1 INTRODUÇÃO

Cada vez que algum tipo de instabilidade atinge os países exportadores de petróleo, mudanças na sua distribuição e, por conseguinte, no seu valor agregado são verificadas. Tais mudanças são refletidas em todo o mundo visto que o petróleo é essencial para, além de outras funções, a manutenção da produção da energia necessária para o progresso da humanidade. No entanto, atualmente, é possível encontrar recursos que substituem essa fonte energética. O Brasil, por exemplo, possui uma ampla matriz energética pautada pela produção de energia por meio de outros recursos, como o hídrico, a biomassa e o etanol.

A participação do etanol, em especial, como fonte d eenergia alternativa no Brasil foi iniciada com o primeiro choque do petróleo no ano de 1973. Segundo Nye Jr. (2002), a primeira crise do petróleo, tem suas origens a partir do momento em que “os países produtores estabeleceram o ritmo de produção e, por conseguinte, tiveram uma forte influência sobre os preços, em vez [desses] serem fixados unicamente pelo mercado nos países ricos.” (NYE JR, 2002, p. 238). Tais países produtores de petróleo, organizados em uma entidade, a OPEP, que tinha como objetivo principal “enfrentar as companhias internacionais de petróleo” (YERGIN, 1993, p. 541), tomaram medidas em 1973 e em 1974 que geraram reflexos, diretos ou não, em grande parte dos países do sistema internacional. Desta forma, o preço de importação do barril do petróleo foi elevado, de acordo com Melo e Pelin (1984), de US$3 para US$12 por barril.

Os efeitos negativos do controle árabe sobre o recurso continuaram com a segunda crise do petróleo, choque que se prolongou de julho de 1979 a dezembro de 1980 e que, conforme Melo e Pelin (1984), elevou os preços de US$ 12 para US$ 34 por barril, ou seja, aproximadamente 183% a mais do que em 1973/74.

Tendo em vista esse cenário, o Brasil procurou desenvolver fontes alternativas para substituir os combustíveis derivados do petróleo (LEITE; LEAL, 2007). Por meio de programas energéticos, o governo de Ernesto Geisel procurou afrouxar a tensão externa derivada do primeiro momento em que os ajustes dos níveis petrolíferos no Oriente Médio demonstraram afetar os mercados brasileiros, localizados a milhares de quilômetros de distancia. Ou seja, havia uma situação de dependência mútua e a política estaria retratada como “um tapete de relacionamentos diversos” (KEOHANE; NYE JR., 2001, p. 4, tradução nossa).

Desses programas, o de maior visibilidade no cenário nacional e internacional foi o PROÁLCOOL, criado por meio do decreto no 76.593, de 14 de novembro de 1975, este apresentava como objetivo a substituição da circulação de automóveis movidos a combustíveis derivados do petróleo por aqueles movidos a álcool a partir do estimulo ao aumento da safra da cana-de-açúcar, bem como da capacidade industrial para transforma-la em álcool combustível.

No entanto, o PROÁLCOOL sofreu críticas no que concerne à possibilidade de uma substituição de culturas alimentares pela cultura canavieira que, segundo certas análises, ocupou o espaço agrícola que antes se destinava à produção de grãos para o consumo doméstico. Essas críticas se justificam pela elevação da área colhida de cana-de-açúcarem 28% entre 1975, ano em que o PROÁLCOOL foi formulado, e 1979 enquanto que, nesse mesmo período, a área colhida do arroz apresentou um aumento de apenas 2,7% e do milho em 10%. 

De acordo com as análises preliminares, esse resultado foi consequência dos créditos facilitados oferecidos pelo governo brasileiro que geraram novas condições de produção atrativas para os agricultores. Nesse sentido, a hipótese que ganhou destaque foi a de que os novos interesses brasileiros estariam sendo refletidos nas culturas alimentares, que se retraiam em consequência da expansão da cultura canavieira, cada vez mais estimulada pelos programas do álcool a partir de créditos facilitadores e pela alta demanda dos veículos movidos a álcool combustível.

Situação semelhante pode ser verificada após o ano de 2003, quando foi iniciado um período no qual ocorreu um aumento substancial dos preços por barril de petróleo. Segundo Skrebowski (2011), “entre 2003 e 2008 os preços do petróleo subiram a US$10/ano”. De acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, no ano de 2002, o preço médio pago por um barril de petróleo importado correspondia a US$ 24,54 e em 2008, no ápice do aumento, o mesmo barril custava US$ 109,52, 346%a mais.

Em 2004, na fase inicial da escalada de preços do barril de petróleo, o desembolso do BNDES para o setor sucroalcooleiro foi de R$ 590,5 milhões em contraponto com o total de R$ 2.677,4 milhões registrado em 2008 (MILANEZ; BARROS; FILHO, 2008, p. 8).

Além disso, a partir de 2007 e até 2008, os preços dos alimentos, em especial os grãos, registraram altos níveis em escala global, num episódio denominado pela ONU como ‘crise mundial alimentar’. Esta crise se manifestou no Brasil por meio do aumento nos preços do arroz e do milho, por exemplo. De acordo com Perozzi (2009), “em 2008 os preços do arroz no mercado varejista atingiriam os níveis mais altos observados desde 2005”. Nesse mesmo períodoé possível verificar uma expansão da área colhida de cana-de-açúcar de 52% entre 2003 e 2008, enquanto que a área colhidado arrozapresentou uma retração de 10% e do milho uma expansão deapenas 11%. A tabela 2 apresentada adiante expõe essa situação.

Nesse sentido, há uma percepção de que, tanto no ano de 1973 até início de 1980 e no ano de 2003 até 2008, a área destinada à produção da cana-de-açúcar aumentou de forma desproporcional em relação à do arroz e do milho. Além disso, é possível notar que o contexto por trás de ambas as situações era de alta dos preços do petróleo e de tentativas do governo brasileiro para estimular a produção da cana-de-açúcar, recurso responsável pela geração de álcool combustível que poderia ser misturado à gasolina, reduzindo a quantidade de petróleo presente nesta, por exemplo.

À vista do exposto, esse artigo se propõe a apresentar a discussão sobre a possibilidade de os estímulos governamentais para a produção da cana-de-açúcar possuírem vínculos com a retração da produção de alimentos.

2 O PRIMEIRO E O SEGUNDO CHOQUES DO PETRÓLEO

A partir de 1959, o petróleo enfrentou uma baixa de preços como consequência da entrada de novas companhias independentes no mercado. Em virtude dessa situação, a Exxon, uma das grandes companhias de petróleo até então, decidiu unilateralmente reduzir o preço de referência do petróleo, ignorando o acordo assinado entre as companhias petrolíferas e os países produtoresem que se previa a consulta prévia aos governos sobre possíveis reduções nos preços de referência. Visando a defesa de seus interesses, os países detentores do recurso se reuniram em Bagdá em setembro de 1960 e decidiram a criação da Organização dos Países Produtores de Petróleo - OPEP. A organização tinha como membros-fundadores a Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait e Venezuela e segundo Marinho Jr. (1989) propunha-se a: "a) Coordenar e unificar as políticas petrolíferas para salvaguardar os interesses dos países-membros, individual ou coletivamente; b) criar e desenvolver meios para garantir a estabilização dos preços do petróleo nos mercados internacionais, evitando danosas e desnecessárias flutuações; c) assegurar receitas estáveis aos países produtores, assim como suprimentos eficientes, econômicos e regulares para os países consumidores; d) garantir um justo retorno ao capital investido na indústria petrolífera." (MARINHO JR., 1989, p. 117).

No primeiro momento, as grandes companhias internacionais de petróleo, que antes possuíam um elevadonúmero de concessões expedidas pelos países produtores, não reconheceram a existência da OPEP e continuaram a negociar diretamente com cada país possuidor do recurso. Entretanto, em 1968, foi lançado um manifesto político, no qual Resolução XVI/90 previa que os países membros tinham autoridade para, entre outros, fixar unilateralmente os preços de referência do recurso e adquirir participação no capital da companhia que recebeu a concessão (MARINHO JR., 1989, p. 128). A partir deste e de acordos posteriores igualmente importantes, a autoridade destes países sobre o petróleo começou a se mostrar cada vez mais forte.

Posteriormente à guerra de Yom Kippur, em 1973, na qual aviões egípcios atacaram Israel em retaliação à criação do Estado judaico, os membros árabes da OPEP se comprometeram a reduzir sua produção aos poucos até que Israel se retirasse dos territórios tomados durante a guerra e os direitos do povo palestino fossem reconstituídos. Assim sendo, o petróleo passou a ser utilizado como um recurso de poder e a cotação dos barris deste foi alterada em grande medida, dando início ao primeiro choque do petróleo. De acordo com Tamer (1980), apesar de os preços do barril de petróleo não demorarem a se estabilizar novamente, essa situação criou transtornos principalmente para os países em desenvolvimento que dependiam da importação de petróleo.

No entanto, a partir de 1979, os efeitos negativos do controle dos países do Oriente Médio sobre o nível petrolífero culminaram mais uma vez com a segunda crise do petróleo. Segundo Filho (2008), com o advento da Revolução Iraniana, o poder político do Irã, importante exportador do recurso, passou para as mãos de extremistas religiosos islâmicos e a produção iraniana de petróleo foi interrompida, reduzindo a oferta e consequentemente, aumentando os preços.

As duas crises do petróleo – em 1973 e em 1980 – sugerem situações em que instabilidades políticas resultaram em efeitos a todo o sistema internacional, inclusive ao Brasil, país que nesse momento vivia uma situação de dependência energética.

2.1 O Brasil nesse contexto: o PROÁLCOOL 

A primeira crise do petróleo, segundo Tamer (1980), apesar de ter sido de curta duração, provocou graves efeitos sobre os preços do petróleo. Além disso, segundo o autor, a crise resultou em pressões inflacionárias e desequilíbrios na balança de pagamentos do Brasil uma vez que este se encontrava sem políticas energéticas eficazes e consequentemente, dependente da importação do petróleo.

No momento do estouro do primeiro choque, o Brasil vivia a ditadura militar com o governo de Geisel. De acordo com Skidmore (1988), quando a OPEP anunciou que reduziria a sua produção de petróleo, a administração brasileira previu que o cartel não duraria muito tempo e, caso contrário, o Brasil poderia negociar bilateralmente com os países exportadores. Porém, se o aumento dos preços fosse irreversível, então haveria a necessidade de se alterar a política energética brasileira. Nesse sentido, as alternativas do governo no longo prazo eram estimular a Petrobrás para que seu programa de exploração no mar fosse expandido ou incentivar a “destilação de etanol da biomassa (principalmente cana-de-açúcar)” para assim abastecer o mercado energético brasileiro com o álcool (SKIDMORE, 1988, p. 351).

Nesse sentido, o governo brasileiro buscou suprir o mercado energético com álcool por meio do Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL), implementado em 1975. Tal programa propunha-se a “minimizar a dependência energética externa brasileira, direcionando para este setor [sucroalcooleiro] recursos, estimulando o desenvolvimento da área cultivada, com a implantação de novas destilarias e engajamento de nosso parque industrial principal, o setor automobilístico.” (FERNANDES, 1983, p.5). Em resumo, este programa visava controlar os déficits da balança comercial (cujo resultado depende das importações e exportações) por meio da substituição da circulação dos automóveis movidos a combustíveis derivados do petróleo por aqueles movidos a álcool - ou mesmo elevar a quantidade de álcool presente na gasolina, de forma que se reduzisse a quantidade de petróleo presente nesta - a partir do estímulo ao cultivo da cana-de-açúcar, bem como da capacidade industrial para transforma-la em álcool combustível.

Devido ao seu caráter inovador, o programa do álcool foi de grande destaque na cena internacional. De acordo com Melo e Fonseca (1981), outros países consideraram seguir o exemplo do Brasil, reconhecido como o primeiro a levantar a possibilidade da substituição dos derivados de petróleo.

É importante destacar que a partir da década de 1970, tecnologias movidas a petróleo, como automóveis, eram cada vez mais utilizadas e a demanda pelo recurso atingia níveis extraordinários, em consequência “o mundo estava se tornando cada vez mais dependente do Oriente Médio”. (YERGIN, 1992, p. 589).  No Brasil não era diferente, o aumento da demanda por combustíveis provenientes do petróleo ilustrava o crescimento acelerado na economia brasileira e as políticas implantadas nos primeiros anos da década de 1960 que resultaram em uma expansão na demanda de automóveis, estimulando investimentos no setor e produzindo um ciclo que tendia ao aumento da produção de transportes, o que exigia grande consumo de combustível, até então, principalmente gasolina. De acordo com Skidmore (1988), em 1975 o Brasil importava 80% do seu petróleo.

Na primeira fase do PROÁLCOOL, período referente ao primeiro choque, o governo brasileiro fixou uma meta de produção para o etanol de 3 bilhões de litros até 1980 que seriam destinados à mistura com a gasolina reduzindo os níveis de petróleo presentes nesta (MELO; PELIN, 1984). Para alcançar esse objetivo, a produção da cana-de-açúcar foi estimulada, sobretudo a partir de créditos oferecidos aos projetos de produção aprovados pela Comissão Executiva Nacional de Álcool (MELO; FONSECA, 1981). De acordo com os autores "as condições básicas de financiamento do PROÁLCOOL durante 1975/79 eram as seguintes: a) para fins agrícolas, 100% do financiamento a taxas de juro de 13-15% (dependendo do tamanho do empréstimo) e reembolso de um (capital circulante) a doze anos (investimentos fixos); b) para fins industriais (destilarias), 80-90% de financiamento (dependendo da região), 15-17% de juros e 3-12 anos para pagamento." (MELO; FONSECA, 1981, p. 12).

Entretanto, no ano de 1979, a Revolução Iraniana e a interrupção dos fornecimentos de petróleo do Irã, que na época se encontrava como o quarto maior produtor do olho cru e o segundo maior exportador (COSTA, 2009), demandaram que as políticas do PROÁLCOOL no Brasil fossem reforçadas e intensos financiamentos para a produção da cana-de-açúcar foram implantados no país.

Sendo assim, a segunda fase do PROÁLCOOL, correspondente ao segundo choque, foi o momento no qual o programa se efetivou como medida de substituição de energia a partir do estabelecimento de novas metas de produção do etanol que, segundo Melo e Pelin (1984), passariam a ser de 10,7 bilhões de litros até 1985. Para consolidar as novas ambições o programa do álcool continuou utilizando o crédito como ferramenta principal: "quanto à parte agrícola, os financiamentos podem atingir 100% do valor do orçamento, respeitando os limites de 80% e 60% do valor da produção esperada, respectivamente nas áreas SUDAM/SUDENE e outras regiões. Os encargos financeiros nos investimentos industriais eram fixados em duas partes: primeiro, 40% das variações das ORTN – fixada 50% para 1980 e segundo uma taxa de juros de 2,6% que depende da região, da matéria prima utilizada e do tipo de destilaria (anexa ou autônoma)." (MELO; FONSECA, 1981, p. 14).

Todavia, o programa do álcool sofreu duras críticas durante a sua implementação. Entre elas, o debate sobre a substituição da cultura alimentar pela cultura canavieira se destaca, uma vez que este segue até os dias atuais, especialmente com a crise mundial alimentar de 2007/2008.

2.2 Cultura de grãos nesse período

Na década de 1980, pensadores contrários ao PROÁLCOOL criticavam a escassez de recursos para a exploração de novas terras a fim de suprir as novas necessidades de produção, desse modo eles alertavam para a possibilidade de que houvesse uma substituição de culturas a partir do momento em que os agricultores considerassem mais vantajoso produzir cana-de-açúcar, que posteriormente poderia ser convertida no etanol combustível, do que grãos. As baixas na produção de grãos básicos para o consumo, como o milho e o arroz, passaram a ser vistas como resultado do aumento dos incentivos governamentais para o desenvolvimento do setor canavieiro em detrimento do setor alimentar. Posto isto, Melo (2013), um dos principais críticos ao programa, conclui que "como resultado da operação dessas variáveis econômicas, a nossa conclusão é que a expansão dos exportáveis e da cana-de-açúcar para álcool se fará à conta de áreas que, dado objetivo de se “encher a panela do povo”, deveriam ir sendo incorporadas à produção de alimentos. Na eventualidade desta previsão estar correta, o Brasil deverá enfrentar os anos 80 praticamente em repetição ao quadro que se desenvolveu durante os anos 70. Isto é, uma progressiva diminuição relativa da nossa produção de alimentos e a continuação da mudança que vinha-se verificando na composição da produção agrícola brasileira, agora na direção de exportáveis e, também, da cana-de-açúcar. Assim, também deve repetir-se o impacto dessa situação nos preços de alimentos, que deverão continuar experimentando expressivas altas em relação a outros bens." (MELO apud OLIVEIRA; NETO, 2013).

Conforme a tabela 1, entre 1975, ano em que o PROÁLCOOL foi formulado, e 1979 a área colhida referente à cana-de-açúcar expandiu em 28%. Por sua vez, a área colhida do arroz apresentou um aumento de apenas 2,7%. Já a área colida do milho aumentou em 4,2%. Quanto à segunda fase do PROÁLCOOL, o Anuário Estatístico do Brasil de 1986 revela uma expansão da área colhida referente à cana-de-açúcar de 55,6% quando comparado ao ano de 1979, enquanto o arroz cresceu em 2,5% e o milho em 10%. 

Tabela 1 – Área colhida de cana-de-açúcar, arroz e milho em ha (1973 – 1986).

 

Cana-de-açúcar

Arroz

Milho

1973

1 958 776

4 794 832

9 923 570

1974

2 056 691

4 664 883

10 672 450

1975

1 969 227

5 306 270

10 854 687

1976

2 093 483

6 656 480

11 117 570

1977

2 270 036

5 992 090

11 797 411

1978

2 391 455

5 623 515

11 124 827

1979

2 536 976

5 452 086

11 318 885

1980

2 607 628

6 243 138

11 451 297

1981

2 825 879

6 101 707

11 520 336

1982

3 084 297

6 024 657

12 619 531

1983

3 478 785

5 108 250

10 705 979

1984

3 655 810

5 351 473

12 018 446

1985

3 851 522

4 751 878

11 801 736

1986

3 945 898

5 590 927

12 460 129

Fonte: elaboração própria a partir do Anuário Estatístico do Brasil de 1974 – 1986.

Melo e Fonseca (1981) sugerema ocorrência de uma substituição de culturas desde a primeira fase do PROÁLCOOL, no sentido em que as evidências numéricas estariam apontando para uma significativa realocação de recursos da agricultura para a produção da cana-de-açúcar. Segundo os autores, a pressão do aumento da cultura canavieira foi um importante fator para que a produção degrãos no país não tivesse um desempenho satisfatóriojá que poderia não conseguir acompanhar o aumento populacional, gerando assim um “problema de competição por recursos agrícolas e a possibilidade de, dado os objetivos nacionais de mais [...] biomassa energética, resultar um prejuízo à produção de alimentos.” (MELO; FONSECA, 1981, p. 157).

3 AS ALTAS DO PETRÓLEO ENTRE 2003 E 2008.

A partir de 2003, o preço do barril de petróleo apresentou altas constantes. De acordo com o relatório do Ministério de Minas e Energia de 2008, quatro fatores podem ser apontados como os responsáveis por tal acontecimento:

1) Crescimento do consumo mundial de petróleo: segundo o relatório, o crescimento econômico leva à atividades que requerem maior consumo de combustíveis, principalmente derivados do petróleo, de forma que haja uma expansão do consumo mundial do recurso;

2) Fraca expansão da produção mundial de petróleo: a produção mundial do petróleo não tem acompanhando a demanda devido a, entre outros fatores, modificação da estratégia de mercado da OPEP e tensões sociais em outros países exportadores de petróleo, como a Venezuela e Nigéria;

3) Redução da capacidade ociosa, o que torna o mercado sensível a tensões geopolíticas, por exemplo: esse fator se refere ao aumento da diferença entre a quantidade de petróleo produzida pelos membros da OPEP e aquele que poderia ter sido produzido dado os recursos disponíveis. Sendo assim, tensões geopolíticas, ou mesmo a possibilidade destas, elevam o custo do petróleo uma vez que essas situações levam a um temor pela falta do recurso;

4) Especulação financeira no mercado futurosobre os preços do petróleo: o aumento na gama de opções para investimento no mercado futuro fez com que os papéis de petróleo passassem a ser frequentemente movimentados nos últimos anos. Dessa forma, foi adicionado à essas transações um “componente especulativo à demanda de petróleo, buscando obter valorização financeira na arbitragem entre preços presente e futuro” (MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA, 2008, p. 31).

3.1 Os estímulos ao setor sucroalcooleiro no Brasil

A partir de 2003 começaram a circular no Brasil veículos movidos à gasolina ou à uma mistura entre o álcool e gasolina. De acordo com Teixeira (2008), a partir de 2005 os veículos flex-fuel correspondiam a maior parte do mercado de automóveis e, a partir de 2008, cerca de 90% dos veículos leves comercializados apresentavam esta tecnologia. Nesse sentido, o consumo de álcool se aproximava do consumo da gasolina.

No ano de 2003 a produção de etanol correspondia a 10000 mil m3 e em 2008, esse número alcançou a margem de pouco mais de 25000 mil m3 (TEIXEIRA, 2008, p. 204). Sendo assim, é possível afirmar que em 5 anos a produção interna de etanol quintuplicou.

Durante este mesmo período, as políticas de financiamento do BNDES no setor sucroalcooleiro também foram ampliadas de modo que entre 2004 e 2008 o desembolso do banco para o setor aumentasse em R$2086,9 milhões (MILANEZ; BARROS; FILHO, 2008, p. 8).

Ademais, a partir de 2007 e até início 2008 o mundo viveu uma situação de crise de alimentos. Este fenômeno foi mundial e pode ser caracterizado como um “rápido e significativo aumento dos preços dos alimentos em todo o mundo, ameaçando parcelas da população a voltarem a condições de insegurança alimentar, já sofridas no passado” (ROSSI, 2008, p. 17).

Certas análises apontaram uma parcela da responsabilidade pela crise mundial de alimentos para a questão da substituição de culturas de modo que as matérias-primas (como a cana-de-açúcar) estariam disputando o espaço agrícola destinado à produção de grãos. Como colocado por Escobar et al (2009), cereais são a fonte mais importante de alimentação no mundo, direta ou indiretamente, assim sendo, o uso das áreas agrícolas destinadas à produção de grãos que poderiam ser consumidos por humanos, mas estão sendo utilizadas pela produção de biocombustível já começa a mostrar sinais alerta em algumas partes do mundo.

Apesar destas análises terem sido corroboradas pela ONU e pelo FMI, A CONAB aponta causas externas para a crise e afirma que no Brasil houve apenas uma “natural acomodação dos preços dos alimentos aos praticados no mercado internacional” (ROSSI, 2008, p. 18).

É importante ressaltar, nesse sentido, que as divergências de opiniões sobre o tema demonstram que este debate ainda não se encerrou e ambas as análises merecem destaque. 

3.2 Cultura de grãos nesse período

No período entre 2003 e 2008 é possível verificar uma expansão da área colhida de cana-de-açúcar de 52%. Enquanto isso, a área colhida do arroz apresentou uma retração de 10%. Já o milho teve a sua área colhida expandida de apenas 11%. Conforme indicado pela tabela 2:

Tabela 2 – Área colhida de cana-de-açúcar, arroz e milho em ha (2003 – 2007)

 

Cana-de-açúcar

Arroz

Milho

2003

5 371 020

3 180 859

12 965 678

2004

5 631 741

3 733 148

12 410 677

2005

5 805 518

3 915 855

11 549 425

2006

6 144 286

2 970 918

12 613 094

2007

7 080 920

2 890 926

13 767 431

2008

8 140 089

2 850 678

14 444 582

Fonte: Elaboração própria a partir do Anuário Estatístico do Brasil, 2004 – 2008.

A partir de 2007, os preços dos alimentos, em especial os grãos, passaram a registrar altos níveis em escala global e a sociedade brasileira sentiu este fenômeno por meio do aumento no preço da cesta básica, influenciado principalmente pelo arroz.

Nesse sentido, o debate acerca da questão da substituição de culturas no Brasil é retomado tendo em vista proximidade temporal da alta do petróleo, da crise mundial de alimentos e da elevação das tentativas do governo brasileiro de estimular a produção da cana-de-açúcar em detrimento da produção de grãos para consumo doméstico.

CONCLUSÃO

A partir dos dados apresentados, é possível concluir que há a possibilidade de haver uma íntima conexão entre as instabilidades ocorridas nos países fornecedores de petróleo, que a princípio em nada tem a ver com o setor agrícola do Brasil, e a disponibilidade de recursos alimentares no país. A partir do momento em que a interdependência é estabelecida como um conceito chave necessário para a compreensão acerca das conjunturas do mundo, o estudo de situações que ilustrem essa situação de interdependência faz-se necessário no âmbito das relações entre os países.

Nesse sentido, uma análise aprofundada sobre essa conexão seria importante para atuações que busquem reduzir a vulnerabilidade energética brasileira visto que, apesar de o Brasil possuir uma matriz energética ampla, este não deixa de estar em uma relação de dependência mútua com os países exportadores do petróleo.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTIVEIS. Importações e Exportações: barris equivalentes de petróleo. Disponível em:   Acesso em: 21 abr. 2013

Estatístico do Brasil - 1977. Rio de Janeiro, FIBGE – Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1977. v. 38, p. 1-848. Disponível em: Acesso em: 20 abr. 2013.

Anuário Estatístico do Brasil - 1980. Rio de Janeiro, FIBGE – Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1980. v. 41, p. 1-840. Disponível em: Acesso em: 20 abr. 2013.

Anuário Estatístico do Brasil - 1986. Rio de Janeiro, IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1986. v. 47, p. 1-628. Disponível em: Acesso em: 20 abr. 2013.

Anuário Estatístico do Brasil - 2003. Rio de Janeiro, IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1977. v. 63. Disponível em: Acesso em: 20 abr. 2013.

Anuário Estatístico do Brasil - 2007. Rio de Janeiro, IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2007. v. 67. Disponível em: Acesso em: 20 abr. 2013.

BACHA, Carlos José Caetano. Economia e Política Agrícola no Brasil. São Paulo: Editora Atlas, 2004.

BOOTH, W. C., COLOMB, G. G. e WILLIAMS, J. M. A arte da pesquisa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Contexto Mundial e Preços do Petróleo: Uma Visão de Longo Prazo, Brasília: dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013

COSTA, GEÓRGIA BELISÁRIO MOTA. Política do petróleo: A relação dos Estados Unidos com os países produtores de petróleo do Oriente Médio. 2009. Monografia (Conclusão de Curso) – Universidade de Brasília, Instituto de Relações Internacionais, Brasília. Disponível em: . Acesso em: 06 maio 2013.

ESCOBAR, José C.; LORA, Electo S.; VENTURINI, Osvaldo J.; YÁÑES, Edgar E.; CASTILLO, Edgar F.; ALMAZAN, Oscar. Biofuels: Environment, technology and food security. Renewable and Sustainable Energy Reviews, Elsevier, vol. 13, p. 1275-1287, ago. 2008. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013.

FERNANDES, Amador Perez. O álcool: solução energética brasileira. Minas Gerais: ADESG, 1983.

FILHO, Ernani Teixeira Torres. O Papel do Petróleo na Geopolítica Americana. In: II Conferência Nacional da Política Externa e Política Internacional – II CNPEPI, 2007, Rio de Janeiro. Estados Unidos: presente e desafio. Brasília, 2008. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2013.

INDEX MUNDI. Índice de preços do petróleo bruto. 2013. Disponível em: . Acessoem 1 maio 2013.

KEOHANE, Robert O.; NYE JR., Joseph.Power and Interdependence.3ed. Nova York: Longman, 2001.

LEITE, Rogério Cézar de Cerqueira; LEA, Manoel Régis L. V. O biocombustível no Brasil. Novos Estudos, São Paulo, n. 78, jul. 2007. Disponível em: Acesso em: 06 maio 2013.

MALLMANN, Maria Izabel. Relações políticas internacionais: como entendê-las? CivitasPorto Alegre, v. 5, n. 2, jul.-dez. 2005. p. 233-244.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos da Metodologia Científica. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

MARINHO JUNIOR, Ilmar Penna. Petróleo: política e poder - um novo choque do petróleo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989

MELO, Fernando Homem de; FONSECA, Eduardo Giannetti. Proálcool, energia e transportes. São Paulo: Pioneira: FIPE, 1981.

MELO, Fernando Homem de; PELIN, Eli Roberto. As soluções energéticas e a economia brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1984.

MILANEZ, Artur Yabe; BARROS, Nereida Rezente; FILHO, Paulo de Sá Campello Faveret. O perfil do BNDES ao setor sucroalcooleiro. BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 28, p. 3-36, set. 2008. Disponível em: . Acesso em: 07 maio 2013.

MINGST, Karen A. Princípios de relações internacionais. Rio de Janeiro: Elsevier, Campus.

NYE JR., Joseph S. Compreender os Conflitos Internacionais: Uma Introdução à Teoria e à História. Lisboa: Gradiva Publicações, 2002.

OLIVEIRA, Maria Elizete de; NETO, Wenceslau Gonçalves. O Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL): Um estudo realizado através da imprensa uberlandense (1975-1980). 2013. Disponível em: . Acesso em: 06 maio 2013.

PEROZZI, Mariana. 2008: preços no varejo atingem maior nível dos últimos anos. Planeta Arroz, 05 mar 2009. Disponível em: Acesso em: 21 abr. 2013.

ROSSI, Wagner. O Brasil e a Crise Mundial de Alimentos. In: Conab. Abastecimento e Segurança Alimentar: O crescimento da agricultura e a produção de alimentos no Brasil. Brasília, 2008. p. 17 – 22.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

SKREBOWSKI, Chris. Uma breve explicação econômica do Pico Petrolífero. Tradução de JF. 2011. Disponível em: http://resistir.info/peak_oil/skrebowski_16set11.html> Acesso em: 14 abr. 2013.

TAMER, Alberto. Petróleo, o preço da dependência: o Brasil e a crise mundial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

TEIXEIRA, Wellington Silva. A Expansão do Álcool Combustível e da Indústria Canavieira no Brasil. In: Conab. Abastecimento e Segurança Alimentar: O crescimento da agricultura e a produção de alimentos no Brasil. Brasília, 2008. p. 203 – 209.  

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982

YERGIN, Daniel. O Petróleo: uma historia de ganância, dinheiro e poder. São Paulo: Scritta, 1993.