Igualmente quanto às letras do alfabeto hebraico, trago o conceito cabalístico de que possuem significado por si mesmas, independentemente de sua conjugação entre si para formarem a linguagem da comunicação humana. Além do som que reproduzem, representam também idéias. Possuem, pois, como as palavras, virtudes intrínsecas, tanto mais quanto são considerados "os elementos primitivos e originários de todas as mais línguas do mundo". Não sei , exemplificar essa energia dos sinais da escritura com citações que existem, belas e abundantes, acerca da matéria na literatura cabalística antiga e medieval. Contento-me em citar a respeito os inexpressivos acrósticos do texto bíblico e a magra interpretação das letras iniciais feita por São Jerônimo e pelos rabinos.   

                             Corretamente transmito o conceito cabalístico de que letras se acha uma "virtude intrínseca significativa de ocultos segredos" e que as mesmas "são aptas para conterem essência determinada determinada fora da ordinária ordem e valor que lhes concede o usos humano". Entretanto, para argumentar a favor dessa conceituação, cito os cabalistas que dizem: "Se nas letras não houvesse algum interior secreto, nem outra aptidão que aquele valor causal com que delas nos servimos, que motivo teria Deus para mandar que Abraão acrescentasse a seu nome a letra A [hei, em hebraico] e se chamasse Abraão... E para que Sara, chamando-se antes Sarai, tirasse um I [yud, em hebraico] e a chamasse Sara... E para que Benjamin, sendo primeiro dito Benoní [Gênesis 35:18], se chamasse Benjamin... E para que Jacob perdesse todas as letras e seu nome e se chamasse Israel...

                               Não posso ter achado um argumento menos expressivo e mais pobre, diante da grande e colorida riqueza de explicações filosóficas e cosmológicas que existem nas várias camadas da literatura cabalística para abonar aquela conceituação. Não que não se apercebesse das virtudes metafísicas atribuídas às letras. As citações acima feitas provam que estou consciênte desse fenômeno. Chego mesmo a atribuir às vinte e duas significações dos signos do alfabeto hebraico, agora já em outra explicação, diferente da anterior, a qualidade de fontes de todos os juízos e sucessos do mundo. Todavia, não alcança os seus atributos e as suas funções na vasta literatura cabalística  por que não me sobrava o mínimo de conhecimentos hebraicos necessários para a tarefa específica, nem tinha a possibilidade de consultar acerca da matéria pessoas conhecedoras dela, extinta que se achava a cultura hebraica no reino e expulsos os seus cultores desde os tempos antigos.

                                Por essa razão ocupo-me largamente da parte linguística geral das letras, de sua descrição fonética e fonológica, bem como de sua parte supersticiosa e grafológica e, finalmente, de sua exegese retórica pelos Pais da Igreja e pelos rabinos, interpretação essa que nada ou pouco tem com a doutrina da Cabala, embora qualifique tais divagações de "modo cabalístico".

                               No entanto, o que constitui tema essencial do pensamento cabalístico são as virtudes metafísicas as letras e não os aspectos linguísticos e supersticiosos delas. Tais virtudes são o tema do texto cabalístico fundamental Livro da Criação ou da Formação (Séfer Yetziráh), originário segundo se supõe do século III aproximadamente. Em estilo lacônico, solene e oracular afirma o autor anônimo: "As vinte e duas letras [da linguagem] Ele formou-as, talhou-as, pesou-as, permutou-as e combinou-as, e formou por meio delas o corpo de tudo quanto foi formado e o corpo de tudo quanto estava por ser formado".

                                Com mais nitidez encontram-se tais idéias expressas num texto cabalístico do século XIII, da autoria do Rabi Azriel de Gerona: "As letras [da língua hebraica] são os fundamentos de tudo e elas são a medida de todas as coisas mensuráveis, visto como através delas e por meio de suas combinações opera-se a diferenciação das ditas coisas mensuráveis".