Uma vez por ano a visita deles era sagrada. Chegando sempre de surpresa, os quatro homens de terno preto entravam no escritório com suas temidas pastas 007, caras sisudas, e, sem cumprimentar ninguém, ocupavam a sala da auditoria que ficava vazia o resto do ano.

A empresa era tradicional, indústria têxtil de renome, mas o escritório era numa cidade do interior. E o clima agradável da cidade contribuía para a rotina tranquila dos funcionários no dia a dia da empresa. Naquela época ainda nem se falava em downsizing, reengenharia e outros modismos do mundo corporativo.  O sujeito entrava na empresa e só saía aposentado. Os estudos terminavam com a graduação e quem conseguisse esse grande feito exibia o diploma num quadro na parede do escritório e não raro era chamado de “doutor”. Pós-graduação? MBA? Nem se falava nisso.

Mas a presença dos quatro homens de preto mudava a rotina do escritório. Os caras questionavam pessoas, pediam documentos, comprovantes, notas fiscais, fichas razão, inventário... Era um desespero. O clima ficava pesado nesse período e os pacatos funcionários contavam os dias para que o suplício da auditoria chegasse ao fim.

Os homens faziam parte da equipe de auditoria interna do grupo e apesar de voltarem todos os anos, jamais alguém conseguiu fazer amizade com algum deles. Até que Marcos, o sujeito mais cara de pau da área de crédito, descobriu o ponto fraco de um deles. Natalino Morais era apostador assíduo da loteria esportiva. Toda segunda feira ele chegava perguntando pela parte esportiva do jornal para conferir o resultado da loteca.  Naquele dia Marcos escondeu o jornal e resolveu se vingar por tantos anos de pressão psicológica dos auditores. Era a grande chance de dar o troco e o alvo seria o Natalino.

- Dr. Natalino, posso ajudar?

- Você viu a parte esportiva do jornal de hoje?

- Não, mas, se o senhor quiser eu tenho o resultado do último concurso da loteria esportiva.

- Ah, então nesse caso vou anotar.

Natalino sentou-se em frente à mesa de Marcos, pegou o bilhete com a aposta, tirou do bolso uma caneta e foi anotando os resultados enquanto Marcos ditava um a um.

-Jogo um, coluna do meio. Jogo dois, coluna um. Jogo três, coluna um.

Marcos olhava discretamente o jogo do auditor e repetia o resultado, dando a entender que ele estava acertando cada um dos treze jogos.

Quando finalmente pensou ter feito os treze pontos, aquele homem ríspido e circunspecto pôs-se a gritar e a pular como criança no meio do escritório. Todos ficaram perplexos enquanto Marcos, percebendo a bobagem que havia feito, tentou acalmá-lo, mas o homem continuava pulando e gritando até que perdeu os sentidos e desmaiou.

A ambulância foi chamada e o auditor foi levado às pressas para a emergência do posto de saúde mais próximo.

Marcos se arrependeu profundamente pela brincadeira de mau gosto e reconheceu que a vingança foi descabida. Seu senso de culpa fez com que ele fosse até o posto médico visitar o Dr. Natalino. Estava disposto a contar a verdade e pedir perdão pela bobagem que havia feito.

Ao entrar na enfermaria ouviu o médico explicando à esposa de Natalino que ele havia tido uma queda súbita de pressão, o que havia provocado o desmaio. O homem agora estava sedado, mas já estava fora de perigo e logo acordaria.

De repente ele começa a despertar e reconhece o rosto familiar da esposa, o médico ao seu lado e... finalmente, Marcos, o cara que lhe havia dado a notícia que supostamente mudaria sua vida. Seus olhos brilharam e ele esboçou um largo sorriso quando Marcos se aproximou.

Visivelmente constrangido, Marcos procurou as palavras certas para dizer a verdade.

- Dr. Natalino, eu preciso lhe dizer uma coisa.

- Você já me deu a melhor notícia da minha vida rapaz. Fique tranquilo, para onde eu for lhe levarei comigo. Agora sou um homem rico.

Marcos gelou, mas foi firme e prosseguiu:

- Dr. Natalino eu estava brincando.

- O quê?  Como assim?

- Na verdade o senhor não acertou os treze jogos da loteria. Eu estava brincando e...

Marcos ainda não terminara de falar quando o homem revirou os olhos e desmaiou outra vez.

Com a licença médica de Natalino e a equipe reduzida, a auditoria demorou dois meses além do previsto.

Marcos entrou em profunda depressão, atormentado pela culpa e pediu demissão três dias depois do episódio.

Soube-se mais tarde que ele havia se tornado Hare Krishna.