PANDEMIA: SOLIDARIEDADE E INFORMAÇÃO CIENTÍFICA COMO MÉTODO DE COMBATE AO COVID-19

 

Saulo Barbosa Santiago dos Santos



 

RESUMO: O enfrentamento ao vírus pandêmico Covid-19 gerou uma crise humanitária raramente vista, o mundo como conhecíamos não é mais cabível à nova realidade, pois esta doença mostrou, de forma muito clara e sucinta, o quanto a desinformação e o egoísmo são ferramentas precisas para elevar a quantidade de contaminados e mortos. Os povos, independente de suas diferenças, uniram-se solidariamente, mesmo mudando parte da cultura e costumes, em prol da manutenção da vida e na busca de tratamento. Um novo normal ecoa ao fim da pandemia e devemos nos preparar para uma forma alternativa de vida. O distanciamento, a quarentena e o isolamento social, por enquanto, além de serem a melhor resposta contra esta enfermidade, é também uma mensagem de amor que levamos ao próximo, apesar de haver classes sociais que sofrerão consequências maiores por causa disso.

 

Palavras-chave: Covid-19. Solidariedade. Ciência. Pandemia. Distanciamento

 

ABSTRACT: The confrontation with the pandemic virus Covid-19 generated a humanitarian crisis rarely seen, the world as we knew it is no longer applicable to the new reality, because this disease showed, in a very clear and succinct way, how much inequality and selfishness are tools needed to increase the number of contaminated and dead people. The peoples, regardless of their differences, united in solidarity even changing part of the culture and customs in favor of the maintenance of life. A new normal echoes at the end of the pandemic and we must prepare for an alternative way of life. The distancing, quarantine and social isolation, for the time being, besides being the best response against this disease, it is also a message of love that we take to others, although there are social classes that will suffer greater consequences because of this.

 

Keywords: Covid-19. Solidarity. Science. Pandemic. Distancing





 

1 – INTRODUÇÃO

    

    Doenças fatais sempre fizeram parte da história, não é algo exclusivo da contemporaneidade, só basta olharmos a devastação que a Peste Negra fez no século 14 quando matou entre 75 milhões e 200 milhões de pessoas na Eurásia, além dela, a varíola matou mais de 30% da população da América Central no século 16 e a gripe espanhola ceifou 25% da população mundial em 1918. Nota-se que os meios de transporte e a comunicação entre povos eram bastante limitados e ainda assim as consequências foram catastróficas. Mesmo com episódios dramáticos como Ebola, Aids e, atualmente, o Covid-19, a humanidade batalha contra diversas doenças à medida que elas surgem ou evoluem no curso do tempo.

    O Covid-19 se tornou uma pandemia viral altamente contagiosa e fatal, por enquanto não há cura ou vacina, ainda assim, diferentemente de épocas anteriores, temos como enfrentá-la, desta forma, o objetivo deste artigo é examinar como a solidariedade e a informação científica são ferramentas essenciais na luta contra esse vírus.

 

2 – A GUERRA CONTRA AS DOENÇAS

 

    Séculos anteriores doenças fatais eram vistas como mensagem ou castigo divino e pouco se fazia para dirimir os efeitos das enfermidades, longe disso, juntavam-se centenas de pessoas em um recinto para rezar e pedir clemência, daí o resultado não seria diferente, mais contaminados e mortos.

    Num contexto ecológico e ambiental, há quem crê em punição pelo que o homem faz ao planeta, como se a Terra fosse um ser vivo em busca de punição. O respeitado indígena e escritor Ailton Krenak faz uma crítica muito lúcida e bela sob esta perspectiva, segundo ele

 

a nossa mãe, a Terra, nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e as brizas se moverem, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz? O que estamos vivendo pode ser obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante (KRENAK, pos. 50, 2020).

 

    É fácil imaginar isso porque outros animais e vegetais não estão sendo vitimados pela Covid-19, mas isso se deve por outras circunstâncias que não faz parte do tema. A verdade é que criamos as condições para diversos vírus se desenvolverem, não há juiz, promotor ou ambos nisso 

 

o que é realmente difícil de aceitar é que a epidemia em curso é resultado, por excelência, de uma contingência natural, que foi simplesmente algo que aconteceu e que ela não guarda nenhum outro significado mais profundo. Na ordem mais ampla das coisas, somos uma espécie sem importância (ZIZEK, pos. 290, 2020).

 

    À medida que as ciências se desenvolveram, questionamentos começaram ser feitos para compreender doenças e, por consequência, combatê-las. Fantasias, duendes, divindades raivosas e vingativas paulatinamente deixaram de ser explicações e soluções para os males. Com a teoria evolutiva e pesquisas genéticas, enfermidades, novas e antigas, impactaram menos no progresso humano porque os métodos e técnicas de tratamento se tornaram eficazes, bem embasadas e compartilháveis.

 

3 – LUTANDO CONTRA O DESCONHECIDO

 

    Quando o Covid-19 foi descoberto em dezembro de 2019 na cidade chinesa de Wuhan, os pesquisadores não foram surpreendidos, há anos esperavam o surgimento de um novo vírus da família Corona, sob avanços nas pesquisas, pensava-se que seria contornado como todos os outros Coronas foram, mera ilusão. Um mês de contágio e mortes descontroladas foi suficiente para os chineses entenderem o potencial catastrófico deste vírus. Nesta situação, a China compartilhou os dados à comunidade científica para somar esforços em busca de tratamento, começa-se a luta contra um inimigo desconhecido e letal.

    Na ausência de cura ou vacina, a comunidade científica recomenda, na medida das necessidades e realidade de cada região, o distanciamento, a quarentena e o isolamento (para fins didáticos chamarei de DQI). É necessário distanciar-se das pessoas, além daquelas que já convive, para não espalhar a doença e ter tempo de desenvolver alguma medicação, entretanto, apesar de necessário não é suficiente haja vista epidemias se propagam rápido, é impossível fechar fronteiras ou se isolar indefinidamente. Como já dito antes, na Idade Média as conexões entre diversas regiões e povos eram bastante limitadas e mesmo assim a peste negra se propagou por muitos anos.

    Se uma doença conseguir se espelhar para além das fronteiras locais é necessário que a DQI se expanda de forma global e coordenada com compartilhamento de dados, portanto, a confiança e a solidariedade entre os povos será uma das maneiras de proteção eficaz e funcional.

 

4 – QUANDO A SEPARAÇÃO UNIU AS NAÇÕES

 

    Se os povos de diversas nações não puserem suas diferenças de lado e não cooperarem, não há como vencer o Covid-19. Israel e Palestina, inimigos de longa data, por exemplo, se uniram para conter o vírus porque sabem que pouco adiantaria lutar contra doenças se seu vizinho não ajudar. Caso determinado país sofrer com algum contágio será questão de tempo a proliferação a outras regiões caso nada seja feito, pois vírus podem evoluir a tal ponto que arrisque a humanidade.

    Ao entender que não tinha como combater o Covid-19 com próprios recursos e perdia o controle à medida que os dias passavam, a China não hesitou em buscar cooperação internacional, isso nos ensina muito sobre o nível de confiança que o mundo adquiriu porque

 

quando um país é atacado por uma determinada epidemia, deve estar disposto a compartilhar honestamente as informações sobre o surto, sem medo de uma catástrofe econômica, ao passo que os outros países devem ser capazes de confiar naquela informação, dispondo-se a estender uma mão amiga em vez de deixar a vítima no ostracismo (HARARI, pos. 59, 2020).

 

    O mundo precisa de união e solidariedade para se proteger, a varíola até meados do século passado matou milhões de pessoas, contudo, depois de grande esforço, bilhões foram vacinados e hoje a Organização Mundial da Saúde (OMS) lhe considera erradicada. Se houver um único país que descontinue a prevenção contra varíola, em meses ela voltaria a matar.

    Distanciar-se socialmente, demonstra respeito e amor ao próximo porque está abrindo mão das liberdades para proteger a quem se quer conhece. O lema individualista “que cada um cuide de sua vida” vem sendo substituídos por traços solidários, por mais que alguns líderes pensem somente no seu povo, há outros que pensam de forma universal. O presidente americano ofereceu milhões de dólares para uma empresa alemã fornecer vacinas exclusivamente para os Estados Unidos. O governo alemão interferiu na negociação proibindo tamanho absurdo e deixou claro que qualquer medicação segura para uso humano produzida em solo alemão, será distribuída para o mundo inteiro. Da mesma forma, o governo chinês afirmou que se uma eventual vacina for encontrada, ela será considerada como um “bem público mundial”.

 

5 – A CRISE E O NOVO NORMAL

 

    Antes de mais nada devemos entender o significado real da palavra “crise”. Se buscarmos o sentido etimológico, “crise” significa ser um desvio da normalidade, uma perturbação passageira que tende a ser superada. Quando superadas, as coisas voltam à normalidade, ou não. Estudiosos afirmam que até haver uma cura ou vacina para o Covid-19, ela poderá ser sazonal. Mesmo que haja tratamento é muito provável o aparecimento de outras infecções, será necessário que a sociedade mude culturas e costumes para combatê-las. Diminuiremos as aglomerações, contatos físicos, eventos festivos, e toda aquelas interações sociais: o distanciamento e a prevenção fará parte do novo normal.

    Cada época há seu modo de viver e com o passar do tempo vai mudando, seja de forma lenta ou rápida. Na maioria das vezes, sociedades mudam de forma quase imperceptível, contudo, a pandemia, notoriamente, acelerou estas transformações. Imaginávamos que o modo de vida atual ficaria estagnado por décadas, desconhecíamos outras alternativas simplesmente porque o atual o sistema dificultava a descoberta delas. Contudo, no curto prazo pós pandemia, não haverá o que se refletir sobre alternativas, o mundo estará aos cacos e com poucas chances de termos o modelo de vida anterior,

 

tenhamos em mente que, no período imediatamente anterior à pandemia, havia protestos massivos em muitos países contra as desigualdades sociais, a corrupção e a falta de proteção social. Muito provavelmente, quando terminar a quarentena, os protestos e os voltarão, até porque a pobreza e a pobreza extrema vão aumentar. Tal como anteriormente, os governos vão recorrer à repressão até onde for possível e, em qualquer caso, procurarão que os cidadãos baixem ainda mais as expectativas e se habituem ao novo normal (SANTOS, pos. 360, 2020).

 

    Enquanto estivermos cumprindo as recomendações da OMS podemos pensar sobre nossas vidas, conversar mais com outras pessoas, consumir menos, ler mais, buscar novas habilidades. Percebemos que shoppings, aviões, shows e festas são coisas que podemos conviver sem elas tranquilamente, encontramos um novo modo de viver, sob determinadas características e circunstâncias, é como se estivéssemos voltando para o Estado de Natureza rousseauniano. 

 

6 – ESTAMOS NO MESMO BARCO?

 

    Depende de onde e quem está neste barco, esta pandemia pode até atingir a todos, mas seus efeitos são diferenciados, não por causa da biologia do vírus, mas das circunstâncias dos enfermos. Por exemplo, nos campos de refugiados na Grécia há uma torneira para mais de mil pessoas e todos eles estão amontoados em cubículos, sabe-se que

 

grande parte da população do mundo não está em condições de seguir as recomendações da OMS para se defender do vírus, porque vive em espaços exíguos ou altamente poluídos, porque é obrigada a trabalhar em condições de risco para alimentar as famílias, porque está encarcerada em prisões ou em campos de internamento, porque não tem sabão nem água potável o porque a água disponível é para beber e cozinhar etc (SANTOS, 2020).

 

    Como se pode dizer que estas pessoas estão no mesmo barco de alguém que está em seu apartamento de três quartos, banheiro, suíte e com alimento vindo na porta de casa?

    Toda a DQI é discriminatória, alguns grupos sociais sofrerão mais que outros por diversos motivos, principalmente aqueles que enfrentam a exploração do trabalho e racismo. É impossível citar todos, mas podemos analisar alguns casos.

    Com a DQI, mulheres começaram a sentir mais as consequências, o número de violência doméstica e divórcio aumentaram consideravelmente, além disso, é sabido que elas são maioria nos serviços essenciais que não podem parar, como área da saúde e assistência social. Como se já não bastasse, a maioria das mulheres são as responsáveis pelos cuidados da família, mesmo com mais pessoas dentro de casa para fazer serviços domésticos, supõe-se que isto não esteja ocorrendo, haja vista o machismo inerente à cultura de muitos países impede que homens realizem serviços de limpeza ou cozimento, tornando a vida da mulher ainda mais difícil.

    Os trabalhadores de rua e autônomos vem se tornando um modelo de trabalho majoritário no mundo, mesmo que países tenham leis trabalhistas para incentivar contratação formal, empresas seguem o rito de políticas neoliberais e querem, a todo custo, não assumir riscos e responsabilidades para este tipo de trabalho, daí fala-se dos vendedores ambulantes, motoristas particulares, entregadores, etc. Como fazer DQI quando estes tipos de trabalhadores dependem de renda diária e não têm poder financeiro para se sustentar sem precisar sair, já que seus serviços dependem da rua? Com o fim ou diminuição drástica da renda, será questão de tempo haver insegurança alimentar e higiênica, o que facilitará mais contaminações.

    Moradores de rua, certamente, estão ente os mais vulneráveis porque simplesmente não têm casa para se isolar, pelo contrário, estão em viadutos, marquises, embaixo de prédios e diversos outros lugares com alguma cobertura.

    A situação se torna mais crítica quando tratamos dos favelados e moradores periféricos, regiões onde normalmente as moradias são pequenas e aglomeradas, carecem de saneamento básico, acesso à água potável e outras conduções básicas para o ser humano, desta forma, estes moradores

 

habitam a cidade sem direito à cidade, já que, vivendo em espaços desurbanizados, não têm acesso às condições urbanas pressupostas pelo direito à cidade. Sendo que muitos habitantes são trabalhadores informais, enfrentam a quarentena com as mesmas dificuldades já referidas (SANTOS, pos. 186, 2020).

 

    Com tais fatos não é novidade que em meados de Maio de 2020 favelas cariocas possuíam mais mortos por Covid-19 do que 15 estados brasileiros, pode-se dizer que este vírus é democrático na questão da contaminação, mas na da sobrevivência tem seus privilegiados: pessoas ricas têm taxa de cura maior se comparados aos pobres.

    A lista daqueles que são atingidos pelas consequências da DQI é vasta e não dá para expô-la, basta pensarmos nos deficientes físicos ou mentais, idosos, refugiados, indígenas, etc. O fato é que as medidas propostas pela OMS para se prevenir serve para uma classe social minoritária, que possui condições financeiras para ficar em casa e manter por meses sem a necessidade de sair ou trabalhar, por isso é salutar se perguntar: em que barco estou nesta pandemia?

 

7 – CONCLUSÃO

 

    Podemos concluir que as explicações divinas deixaram de ser modelo padrão para explicar as causas e consequências das doenças, as ciências demonstraram ser mais eficazes para isso quando as informações sobre aquilo que estuda são compartilhadas solidariamente entre diferentes nações.

    Nesta crise humanitária revela-se que a união faz a força, o pensamento egoísta, aos poucos, é marginalizado para salvar a vidas, uma trágica doença mostrou ao mundo o quanto podemos abrir mão de diversos direitos, inclusive nossas economias, para termos esperança de vivermos numa sociedade melhor, ou como preferir, na construção de um novo homem. Esta nova sociedade é  urgente tendo em vista que as desigualdades sociais acentuaram ainda mais as mortes quando, na verdade, todos deveriam ser atingidos e tratados igualitariamente.

    As mortes serão em vão se o mundo voltar a ser como era antes, é impensável termos que viver à realidade antiga, trabalhando confinados 12 horas por dia em aglomerações, a morbidez petulante se apegar a inutilidades ou ao desnecessário, pessoas vivendo sozinhas e solitárias mesmo vivendo em centros urbanos, mães tendo que deixar seus filhos com outras pessoas para poderem trabalhar.

    As virtudes terão que dá lugar aos vícios e à luxuosidade, caso contrário, a sociedade se tornará tão corrupta quanto antes e voltaremos à estava zero, tudo aquilo que progredimos enquanto seres humanos será perdido e será necessário uma nova pandemia ou revolução para reverter, novamente, as contradições sociais e seculares que construímos, de forma tão egoísta e inconsequente, no curso do tempo.





























 

REFERÊNCIAS

 

HARARI, Y. N. Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade [recurso eletrônico]. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das letras, 2020;

HARARI, Y. N. Uma breve história da humanidade [recurso eletrônico]. 1ª Ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015;

KRENAK, A. O amanhã não está à venda [recurso eletrônico]. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das letras, 2020;

SANTOS, B. A cruel pedagogia do vírus [recurso eletrônico]. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2020;

ZIZEK, S. Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo [recurso eletrônico]. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2020.