Os dois casos guardam alguma semelhança entre si, mesmo que seja apenas nos detalhes. E é nos detalhes que o diabo mora, como diz o ditado. Ambos, jornalistas, entraram espontaneamente em instituições públicas e saíram de lá mortos e cada caso com sua dose de crueldade, fruto de regimes autoritários que se colocam acima das leis, da ética e da verdade.

No dia 24 de outubro de 1975, Vlademir Herzog, jornalista, diretor de jornalismo da TV Cultura em São Paulo, apresentou-se espontaneamente ao DOI CODI para depor sobre as atividades do Partido Comunista Brasileiro. No dia seguinte estava morto, com o laudo médico constatando a causa morte como suicídio. A fotografia do jornalista morto foi um deboche para a inteligência da sociedade brasileira e, nem mesmo o Presidente da República, o General Ernesto Geisel, engoliu a farsa. Ele viajou a São Paulo e deu uma bronca no General Ednardo D’avila Mello, responsável pelas prisões e interrogatórios.

Herzog era filiado ao Partido Comunista, mas esse partido não havia aderido à resistência armada contra o regime e era tolerado pelos órgãos de repressão, pois nunca chegou a oferecer riscos ao regime. Acontece que, na época, o general Geisel estava conduzindo um projeto de distensão política para fazer a transição democrática, pois além da crise econômica, os militares estavam desgastados internamente e no plano internacional. A maioria dos militares apoiava a saída lenta e gradual do governo e seu retorno ao seu papel institucional. Ocorre que o grupo do General Ednardo D’Ávila Melo se recusava a aceitar a distensão e usou a prisão de vários membros do PCB como uma demonstração de força e para desafiar o presidente.  Esse não foi o único assassinato e logo depois o operário Manuel Fiel Filho também foi morto em circunstâncias parecidas nas dependências do DOI CODI. É claro que a desculpa do suicídio não foi utilizada desta vez.  Diante disso, Geisel demitiu Ednardo e posteriormente o General Silvio Frota, Ministro do Exército e, também, vinculado à linha mais radical do Exército.

Herzog, além da sua posição na TV Cultura, tinha várias atividades culturais, envolvendo cinema, TV, teatro, universidade etc. e seu padrinho era o secretário de ciência e tecnologia, José Mindlin, destacado empresário do setor de autopeças. Ele também trabalhou anteriormente na BBC de Londres. O caso teve repercussão internacional e na comunidade judaica.

Kashoggi, também jornalista e crítico da monarquia autoritária da Arábia Saudita, residente nos EUA, onde trabalhava para o jornal Washington Post, foi ao consulado da Turquia para tratar de papéis para o seu casamento. O jornalista foi assassinado no consulado e seu corpo se encontra até hoje desaparecido. Um vídeo mostra um dos seguranças saindo do consulado usando as roupas do jornalista, para tentar passar a ideia de que ele havia saído de lá vivo.

Como existem gravações captadas pela noiva de Kashoggi que ficou do lado de fora quando ele entrou, ficou difícil manter a versão e hoje, depois de muitas pressões internacionais, o regime árabe já admite o crime, mas não a autoria ou a responsabilidade. O príncipe MBS, herdeiro do trono e conhecido por usar métodos pouco ortodoxos para calar seus adversários, é acusado pelo Ocidente de ser o mandante, o que ele nega. Mas como explicar que vários homens de sua guarda pessoal tenham ido para a Turquia e esperado o jornalista no consulado?

Os militares brasileiros foram mais civilizados, mesmo sendo um crime interno. Entregaram o corpo à família para as exéquias e plantaram a farsa do suicídio. Como se tratava de um judeu, o Rabino Henry Sobel recusou fazer o sepultamento no local destinado aos suicidas, como manda a lei judaica, o que teve grande repercussão. Os seguranças do príncipe herdeiro da Arábia Saudita foram menos sutis, pois alegaram uma briga e sumiram com o corpo que foi esquartejado para a sua retirada do consulado.

Supõe-se que ambos jornalistas foram torturados e, provavelmente, não suportaram a violência e morreram. O Estado brasileiro foi condenado pela justiça, pois cabe aos seus representantes, a responsabilidade física e mental das pessoas sob sua guarda. Vamos esperar qual vai ser o desdobramento do caso árabe, pois o regime continua fechado e o velho rei só está esperando a chegada do agente funerário para entregar a coroa para o príncipe herdeiro.