OS REFLEXOS JURÍDICOS DA INSEMINAÇÃO HETERÓLOGA POST MORTEM: O DIREITO À FILIAÇÃO E SUCESSÃO[1]

 RESUMO 

O presente artigo tem como objetivo analisar os efeitos jurídicos da reprodução humana assistida post mortem no direito de família e das sucessões. Destarte, primeiramente, será feita uma análise a respeito das mudanças em relação ao vínculo jurídico familiar, no que diz respeito ao conceito, características e reflexos jurídicos. Posteriormente será importante apresentar os principais aspectos da reprodução humana assistida, principalmente a heteróloga post mortem, por ser tema de grande controvérsia pois envolve a pessoa de um terceiro no processo e a questão da utilização de material genético de pessoa que já faleceu. O artigo será finalizado apresentando-se quais são e como são tratados os direitos sucessórios e de filiação dos filhos gerados por meio da inseminação artificial post mortem, além das críticas existentes sobre o fato de não haver legislação específica nesses casos e as consequências negativas para as famílias que se utilizam dessa técnica.

INTRODUÇÃO

O conceito de família hoje em dia no Brasil, não está mais atrelado somente à ideia de descendência, de um ancestral comum e da união de laços genéticos, esse conceito se amplificou e abrangeu também a família formada por relações de afeto e em consequência disso o ordenamento jurídico brasileiro protege também os direitos e garantias dessa família nascida do afeto, além da família formada por laços genéticos.

Tendo isso em vista, e levando-se em consideração as novas técnicas de reprodução humana, como a reprodução humana assistida, houve uma maior diversidade nas formas de formação de entidades familiares, advindas desse contexto de mudança das relações familiares e do conceito de família e esse tipo de família advinda dessas novas técnicas, necessitam de um exame especial de suas particularidades. Desta forma, há uma maior preocupação quanto ao tipo de filiação, quanto aos efeitos jurídicos pessoais e patrimoniais, quanto à identificação de paternidade do próprio filho, entre outros, no que diz respeito aos nascidos dessas novas técnicas de reprodução humana. Será de grande importância para o desenvolvimento do presente artigo científico, o estudo sobre a reprodução humana assistida, que surgiu com os avanços da medicina como um meio legítimo de um indivíduo que não possui condições de ter filhos pelas formas tradicionais, de tê-los. E a reprodução assistida, seja homóloga, ou heteróloga, conforme a proveniência do material genético utilizado se faz presente no Brasil por meio técnicas médicas, seguindo o regramento específico do Conselho Federal de Medicina (CFM) com a Resolução n° 1.358/92.

Existe uma relevante controvérsia no que diz respeito à reprodução assistida heteróloga, posto que existe a intervenção de um terceiro, doador, participando do processo de inseminação. A Resolução n° 1.358/92 assegura que a identidade desse doador, em tese, não pode ser revelada ao indivíduo que foi concebido por meio da técnica de reprodução assistida heteróloga.

Outra grande controvérsia e que é o principal objeto de estudo do presente artigo, é a reprodução assistida post mortem, fazendo-se necessária a realização de uma análise dos efeitos jurídicos da inseminação artificial post mortem no direito de família e das sucessões, visto que a que a legislação vigente deixa lacunas para inúmeras interpretações doutrinárias. Deste modo, a reprodução assistida seja homóloga, heteróloga, ou post mortem, sem dúvida, repercute juridicamente, visto que da ensejo a inúmeros questionamentos acerca da possibilidade de se atribuir direitos de filiação e sucessórios á pessoa nascida de inseminação artificial, pois há o direito ao conhecimento da origem genética, que se encontra garantido, de modo implícito, pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Desse modo, o objetivo do presente trabalho é analisar, primeiramente, a questão do vínculo jurídico familiar no ordenamento jurídico brasileiro, fazendo-se uma abordagem histórica, uma análise sobre as mudanças a respeito do conceito, das características e reflexos jurídicos do referido vínculo ao longo da história. Logo, após, discorrer-se-á sobre a reprodução assistida heteróloga e sobre a reprodução assistida post mortem, de um modo histórico no país, apontando seus reflexos jurídicos, questões testamentárias e sobre o material genético legado. E por fim, serão levantadas as principais divergências acerca da inseminação artificial post mortem e como, de fato, são tratados os direitos dos filhos gerados por meio dessa técnica, levando-se em consideração o fato de não há legislação específica nesses casos.

1 O VÍNCULO JURÍDICO FAMILIAR: ANÁLISE HISTÓRICA

  1. REPRODUÇÃO ASSISTIDA: PRINCIPAIS ASPECTOS

A reprodução assistida é uma técnica médica para casos de infertilidade, surgindo como meio de satisfazer o anseio de ter filhos, ou construir uma família. Essa reprodução se dá por meio da intervenção humana, posto que não há possibilidade de que ocorra naturalmente. É, conforme disserta Maria Helena Diniz (2002), um conjunto de operações que, por meio da intervenção do homem, une os gametas femininos e masculinos para originar um ser humano.

2.1 FORMAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA TUTELADAS PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002

O Código Civil de 2002 trata do tema apenas no artigo 1597, que traz três situações por meio dos incisos III, IV, V:

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

No que diz respeito à conceituação, temos as palavras de Silvio Rodrigues (2002), que define a inseminação artificial homóloga como “a inseminação promovida com material genético (sêmen e óvulo) dos próprios cônjuges”, a heteróloga o autor define como “fecundação realizada com material genético de pelo menos um terceiro, aproveitando, ou não, os gametas dos próprios cônjuges”, quanto aos embriões excedentários define como “aqueles resultantes da inseminação promovida artificialmente, mas não introduzidos no útero”. (RODRIGUES, 2002, p. 341).

Importante salientar o grifo do inciso III, que traz o termo “mesmo que falecido o marido”, aqui denominado de “post mortem”, posto que é este o tema do trabalho.

2.2 ASPECTOS LEGAIS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Devido aos grandes avanços na medicina que inovam nas técnicas de reprodução assistida e ao crescimento cada vez maior de clínicas que especializadas, não existem leis que se adequem à essas técnicas e procedimentos, nem mesmo que regulem os reflexos jurídicos que surgem desses procedimentos. (CREMA, 2008).

No Código Civil Brasileiro, existe apenas um artigo que sobre o tema, e, no entanto, não traz reflexos jurídicos, apenas cita:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Luiz Gabriel Crema (2008) entende que o documento mais completo que regula sobre o assunto, existente em legislação brasileira, é a Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. O autor afirma que essa resolução busca demonstrar caminhos a serem seguidos por médicos e clínicas, mas, ainda assim, não há um tratamento legal, é uma resolução que se propõe a traçar caminhos éticos. Há também as resoluções nº 303/00 e 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e a Lei de Biossegurança 11.105/05 que possuem o mesmo problema. (CREMA, 2008).

Em 2010 foi aprovada a Resolução CFM nº1957/2010 que, infelizmente, também não regula de maneira suficiente sobre os métodos de reprodução assisitida e seus reflexos jurídicos. Fica aqui, portanto, evidenciada a falta de legislação específica que trate sobre os reflexos jurídicos do tema e a dificuldade de consenso doutrinário a respeito deste, posto que o assunto é vagamente tratado no ordenamento jurídico brasileiro.

2.3 PRINCÍPIOS QUE AMPARAM A REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Tem-se, primeiramente, o princípio que norteia o Estado Democrático de Direito: Dignidade da Pessoa Humana. Este princípio é por muitas vezes motivo de controvérsias doutrinárias, por não existir um conceito formado e unânime do que seria Diginidade da Pessoa Humana. Edinês Maria Sormani Garcia (2004) bem leciona que o termo dignidade tem origem na palavra “dignitas”, substantivo utilizado para designar o que é digno e merece respeito e reverência. GARCIA (2004) ao estudar este princípio, conclui que o mesmo surgira no cristianismo, marcado por premissas de igualdade e fraternidade.

É, pois, um princípio que afirma todos os indivíduos serem dignos de respeito, sendo tratados em igualdade. Roberto Wider (2007) ao tratar da Reprodução Assistida e de temas como Bioética e Biodireito, entende que o real valor da ética perpassa por esse princípio e este princípio, por sua vez, pela liberdade de escolha.

Da mesma forma entende SILVA (2000, p.84) ao afirmar que o reconhecimento da Dignidade da Pessoa Humana se dá no fato do indivíduo poder “se determinar, por intermédio da razão, para a ação da liberdade”. Cabe ainda aqui ressaltar o entendimento de Maria Helena Diniz (2002) ao ressaltar que a bioética e o biodireito adquirem uma face humanista e justa quando reconhecem o respeito à Dignidade da Pessoa Humana e, portanto, sua liberdade de escolha.

Nota-se, portanto, que a Reprodução Assistida, enquanto meio de criação de uma família, é justificado por um dos pilares da Constituição Federal: a Dignidade da Pessoa Humana, posto que este princípio perpassa por valores intrínsecos a qualquer ser humano, e aqui destaca-se a liberdade de escolha. A Dignidade da Pesso Humana é “o princípio vetor” do Direito da Família, garantindo que qualquer membro de qualquer família é digno de respeito e, portanto, de liberdade de escolha. (SCALQUETTE, 2009, p.282).

No que diz respeito à liberdade de escolha, mister se faz ressaltar o princípio da Liberdade do Planejamento Familiar. O Planejamento Familiar é assegurado e regulamentado pela Lei nª 9.263, de 12/01/1996. É um direito que fundamenta-se na paternidade responsável e também na dignidade da pessoa humana. É um direito de livre decisão do casal (ou dos que pretendem a formação de uma família, sendo casal, ou não), de modo que ao Estado não pode cercear a liberdade de escolha dos mesmos, interferindo apenas na medida de propiciar recursos necessários para o exercício desse direito. (GAMA, 2003).

 

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