Os Palestinos da Amazônia
Por Carlos Latuff | 14/11/2009 | CrônicasA convite do Centro Brasileiro de
Solidariedade aos Povos (CEBRASPO), passei uma semana na companhia de
lavradores nos acampamentos da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), no
interior do estado de Rondônia. Nestes meus dias ao lado dos aldeões,
tive a honra de comer de sua comida, participar de suas conversas, de
sua rotina, tomar conhecimento de suas necessidades, de suas demandas e
seus sonhos. Povo forte, que sofre o diabo, mas que não tem medo dele.
Por
duas vezes passei a noite numa cabana de palha, onde vivem seu Abel e
sua esposa Zilda. Reservaram uma cama pra mim, me receberam com todo
carinho e gentileza. Mesmo na simplicidade daquela choupana, havia uma
extrema preocupação em me agradar, na melhor tradição de hospitalidade
do homem do campo. Acordava-se bem cedo, ainda escuro.
"Bom dia,
dormiu bem?". Escova de dentes na mão, rumo ao rio que beira a cabana.
No moedor a manivela, os grãos de café eram preparados para o desjejum.
O leite fervia no fogão a lenha. A mesa posta, os copos, os talheres, o
silêncio era discretamente interrompido tanto por mim quanto pelos
pássaros. Daqui a pouco seu Abel já estava seguindo para a roça, pra
cortar lenha, pra capinar a terra, irrigar as mudas, trabalho árduo
para transformar seu pequeno pedaço de selva em lar. Os lavradores
humildes precisam de bem pouco para viver uma vida digna, e nem mesmo
isso lhes é permitido.
Com o argumento do combate ao
desmatamento, o IBAMA persegue e aplica multas altas aos que vivem da
agricultura de subsistência, usam da Polícia Federal, da Força Nacional
de Segurança e mesmo tropas do Exército para sufocar as comunidades,
como no caso de Rio Pardo, onde barreiras foram erguidas nas entradas e
saídas, pessoas e veículos revistados, postos de combustível do
acampamento removidos, um rigor que não tem sido aplicado aos
latifundiários, que transformam vastas extensões de floresta nativa em
pasto ou monocultura.
O histórico de violência naquela área já
vem de longe. No Brasil Colônia, o vale do Guaporé foi palco de
disputas imperialistas entre Portugal e Espanha, que só terminaram com
as demarcações de terra acordadas pelo Tratado de Madrid em 1750. No
século 18 com o ciclo da mineração e particularmente no final do século
19 com o ciclo da borracha, uma grande leva de migrantes de diversas
partes do Brasil foram atraídos para a região, causando conflitos
agrários com a vizinha Bolívia, que foram resolvidos em 1903 com o
Tratado de Petrópolis. Em 1943, como resultado do desmembramento de
áreas dos estados do Amazonas e Mato Grosso, foi criado por Getúlio
Vargas o Território Federal de Guaporé, tendo sido rebatizado para
Rondônia em 1956, em homenagem ao Marechal Cândido Rondon, militar que
entre 1910 e 1940 comandou expedições de Cuiabá até o Amazonas para
instalar linhas telegráficas e levar a boa e velha civilização branca
para o seio dos povos indígenas. Rondônia torna-se estado em 1982.
A
Liga dos Camponeses Pobres surgiu em agosto de 1995, quando
trabalhadores rurais que ocupavam terras da Fazenda Santa Elina, na
cidade de Corumbiara, resistiram ao brutal despejo promovido por
policiais e jagunços, resultando na morte de 11 pessoas (em números
oficiais), incluindo a menina Vanessa de apenas 6 anos, no que ficou
conhecido como o "Massacre de Corumbiara". De lá pra cá, cansados de
esperar por uma reforma agrária que nunca chega, os camponeses e suas
famílias decidiram promover a "revolução agrária" no peito e na raça.
São eles os acusados pela revista Isto É de serem sanguinários
guerrilheiros ligados (adivinhem) as FARC.
O que pude presenciar
durante minha visita aos acampamentos foram trabalhadores rurais e suas
famílias armados, isso sim, de uma força de vontade poderosa, capaz de
enfrentar os rigores da Amazônia Ocidental. O clima equatorial,
extremamente quente e úmido, onde o sol inclemente castiga a carne, as
doenças tropicais como a leishmaniose e a malária, que por aquelas
bandas são tão comuns quanto um resfriado, animais selvagens como
onças, porcos-do-mato e serpentes venenosas, um risco sempre presente,
oculto pela densa vegetação.
Mas não são os rigores da selva
amazônica os maiores inimigos do povo do campo. São os fazendeiros
milionários e seus exércitos particulares formados por assassinos de
aluguel e policiais, cujas ações criminosas são sustentadas por
políticos locais e a imprensa corrupta, que alimentada com verbas
publicitárias e mesmo matérias pagas, tenta demonizar a justa
resistência dos pequenos agricultores. Os matadores são conhecidos por
todos, andam tranquilamente pelas ruas, por vezes ostensivamente
armados. Não são raras as execuções a luz do dia, a vista de todos.
Qualquer um que tenha coragem de, por exemplo, denunciar os pistoleiros
num programa de rádio, corre o sério risco de ser assassinado assim que
por os pés pra fora da emissora. Conceitos como direitos humanos e
cidadania inexistem nos cantões de Rondônia, onde a pistolagem é uma
instituição consagrada pela sociedade. Numa corrida de taxi em
Ariquemes, junto com mais três passageiros, passei a viagem que durou
cerca de 45 minutos ouvindo animadas histórias de fazendeiros,
políticos e mortes encomendadas. Uma delas reproduzo aqui.
Um
homem pescava num rio. Conseguiu apanhar dois pintados. Amarrou os
peixes na garupa de sua bicicleta e seguiu tranquilamente por uma
estrada. No meio do caminho foi parado por um fazendeiro e seu jagunço
numa caminhonete.
- "Onde você pescou isso?", perguntou o fazendeiro.
- "Naquele rio logo ali", respondeu o sujeito.
-
"Então pode deixar por aí mesmo, que aquele rio é meu", disse o
fazendeiro, no momento em que o capanga já saía do veículo de forma
ameaçadora. O pescador teve de fugir.
Ao comentar esse caso com
o pessoal da LCP, me disseram que ele teve sorte de não ter sido
simplesmente baleado. Essa é somente uma das histórias que explica bem
a razão da revolta que o camponês de Rondônia traz consigo no peito.
Historicamente,
a reforma agrária no Brasil nunca se deu de maneira espontânea pelos
governos, e sim pela pressão feita pelos movimentos populares de luta
pela terra, que no caso da LCP, sequer contam com o INCRA para assentar
as famílias. Para os integrantes da LCP, não existe o conceito de
"desapropriação de terras improdutivas", visto que mesmo as produtivas,
estando em mãos de ricos fazendeiros, servirão invariavelmente aos
interesses do agronegócio. Os camponeses da LCP escolhem as grandes
fazendas, as ocupam, erguem lonas, resistem ao ataque de jagunços, e
depois de 2 a 3 meses fazem demarcação dos lotes, o chamado "corte
popular", inicialmente erguendo cabanas de palha e depois de madeira.
Depois
de algum tempo, os acampamentos se assemelham a povoados do velho oeste
norte-americano, como no caso de Jacinópolis, com farmácia, escola,
mercado, tudo feito de tábuas.
Diferente da confortável vida das
grandes cidades, onde restaurantes, lanchonetes e supermercados estão
logo ali na esquina, nas áreas de acampamento o supermercado mais
próximo pode estar a 80km de estradas de terra acidentadas. É natural
portanto que os camponeses tenham de caçar para comer, o que justifica
a posse de velhas espingardas que servem também para a defesa contra
onças e porcos selvagens. Operações constantes do IBAMA e das polícias,
tentam tomar estes armamentos rústicos das mãos dos lavradores,
impedindo que eles se defendam tanto de animais ferozes quanto de
pistoleiros. O direito a legítima defesa também lhes é negado. Os
camponeses, no entanto, seguem resistindo a estas agressões como podem.
Fecham estradas, bloqueiam o avanço da polícia com barricadas, criam
seus próprios sistemas de vigilância e segurança. Não se entregam
nunca. São os palestinos da Amazônia.