Foi no final dos anos 1960 que conheci três membros da Fraternidade dos Pequenos Irmãos de Jesus, Francisco, Serafim e o francês Guido.  Eles moravam num bairro operário e muito carente na época, a Vila Palmares, em Santo André, vizinho de São Caetano do Sul, onde ficava o colégio onde eu estudava.

Os membros da fraternidade fazem voto de pobreza e castidade, devendo compartilhar as mesmas condições das pessoas da comunidade, morando em grupos de dois a quatro sacerdotes em cada casa.  Essa fraternidade foi fundada pelo Padre René Voiulaume em 1933 e teve entre seus membros Jacques Maritain, filósofo e pensador católico, amigo do Papa Paulo VI.

A casa onde moravam ficava aberta para os jovens do bairro frequentarem. Tinha uma pequena biblioteca, discos e revistas disponíveis para a comunidade.  De acordo com as normas da fraternidade, eles trabalhavam como operários tendo uma vida simples como qualquer indivíduo dessa classe. Serafim era pianista e abandonou a profissão ao se converter, passando a trabalhar numa fábrica como operário não qualificado. Francisco, era médico, profissão que largou ao se tornar um membro da ordem.  Ele dava duro como pedreiro, uma profissão pesada para quem não é do ramo. O francês Guido já era sacerdote quando aderiu ao movimento, mas também trabalhava como operário numa fábrica.

Sempre tive curiosidade em saber quais foram as causas que levaram os dois brasileiros a abandonarem suas profissões para se dedicarem de corpo e alma ao movimento. Talvez uma desilusão amorosa ou mesmo vocação para o sacerdócio. Serafim um mineiro, mais expansivo do que o Francisco, contava suas histórias. Numa delas aconteceu quando foi à França estudar no seminário da fraternidade.  Logo após sua chegada descobriu que por lá não havia chuveiro.  Conversou com o superior e explicou que precisava de um banho depois da longa viagem. Foi então que ele lhe comunicou que não havia chuveiro no seminário e os banhos eram tomados num banheiro público e lhe deu o dinheiro para isso.

No dia seguinte ele foi novamente solicitar dinheiro para outro banho, de acordo com os hábito brasileiros.  O superior lhe deu um sermão, pois como fez voto de pobreza, tomar banho todos os dias era um luxo que os padres da fraternidade não podiam dispor. Foi assim que ele soube que os banhos eram no máximo semanais ou mensais durante o inverno. Assim, Serafim precisou se adaptar aos hábitos de higiene dos franceses e sem perfume.

Guido, mesmo depois de muitos anos no Brasil, ainda falava arrastado com forte sotaque francês. Numa das vezes que o encontramos, em 1966, em sua casa, perguntou para a turma se a gente havia ouvido a bunda. Bunda? Ninguém entendeu em princípio. Depois de várias tentativas de explicação conseguimos entender que se tratava da marchinha A banda, do Chico Buarque que havia vencido o festival da Record. Rimos muito e o caso ficou sendo motivo de piada dos garotos e dos seus companheiros de ordem.

Depois que deixei de frequentar o bairro, nunca mais encontrei os três sacerdotes. Socorrido pelo amigo desde aquela época, Tomás J. Padovani, soube então que o Guido, com mais de 90 anos, faleceu há cinco anos em João Pessoa, Paraíba, onde trabalhou os últimos anos com a população encarcerada. O Serafim faleceu no ano passado numa casa de repouso em Belo Horizonte, com 83 anos, depois que teve um AVC. O Chico, ainda está vivo, com 93 anos. Mora em São José dos Campos numa casa de repouso para idosos. Infelizmente já não tem memória recente, mas ainda se lembra de coisas do passado.

Dos irmãozinhos ficaram as boas lembranças de três pessoas abnegadas que acreditavam nos valores do cristianismo primitivo, sem templos e sem batina, vivendo tal como um pedreiro-carpinteiro que nasceu há mais de 2000 anos na Palestina. Naqueles tempos estávamos em plena ditadura quando até reuniões religiosas eram vistas como suspeitas pelo regime.