Para os problemaas do Judiciário, somente se resolvem com questões simples

Por Milton Biagioni Furquim | 14/08/2024 | Direito

Para os problemas do judiciário, somente se resolve com soluções simples.

Com efeito. Estou a decidir uma demanda, mas daquelas que se repetem às baciadas diuturnamente em todas as varas judiciais. Quase sempre o relato, causa de pedir e pedidos são similares e, quando muito, apenas uma ou outra variação, mas que no fundo é o mesmo que ‘chover no molhado’. Exemplo disso são as ações contra as instituições financeiras; revisão contratual, as várias ações previdenciária, depvat e quejandos. Se reproduzem aos borbotões. E todas, por certo tomam conta do judiciário, aumenta o acervo mais e mais, e nós estamos a decidir sempre o mesmo, mas que não acabam nunca. A angústia somente aumenta na mesma proporção em que aumenta o acervo de processos.
E a partir disso, fundamento.
Desde que passei no concurso para magistratura, vinha entendendo pela presença de interesse de agir dos autores em demandas como a atual, em que o beneficiário busca a condenação à revisão, seja previdenciária, seja contratos financeiros, pagamento de diferenças outras, etc. De lá prá cá nada mudou, a não ser no vertiginoso aumento de processos com temas repetidos.
Ocorre que, já faz tempo, convenci-me de que a solução mais adequada para a questão é buscar através de soluções simples e simplificadas, no sentido de reunir os processos que guardam semelhanças e decidir coletivamente, em vez de ficar decidindo cada processo de per se, quando os fundamentos são os mesmos, as decisões semelhantes e, invariavelmente a primeira decisão com pequenos ajustes servem para todos os demais.
O Judiciário não pode ser visto nos nossos dias da mesma forma como era visto décadas atrás, antes da explosão da litigiosidade de massa. O número de demandas que eram ajuizadas tempos atrás era sensivelmente menor do que o atual. Ainda que tenha havido crescimento da estrutura do Judiciário desde então, pode-se dizer que estamos chegando no limite de expansão do mesmo. 
Nenhum Estado democrático moderno pode se dar ao luxo de expandir a estrutura de seu Judiciário de forma ilimitada. O Judiciário resolve problemas passados, mas a sociedade depende, para sua evolução, de resolução de problemas presentes e de investimentos pesados para tentar melhorar o futuro. 
Em todas as manifestações sociais dos últimos anos, e de todas as pesquisas que periodicamente são feitas, nunca, em nenhum momento, a população manifestou desejo de que se aumentasse a estrutura do Judiciário para que ele se tornasse mais ágil e célere. O que a população quer, substancialmente, é mais saúde, mais segurança e mais educação. 
Os fatores produtivos querem mais investimentos na infraestrutura – energia elétrica, rodovias, portos, etc. Tudo isso demanda recursos ingentes. Portanto, é impensável que qualquer gestor público de bom senso vá destinar mais recursos ao Judiciário, para expandir uma área estatal que olha para trás (a famosa imagem da ‘lanterna na popa’) e não visa o futuro.
Portanto, num clima geral de recursos escassos (e na realidade brasileira – e especialmente a mineira -, de recursos escassíssimos) há que se fazer melhor com os recursos disponíveis.
Então, além dos investimentos em informática, que redundaram em enorme ganho em produtividade, e de outras soluções que auxiliam na busca de maior racionalização dos serviços judiciários, as diversas nações procuram implementar medidas que visam conter a demanda sob controle, exatamente para tentar manter a estrutura judiciária funcionando razoavelmente.
Uma dessas medidas é a adoção de maior rigor para a concessão do benefício da assistência judiciária, de forma a forçar a parte a refletir mais sobre os custos de uma demanda e os riscos associados, fazendo com que somente demandas, realmente importantes, e de algum relevo cheguem ao Judiciário. 
Para se evitar que os cidadãos escassos de recursos fiquem à margem do sistema, oferece-se a eles a possibilidade de ajuizarem demandas de pequeno alcance econômico ou de baixa complexidade através de sistemas mais informais de justiça (as small claims courts norte-americanas, por exemplo), com custo reduzido ou inexistente, dispensando-se inclusive a participação de advogados (como ocorre no sistema dos Juizados Especiais, em nosso Direito, para as demandas de até 20 salários mínimos).
Outra ideia, integrante da chamada terceira onda renovatória do processo civil, tal como identificada classicamente por Mauro Cappelletti, passa pela identificação de situações que preferencialmente não devem ser equacionados pela justiça ordinária, mas sim direcionadas para mecanismos de resolução alternativa de conflitos, tais como a mediação, arbitragem e outros.
E, nesse contexto, não menos importantes se revelam as ações coletivas, instrumentos aptos a solucionar questões atinentes a direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, e que inegavelmente visam a contribuir com a celeridade da jurisdição. Não pode o Judiciário continuar sendo a primeira, única e mais rentosa forma de solução de litígios. 
A intervenção do Estado para solução de contendas deve ser por exceção, e não por regra, até porque, em especial em uma sociedade marcada por contratações por adesão e massificadas, não há a menor possibilidade de uma resposta minimamente aceitável caso se continue no caminho atual, de se admitir que tudo pode e deve virar processo.
Segundo dados do CNJ, no Relatório Justiça em Números, para uma população de aproximadamente 200 e poucos milhões de habitantes, o Brasil já contava com quase 100 milhões de processos em tramitação, crescimento esse que vem, sucessivamente e de forma absolutamente preocupante, aumentando ano a ano.
A situação se agrava ainda mais ao se verificar que este crescimento desenfreado vem acompanhado de um aumento significativo do custo da justiça brasileira. No último levantamento feito pelo CNJ, os tribunais e instâncias inferiores gastaram cerca de mais de 70 bilhões de reais na sua manutenção, custo este, portanto, de mais de R$350 por habitante, já representando 1,3% do produto interno bruto do País (PIB). 
Esse crescimento avassalador não vem acompanhado do aumento proporcional da estrutura funcional e material capaz de minimamente dar vazão a esse grande volume de processos, resultando, com isso, em sucessivos aumentos de estoques e taxas de congestionamento.
No âmbito previdenciário, a situação é ainda mais delicada. O INSS é o maior litigante do País, de acordo com o relatório do CNJ – 100 Maiores Litigantes. Em última pesquisa realizada, datada de 2012, a autarquia respondeu, sozinha, por 34% dos feitos que ingressaram na Justiça Federal e por 79% das demandas que aportaram nos Juizados Especiais Federais.
Em nada sendo feito, em se continuando simplesmente a assistir o aumento desenfreado da demanda, caminhamos, sem nenhuma dúvida, para uma situação de caos e absoluta conflagração completa da estrutura judiciária brasileira, conjuntura esta que, registre-se, já se vê em algumas unidades da federação.
Daí a importância de prestigiar medidas que objetivem a racionalização do sistema, valorizando-se soluções coletivas a litígios que envolvam milhares de pessoas pela mesma causa.
Ou seja, quando há transgressão do direito envolvendo milhares de pessoas, não podemos continuar pensando que a solução passa pela atuação jurisdicional processo a processo. Isso é inviável, muito caro e absolutamente injusto, pois acaba que pessoas, mesmo que estejam em idêntica condição, recebam de forma diferente ou – o que é pior – umas recebem tudo e outras recebem nada.
Aqueles que sofrem uma determinada lesão pelo mesmo motivo, merecem ser reparados (ou não) da mesma maneira. E a melhor forma de alcançar todos esses objetivos é, sim, através da valorização das ações coletivas.
O caso dos autos aqui agora a ser decidido é emblemático.
Observe-se que instituições devidamente legitimadas por força da lei e até mesmo pela representatividade de suas funções – no caso, o Ministério Público Federal e o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos da Força Sindical –, efetivaram uma transação com o INSS, no âmbito de uma Ação Civil Pública (ACP nº 0002320-59.2012.4.03.6183), proposta justamente para obter a revisão de benefícios previdenciários.
A autarquia reconheceu o direito e comprometeu-se a efetivar a revisão de todos os benefícios de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e pensões abrangidos pelo objeto da ação coletiva proposta, implementando os reajustes a partir da competência de janeiro de 2013, com pagamento para fevereiro de 2013.
Até onde se sabe, e isso vem sendo confirmado nos autos dos processos aqui aportados, a revisão acordada foi implementada, tanto que vários demandantes apenas estão buscando o Judiciário para não se submeter ao cronograma de pagamento dos atrasados, estabelecido no ajuste devidamente homologado pela Justiça.
A pergunta que se impõe é a seguinte: isso é correto e justo?
Tenho que não; e faço a análise do que ora sustento sob três enfoques – o da racionalidade, o da legalidade e o do justo.
SOB O ENFOQUE DA RACIONALIDADE
Com base na lei, o Judiciário foi chamado a intervir em um litígio que envolve milhares de pessoas, através de uma Ação Civil Pública.
Atentos à realidade orçamentária, os legitimados ativos aceitaram efetivar uma composição, que previu o imediato reajuste dos benefícios e pensões e, por uma questão orçamentária, estabeleceu um cronograma para pagamento dos atrasados.
O ajuste efetivado foi devidamente homologado pelo juízo.
Ora, quem propôs tinha legitimidade para tanto, bem como para transigir, sendo que o Judiciário homologou o acordo que, com isso, ganhou contornos de coisa julgada.
Sob o enfoque da racionalidade, o ajuste efetivado é irretocável.
Observe-se que a pretensão principal, reajuste, foi obtida. Para os atrasados, por uma absoluta incapacidade de pagamento em uma única vez, considerando o montante do passivo, estabeleceu-se um cronograma para adimplemento.
Algumas perguntas imprescindíveis para fins de reflexão e fundamentação:
Não fosse essa a solução, teria o Judiciário como dar uma resposta mais adequada, com o ajuizamento de milhares de processos individuais?
A questão orçamentária, que acaba, pelo vulto do passivo, atingindo toda a economia nacional, pode continuar a ser desconsiderada pelo juiz?
Tenho que não; e até por isso entendo que se deva valorizar decisões coletivas que levam em conta toda a dimensão e as nuances que envolvem o litígio.
SOB O ENFOQUE DA LEGALIDADE
Dispõe o art. 16 da Lei nº 7.347/85, com redação dada pela Lei nº 9.494/97: Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
Ora, houve, ainda que por acordo, um juízo de procedência ao pedido principal – revisão –, tendo apenas sido diferido no tempo o pagamento dos atrasados em razão de uma realidade e necessidade orçamentária.
Portanto, o que foi feito tem, sim, com base na lei, eficácia erga omnes, sendo que eventual limitação aos efeitos da sentença, prevista no art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, não se aplica, a meu ver, primeiro porque houve um juízo de procedência e, segundo, porque aquela legislação incide apenas quando estivermos diante de uma relação de consumo, não sendo este o caso dos autos.
Nesse contexto, é forçoso reconhecer que a sentença homologatória do acordo firmado na ACP nº 0002320-59.2012.4.03.6183 produziu eficácia contra todos os titulares de situações jurídicas enquadradas nas disposições dela constantes, ante a extensão do conteúdo transacionado, o grau de representatividade dos transatores e a qualidade dos interesses metaindividuais envolvidos.
Não se pode, diante disso, desconsiderar o cronograma de pagamento das parcelas atrasadas dos benefícios revistos, que é parte integrante do acordo homologado e, por conta disso, encontra-se igualmente abrangido pela autoridade e imutabilidade da coisa julgada. Raciocínio contrário importaria inadmissível desprezo à eficácia vinculante da coisa julgada erga omnes, beneficiando alguns segurados em detrimento de outros que respeitaram o acordo e se submeteram aos seus efeitos.
A desobediência ao cronograma importa, assim, em vulneração de princípios caros ao Estado de Direito como isonomia e segurança jurídica, cuja violação se quis justamente evitar com a autocomposição coletiva do litígio.
Entendo, por outro lado, que seria verdadeiro contrassenso admitir que o cronograma de pagamentos estabelecido na demanda coletiva só obriga beneficiários residentes no território de homologação do acordo, podendo, dessa forma, ter sua ordem transgredida por ações individuais de outros segurados domiciliados em localidades distintas.
A aceitação dessa possibilidade implica, a toda evidência, a subversão da própria lógica do sistema brasileiro de proteção dos direitos transindividuais, que foi desenvolvido para dar tratamento unitário e não diferenciado a interesses de coletividades determináveis e indetermináveis.
Segundo a doutrina especializada, a limitação geográfica da coisa julgada erga omnes derivada de ações coletivas, com seu tratamento distinto em cada território, revelaria “uma estranha sentença, com duas qualidades: seria válida, eficaz e imutável em determinado território, mas seria válida, eficaz e mutável fora desse território”, o que não se pode admitir no caso em tela.
Por outro lado, compreendo que o autor já teve sua pretensão atendida pelo acordo homologado nos autos da Ação Civil Pública nº 0002320-59.2012.4.03.6183, perante a Justiça Federal, por meio do qual o INSS se comprometera a revisar benefícios elegíveis e a pagar a todos os segurados as respectivas diferenças, de acordo com cronograma de pagamento estabelecido naquela ação coletiva.
Ora, a revisão administrativa da renda mensal inicial do benefício acidentário de titularidade da parte autora é fato incontroverso nos presentes autos. Com efeito, o documento da fl. 13 evidencia que o demandante fora comunicado do processamento da revisão de seu benefício na forma do artigo 29, II, da Lei nº 8.213/91, com a consequente apuração de diferenças.
Diante disso, cabe ao segurado aguardar o pagamento das diferenças administrativamente apuradas conforme cronograma anexo ao acordo homologado na precitada ação civil pública, pois ausente circunstância excepcional, devidamente comprovada nos autos, que justifique a violação da ordem de pagamentos regularmente estabelecida na demanda coletiva.
Não se vislumbra, pois, no caso em apreço, lesão ou ameaça a direito que justifique a intervenção do Estado-Juiz, porquanto desnecessária, em princípio, provisão jurisdicional que determine o pagamento de valores já contemplados e reconhecidos como devidos no âmbito de transação homologada pelo Poder Judiciário.
SOB O ASPECTO DO JUSTO
Entre os fundamentos que me levam ao presente posicionamento, o critério de justiça me parece o mais relevante.
A questão objeto deste feito envolve milhares de segurados da Previdência Social, espalhados por todos os cantos desse Brasil de dimensão continental.
Até pela repercussão financeira que envolve o pagamento dos atrasados, conforme já antes examinado, por uma questão de viabilidade orçamentária, legitimados ativos, entre eles destaco o próprio sindicato da categoria, aceitou um cronograma de pagamento parcelado que leva em conta faixa etária e o total dos atrasados.
No momento em que não se valida este tipo de pagamento, estaremos, em verdade, permitindo que uma minoria – aqueles que buscam a tutela judicial de forma individual – passe à frente de milhares de beneficiários que por desconhecimento, falta de condições ou até mesmo respeito àquilo que foi acordado, estarão submetidos ao ajustado.
Isso não me parece justo. Com base na lei, substitutos processuais devidamente legitimados efetivaram uma composição que está vinculada a uma realidade e possibilidade orçamentária. Permitir que alguns, sem nenhuma excepcionalidade, como, por exemplo, um problema de saúde, “furem” a fila do pagamento, não é medida que, a meu ver, deva ser chancelada pelo Judiciário.
A par deste exemplo real, tenho que poderia o Judiciário através de simples solução dar solução ao gargalo que sufoca a todos. Fica a dica uai.
Guaxupé, 09/07/2020.
Milton Biagioni Furquim
 Juiz de Direito