Os Tamancos

Por Kátia R. Maffei dos Reis | 28/10/2010 | Contos

Chegava o dia tão esperado! Carminha mal podia imaginar que, naquela tarde gelada de 1950, seu pai daria o aval para ela comprar seu primeiro par de tamancos. Seria um dia inesquecível, afinal, com seis anos de idade, a garotinha tímida, loirinha, de olhos claros, jamais tivera a oportunidade de caminhar naquelas estradas embarradas do interior do Rio Grande do Sul com os pés calçados.
Carminha era a sétima filha de um casal de descendentes italianos. A vida era dura, não havia muitos recursos. E, por ela ser a caçula, era sempre a última da fila para tudo, inclusive para ganhar um par de calçado.
Foi exatamente naquela tarde que o patriarca da família se deparou com a caçula soluçando, aos prantos, próxima de uma das irmãs, que acabava de ganhar seus tamancos. O pai logo questionou o desespero da filha, que imediatamente se justificou:
- Eu também queria um tamanquinho!
Seu protesto era justo, pois agora ela seria a única das sete irmãs que andaria de pés descalços, sabe-se lá por quanto tempo ainda. A menina se sentia como o patinho feio, pois tinha sempre uma atenção desprivilegiada. Não era uma discriminação maldosa, mas necessária. Na família pobre, não havia como aplicar a norma "se tem para um, tem para todos".
Mesmo desacreditada, a menina, de cabeça baixa, expressão contraída, enxuga as lágrimas e lança um olhar desconfiado ao pai, que lhe diz:
- Tá bom! Vai lá no Sido comprar um tamanquinho pra ti também.
Sido era o dono do armazém, localizado a cerca de um quilômetro da casa da menina. Ela e sua irmã imediatamente pegaram o rumo em direção ao estabelecimento. Uma das páginas inesquecíveis da vida de Carminha começava a ser escrita.
O tamanco com o qual ela tanto sonhava não tinha nada de tão especial; era um calçado muito simples, composto apenas por uma sola rude de madeira e uma faixinha de couro bruto por cima. Além de não ter uma bela aparência, o tamanco era muito desconfortável. Quem usasse, deveria ter o máximo de cuidado para não cair ao tropeçar pelas pedras nos dias secos. Já nos dias chuvosos, o cuidado devia ser redobrado para não perder os calçados na lama.
Mas tudo bem, esses detalhes nem passavam pela cabeça da garotinha. O que realmente importava é que agora ela não iria mais congelar seus pezinhos pelas estradas e também teria sua autoestima elevada; ela não seria diferente das irmãs.
Durante o trajeto ao armazém, poucas palavras Carminha trocou com a irmã, mas pela sua cabecinha passava um filme com final feliz. Ela calçar os tamancos que teria dentro de alguns minutos era como uma princesa pôr seu sapatinho de cristal. Carminha olhava para os pés da irmã dentro dos tamancos e imaginava a volta para casa. No retorno, ela também estaria com os pés calçados, exatamente como via a irmã que a acompanhava. Verdadeiramente, era um dia feliz.
Finalmente, as irmãs chegam ao armazém. Carminha imediatamente se dirige ao Sido, um homem de meia idade, estatura média, bom caráter:
- Vim comprar meus tamanquinhos!
O homem atende prontamente ao pedido, verifica o número necessário e se dirige ao fundo do estabelecimento, onde ficavam os calçados.
A expectativa de Carminha aumenta. Um desejo de seis anos seria realizado. Ela fica em silêncio, apenas observando o homem de longe, mexendo e remexendo em seu estoque. Por que demora tanto?, pensa ela. Passam-se alguns minutos e Sido retorna; cada passo parece uma eternidade. O homem olha para Carminha e lamenta:
- Não tenho para o seu tamanho!
A resposta foi como o despertar de um conto de fadas. O sonho acabou. Adeus, tamancos!