Tem dias que me pego literalmente na Terra dos Náufragos. Infelizmente, é um pedaço de chão que  circunda todo o planeta. Como uma espécie de ferida que se alastra pelo corpo. Como? Não sabe do que se trata?

Repare bem: são náufragos.

No palco urbano, em meio às grifes, às gentes todas e às viaturas de toda sorte, são toscos vestígios. O Estado não se dá conta deles. O Município idem. E a Federação, de tão longínqua, sequer entra nessa lista. Restam os contemporâneos, os conterrâneos, aqueles que passam, “quem passa nem liga, já vai trabalhar...e você minha amiga já pode chorar”. Na verdade, quem passa já se acostumou tanto com eles que deixou de enxergá-los. Civicamente, não existem. Entidades em si  mesmas, encarnados sem CPF, sem RG, sem declaração disso ou daquilo, e por aí vai, tudo indicando que mais dia menos dia vão deixar essa terra como viveram - e não necessariamente como vieram. Como viveram, sim,  a maior e mais ingrata parte de suas vidas. E partirão sem um papel, uma menção, um carinho que seja. Tem alguém que vai dizer que a vida lhes foi madrasta, e não serei eu quem irá negar. Outros irão se levantar aos brados, externando com todas as letras que são derrotados porque querem, que não tem auto-estima, nem força, nem garra, nem nada, e merecem muito bem viver o papel que representam.Tenho fé, no entanto, que um pelo menos, se levante em meio à turba e proclame “não é bem assim”.

 

Enquanto isso, tem muitos seres engrossando esse caldo, motivados por questões mil, entregues a uma praia feia e deserta, repleta de sacos e latas de lixo, “a rua pra andar e o céu pra olhar”, e a bem da verdade, nem isso.

Não se trata apenas de uma questão material.

A espécie aqui enfocada difere, por exemplo, dos chamados moradores de rua, que mesmo sob as pontes ainda fazem fogueiras e serestas, ainda comem juntos, ainda tentam se lavar, ainda, vejam bem, tentam se comunicar conosco, pedindo e aceitando alguma ajuda, em geral nos semáforos.

As vítimas do naufrágio, apesar de encarnados são ao mesmo tempo almas penadas, vultos, ausentes de tudo e de todos, impressentidos, fugidios, sem rosto,  sem sobretudo o rosto alheio, e quase sempre curvados sobre o que restou.

Os náufragos também não pertencem à antiga casta dos mendigos, aqueles, você sabe, não raro caem de bêbados e cantarolam ao léu. Que lhe pedem uma esmola e invariavelmente balbuciam,  entre os dentes que sobraram e as roupas que já se fundiram ao corpo, um sagrado “Deus te abençoe”. Os náufragos não. São mudos.

Não pedem nada. Não aceitam nada.

Sequer se comunicam entre si.

Desabençoaram-se.

Desconectaram-se.