o golpe. Os mesmos que sustentavam o governo Lula e Dilma quando era conveniente aos seus interesses. Certos setores da “esquerda”, que abandonaram a “luta de classes” e abraçaram a “conciliação de classes”, precisam voltar a acreditar e a entender que o “grande capital” não tem pátria e muito menos ideologia. Precisam lembrar de tirar Marx das prateleiras. Precisam relembrar que a luta de classes é uma luta política, é luta de interesses. Não é uma luta individual contra este ou aquele capitalista.

Já comentei em outras ocasiões que se aumento salarial desse lucro, os capitalistas não hesitariam em fazê-lo. O problema é que salário é custo, é despesa para o capitalista. Aumento de salário reduz margem de lucro. Uma das principais equações do capitalismo é Lucro = Receita (-) Despesas. O capitalista não dá aumento salarial porque ele é mau ou ganancioso. É preciso considerar que essa é a lógica do capitalismo. Podemos até saber que as margens de lucro no brasil são absurdas, mas isso é outra discussão. Não cabe aqui! O problema é o sistema!

Da mesma forma, quando o grande capitalista não substitui todos os trabalhadores, por simpáticos e obedientes robôs que jamais farão greve por melhores salários, não significa que ele seja bonzinho ou compreensível com a classe trabalhadora. Os capitalistas não fazem isso de forma generalizada porque robôs, não só não recebem salários como também não consomem mercadorias. Não existe capitalismo sem produção, circulação e comercialização de mercadorias. Embora o principal objetivo seja a acumulação de capitais, produzir mercadorias e/ou serviços é o único meio de alcançar esse objetivo principal. Os trabalhadores, além de produzirem todas as mercadorias e serviços disponíveis no mercado, também precisam consumir todos esses produtos e serviços para gerar o lucro para o capitalista. Se esse circuito - sustentado pela exploração da força de trabalho disponibilizada pelos trabalhadores -, de produzir mercadorias para vender e obter lucro e voltar a produzir mais mercadorias para vender o obter mais lucro, for interrompido, não existe mais capitalismo. Sem produção ininterrupta de lucros não se acumula capital. A acumulação de capital é o principal e último objetivo do sistema capitalista. Produzir mercadorias é na verdade apenas meio de produzir lucro. E o lucro é na verdade apenas objetivo parcial do capitalismo. A reprodução ampliada, a acumulação de capital, é o verdadeiro e último objetivo da produção capitalista.

O trabalhador, que representa 99% da população, que é quem produz tudo e consome tudo, recebe apenas um salário que mal consegue sustentar, de forma bem simples, sua família. Por isso, o capitalismo não é interessante para os trabalhadores. Por isso lutamos contra ele. Se não entendermos isso, jamais iremos entender o sistema capitalista, jamais iremos perceber o quanto ele é injusto. A escravidão de nossos irmãos negros foi abolida, no século XIX, com muita luta. Precisamos abolir agora, a escravidão de toda a classe trabalhadora.

Em nenhum momento a FIESP, os representantes do agronegócio e os grandes latifundiários abandonaram ou abriram mão da luta de classes. A luta de classes é inerente às sociedades formadas por classes sociais desiguais. A luta de classes é um fenômeno do “modo de produção capitalista”, é um fenômeno da sociedade capitalista. Não considerar essa realidade é abrir mão de fazer política.

A declaração abaixo consta do relatório da CPI do Senado Federal:

“Importante ressaltar, que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB e o Conselho Federal de Economia - COFECON, divulgaram NOTA CONJUNTA, nos seguintes termos:

Nenhuma reforma que afete direitos básicos da população pode ser formulada, sem a devida discussão com o conjunto da sociedade e suas organizações.

A Reforma da Previdência não pode ser aprovada apressadamente, nem pode colocar os interesses do mercado financeiro e as razões de ordem econômica acima das necessidades da população. .... Sem números seguros e sem a compreensão clara da gestão da Previdência, torna-se impossível uma discussão objetiva e honesta, motivo pelo qual urge uma auditoria na Previdência Social”.

Outra instituição muito importante na defesa da democracia e do judiciário brasileiro, a AJD, também se manifestou de forma contundente contra as irregularidades, inconstitucionalidade e falta de legitimidade para o atual governo propor as reformas previdenciária e trabalhista.

“A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, de âmbito nacional, sem fins corporativos, que tem como um de seus objetivos estatutários a defesa do Estado Democrático de Direito e o respeito às garantias e aos direitos fundamentais, diante das recentes denúncias veiculadas na mídia envolvendo o presidente interino Michel Temer, vem a público se manifestar nos seguintes termos:

1. A partir do golpe que culminou com o afastamento da presidenta democraticamente eleita Dilma Rousseff, passou a ser intensificada uma política de governo já iniciada, voltada aos interesses do capital e pautada pelo desmonte dos direitos humanos e sociais, em clara contrariedade aos preceitos fundamentais previstos na Constituição Cidadã de 1988;

2. A reprovação do atual governo pela ampla maioria da população apenas evidencia que o projeto político executado é diametralmente oposto àquele eleito pelo povo brasileiro em 2014, refletindo clara crise de legitimidade e de representatividade;

3. O cenário político adquire ainda maior gravidade acaso comprovadas as graves denúncias veiculadas na mídia nos últimos dias, envolvendo o próprio presidente interino Michel Temer e inúmeros parlamentares;

4. A crise econômica não pode servir de justificativa para fundamentar o retrocesso de direitos sociais, especialmente em um quadro de instabilidade política e capitaneado por um governante que nem sequer foi eleito diretamente pelo povo, assim como por um Congresso Nacional que, em sua grande maioria, padece de qualquer legitimidade. A vontade da maioria da população não pode ser solenemente ignorada, sob pena de afronta direta à democracia;

A Associação Juízes para a Democracia (AJD) enfatiza, assim, a necessidade de suspensão imediata da tramitação das reformas trabalhista e previdenciária, até que o Poder Executivo seja assumido por representante direta e democraticamente eleito pelo povo brasileiro, a governar de acordo com a vontade da maioria dos cidadãos e cidadãs.” (Fonte: site da AJD – Associação Juízes para a Democracia)

Numa das audiências da CPI do Senado Federal, foi ouvida a especialista da UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro, a professora Denise Lobato Gentil que iniciou sua fala apontando a premissa de que só há necessidade de se fazer uma reforma da previdência se houver um déficit no presente e um déficit no futuro.

Segundo a especialista, “O Governo trabalha com um cenário demográfico aterrorizante, um crescimento feroz da população idosa. Nós teríamos, por exemplo, em 2030, 20% da população total de idosos, e, em 2060, esse percentual cresceria para 35,15% de idosos da população total. Ocorre que, segundo dados do IBGE, a taxa de crescimento da população idosa é decrescente. Nós estaríamos em 2017 no pico do crescimento dessa taxa da população idosa, e daí para frente nós teríamos decréscimos. A despesa no futuro haveria de cair, e não de subir, a depender da taxa de crescimento do PIB”.

Outro argumento muito utilizado pelo Governo para justificar a reforma é que a despesa da previdência não para de crescer. Mas, quando se usa esse mesmo argumento para alertar sobre o crescimento da dívida pública isso não é um problema, esse dado não é relevante.

Se não bastasse todos esses argumentos, temos ainda a manifestação, contrária à reforma da previdência, das CPI da Câmara e do Senado, assim como de diversas instituições suprapartidárias da sociedade civil organizada, conforme lista abaixo:

AMB – Associação dos Magistrados do Brasil;

CPIPREV – CPI sobre a Previdência Social, do Senado Federal;

ACD – Auditoria Cidadã da Dívida;

AJD – Associação Juízes para a Democracia;

A Previdência Social em 2060: As inconsistências do modelo de projeção atuarial do governo brasileiro (ANFIP, DIEESE;

Frente Parlamentar Mista em Defesa da Previdência Social;

Se esta reforma fosse realmente necessária e refletisse de fato a realidade dos fatos e da situação do Brasil, o governo não teria cedido tão facilmente. Bastou uma pressão inicial de uma parcela da população e de algumas entidades reconhecidas e respeitadas, para o relator da proposta apresentar uma nova versão melhorada para facilitar sua aprovação. Onde fica a seriedade desse estudo? O que mais pode ainda ser modificado, na visão do governo? Dá para ter credibilidade um assunto, tão importante para a sociedade, ser tratado com tanta irresponsabilidade e oportunismo? Muitas questões precisam ser respondidas e esclarecidas para a população, a verdadeira prejudicada com a reforma.

“Relator apresenta nova versão da reforma da Previdência para facilitar aprovação. Novo texto reduz o tempo de contribuição na iniciativa privada e exclui todos os artigos relativos ao trabalhador rural e à concessão do benefício assistencial aos idosos e às pessoas com deficiência (BPC). Para o serviço público, não há mudanças em relação ao parecer da comissão especial.” (Fonte: site da Câmara Federal)

Existem diversas irregularidades para serem atacadas e solucionadas antes de se pensar em uma reforma previdenciária que irá influenciar a vida de milhões de trabalhadores e suas famílias.

A CPI do Senado Federal constatou diversas irregularidades que precisam ser estancadas antes da reforma. Uma das mais graves é a sonegação das contribuições pagas por trabalhadore(a)s e apropriadas irregularmente por centenas de empresas. Apenas nos últimos quatro anos, de 2012 a 2015, R$110 bilhões foram sonegados da previdência social. Segundo o relator da CPI do Senado, o Governo Federal tem conhecimento das irregularidades, mas não faz esforço para arrecadar o que lhe é de direito.

Segundo ainda a CPI do Senado, se o Governo Federal fiscalizasse de fato para acabar com o trabalhado sem carteira assinada, mais de 16 milhões de trabalhadore(a)s, o Governo Federal teria só de contribuição previdenciária mais R$ 384 bilhões anuais para o fundo da previdência social.

O relator também destacou que a dívida ativa da União tem um estoque de R$ 1,8 trilhão de reais. Desse total, R$ 400 bilhões de reais são créditos previdenciários a receber. As desculpas do governo são muitas; chega até mesmo a afirmar que, em alguns casos, o custo para se cobrar a dívida não compensa. Ou seja, o governo incentiva a sonegação! Contribuição previdenciária é para ser paga, se a empresa sonega, deve ser penalizada de forma a coibir o crime. A multa tem que ser grande; é assim que a Receita Federal faz com o imposto de renda! O Estado tem que fazer valer seu poder de império. Por isso o nome é imposto!

Porém, depois de ler diversos artigos sobre a questão da dívida pública e previdência social, acabei descobrindo que o verdadeiro motivo para o desinteresse do Governo Federal em cobrar os devedores da dívida ativa é que já existe diversos projetos em tramitação na Câmara e Senado com o objetivo de securitizar a dívida, ou seja, terceirizar, privatizar a cobrança da dívida ativa da União para o sistema financeiro. Seria um absurdo carregado de conflitos de interesses, uma vez que diversos grandes devedores são bancos e outras empresas do sistema financeiro. Se considerarmos que os representantes do grande capital possuem mais de 50% dos votos necessários, é bem possível que acabe sendo aprovado. Outro dado que comprova o desinteresse do governo em cobrar a dívida é o relato apresentado na CPI do Senado pelo representante da ANFIP - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, “O convidado observou que havia 4.180 auditores fiscais da Previdência Social quando da unificação da Secretaria da Receita Previdenciária com a Secretaria da Receita Federal pela Lei nº 11.457, de 2007. Em dezembro de 2016, esse número teria sido reduzido a 900 auditores. Para ele, o trabalho de combate à sonegação previdenciária foi deixado em segundo plano”.

Outra crítica infundada é a de que o Governo Federal tem uma despesa muito grande com a previdência social. Esta é outra mentira; na execução do orçamento público a despesa com a previdência é de 20%, enquanto para a dívida pública é de 50%. Além disso, na composição do orçamento da seguridade social, 49% é receita própria da previdência; sendo o restante vindo das receitas da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), dos concursos de prognósticos (loterias) e do Programa de Integração Social (PIS-Pasep). Isso significa que tanto a seguridade social como um todo como a previdência social especificamente, contam com recursos suficientes, dentro do orçamento da União, para todos os compromissos. O mesmo não acontece com a despesa com a dívida interna. Para bancar todos os compromissos com os títulos que vencem durante o ano e com o pagamento de juros e outros encargos da dívida, o governo necessita buscar recursos através de outras fontes. Uma dessas fontes é a DRU – Desvinculação de Receitas da União, explicada mais adiante.

Outra rubrica desviada para pagar despesas com a dívida é “Outras receitas financeiras (Receitas de não emissão): de uma forma geral, são receitas que não vêm da cobrança de tributos, mas sim de bens e direitos financeiros da União. São receitas como rendimentos de aplicações financeiras, recebimentos de empréstimos concedidos pela União a estados e municípios, dividendos de empresas estatais, resultado positivo do Banco Central etc. A aplicação dessas receitas no pagamento da dívida reduz a necessidade de se tomar novos empréstimos para pagar as dívidas que estão vencendo no exercício, reduzindo efetivamente a dívida total do governo. (Fonte: site do Tesouro Nacional. Por dentro das contas da dívida. 2º trimestre de 2017).

A afirmação acima sobre a redução da dívida é outra falácia apresentada pelo governo. A dívida está em trajetória crescente há mais de quinze anos. Somente nos últimos dezoito meses do governo Temer, a dívida aumentou seu estoque em R$ 540 bilhões!

Além das receitas desviadas, que o governo batizou com o pomposo nome de “Desvinculação de Receitas”, o governo utilizou mais R$ 270 bilhões de reais de receitas “de não emissão de dívida nova”; sendo R$ 215 bilhões provenientes do resultado do Banco Central do Brasil para amortização efetiva da dívida. E outros R$ 55 bilhões referentes a retornos de empréstimos para pagamento de juros no valor de R$ 35 bilhões e os outros R$ 20 bilhões restantes para pagamento também de juros. Os demais R$ 304 bilhões para pagamento de juros, do total de R$ 339 bilhões, foram obtidos com novas emissões de dívida. (Fonte: Frente Parlamentar Mista em Defesa da Previdência Social).

Informação constante do relatório-síntese da ANFIP: “Segundo o governo, “a Previdência é o maior item do gasto público no Brasil” e é muito elevado, na comparação internacional. Mas, como mostrado neste relatório, o maior item do gasto público no país são as despesas financeiras com o pagamento de juros e amortizações que têm impactos decisivos no ritmo de expansão da dívida pública. Em 2015, o Brasil pagou R$ 502 bilhões de juros e R$ 436 bilhões com benefícios previdenciários. Uma diferença de 66 bilhões. As despesas com juros consumiram 8,5% do PIB, ao passo que as despesas previdenciárias foram da ordem de 7,5% do PIB”. (Fonte: site da ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil. Documento-síntese. Página 21)

Os recursos alocados para pagamento dos benefícios e pensões da previdência são frutos da contribuição dos próprios trabalhadores e das empresas conforme determinado pela legislação previdenciária. A complementação feita pelo governo é de apenas 5% do PIB e, mesmo assim, só acontece porque o governo desvia recursos tanto da seguridade social como da saúde e educação para honrar com compromissos com a dívida pública. A situação da previdência não é melhor porque o próprio governo desviou nos últimos sessenta anos recursos que já passam da ordem de trilhão de reais.

O histórico de fraudes contra a previdência vem desde a metade do século passado. Desde a década de cinquenta quando os IAPs – Institutos de Aposentadoria e Pensões foram unificados para a criação do INPS, em 1966, inúmeros desvios foram praticados contra a previdência. Segundo estudos e comprovantes apresentados na CPI do Senado, bilhões de recursos da previdência foram utilizados na construção de grandes obras. A construção de Brasília foi contemplada com US$ 52,5 bilhões de dólares. A transamazônica, a Ponte Rio-Niterói e a Usina de Itaipu foram as que mais drenaram recursos da previdência. Estudo apresentado pelo BNDES, em 1999, demonstrou que entre 1966 e 1999, o Governo Federal havia se apropriado de R$ 400 bilhões de reais dos saldos do fundo previdenciário. Esses valores atualizados alcançariam hoje, R$ 1,5 trilhão (Um trilhão e quinhentos bilhões de reais). Esse estudo e essas denúncias teriam motivado projeto de lei, na época, pretendendo a emissão de títulos públicos para repor esses recursos à Previdência. Tudo indica que não deu em nada!

Outro elemento apontado pela CPI do Senado para drenar recursos da seguridade é a DRU – Desvinculação de Receitas da União. Esse mecanismo perverso, permite ao governo federal utilizar livremente 30% dos tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas, como a seguridade, educação, saúde e previdência social. Foi criado por FHC no início do Plano Real.

“A principal fonte de recursos da DRU são as contribuições sociais, que respondem por cerca de 90% do montante desvinculado. Na prática, permite que o governo aplique os recursos destinados a áreas como educação, saúde e previdência social em qualquer despesa considerada prioritária e na formação de superávit primário. A DRU também possibilita o manejo de recursos para o pagamento de juros da dívida pública.” (Fonte: site do Senado Federal).

Ora, se não tem recursos, como se pode retirar recursos através de mecanismos fabricados? Ninguém tira nada de onde não se tem! É mais um engodo! A PEC 87/2015, não só estendeu a DRU até 2023 como também aumentou de 20% para 30% a alíquota de desvinculação sobre receitas de contribuições sociais e econômicas. De 2012 a 2015, a DRU retirou R$ 248,5 bilhões do orçamento da seguridade. No entanto, a mesma PEC vetou a desvinculação sobre o IPI e o imposto de renda. Ou seja, só pode desviar recursos se forem de áreas sociais. Os recursos de IPI e IR para fazer política através de obras e licitações junto às empresas não podem sofrer desvios.

O que fica claro com os relatos da CPI do Senado Federal é que milhões de brasileiros contribuíram durante décadas para formação do fundo de previdência. Nós, trabalhadores, fizemos a nossa parte. Se o governo desviou tais recursos para favorecer grandes grupos econômicos e fazer obras com intenção de se eleger ou se perpetuar no poder, a sociedade brasileira, as famílias, não podem ser penalizadas.

Na verdade, o maior argumento para defender a soberania, a importância e a necessidade da previdência social, é a grande desigualdade e injustiça de nossa sociedade. Ser contrário a esta reforma oportunista e “produzida” para atender e beneficiar grandes grupos econômicos, é combater a violência e exclusão social que a cada dia atinge mais famílias. É defender um país mais justo e menos desigual. É a defesa do Estado democrático de direito, ou seja, é a defesa de direitos e garantias fundamentais. 

Se depois de todos esses depoimentos contrários à reforma, de vários especialistas em previdência e de todos os relatórios que apontam o casuísmo e ausência de argumentos convincentes, apresentados por entidades, de incontestável reputação e credibilidade, não forem suficientes para te convencer, talvez você tenha realmente que trabalhar até os setenta anos para se aposentar e talvez de convencer.

De uma coisa temos certeza, como as crises capitalistas são cíclicas, acontecem em média a cada dez anos; aprovada ou não, sabemos que na próxima crise os ataques a velha e boa previdência aconteceram mais uma vez. E novamente estaremos aqui para defende-la mais uma vez. Esse é o nosso Brasil. De tanto apanhar vamos aprender a lutar.