Foi uma noite de chuva que inundou São Paulo. As águas tão esperadas chegaram junto com o Paul McCartney e o seu show na Arena do Palmeiras. Vi pela televisão uma parte do show, muito bem produzido, para um público de 45 mil pessoas, a maioria jovens, mas muitos cinqüentões e até sessentões estavam lá para ver um ícone da música pop. Canções como Let it be, Penny Lane, Hey Jude, entre outras fizeram o publico vibrar e cantar junto. O velho Paul ensaiou algumas palavras em português como manda o figurino dos artistas globalizados e dançou e se movimentou no palco como nos velhos tempos, ou quase.

Os Beatles, enquanto banda, nunca desembarcaram por essas plagas, pois além de muito requisitados, era preciso muita grana para trazê-los. Diziam as más línguas que eles temiam ataques de mosquitos ou de índios, pois o Brasil ainda era visto como uma grande floresta selvagem, mas que comprava seus discos. Há ainda outra versão: os militares abominavam as calças justas e cabelos compridos do quarteto e viam a banda como um estímulo a rebeldia juvenil. Os jovens precisam estudar para o futuro do Brasil, era o discurso oficial. Na falta deles, a jovem guarda capitaneada pelo Roberto Carlos ocupou parte do espaço com um discurso bem mais comportado.

Muito tempo passou e os Beatles se desmancharam e cada um foi para o seu canto. John Lennon o mais rebelde dos rebeldes, enveredou por outras praias, bebeu tudo o que tinha direito e experimentou todas as drogas possíveis. Mas continuou compondo e seu disco Imagine revelou um rebelde com um discurso mais adulto e conseqüente. Infelizmente, um psicopata tirou a sua vida na porta do seu prédio em New York. Esse maluco quando foi preso estava com um livrinho chamado The catcher in the rye (O apanhador no campo de centeio), do J.D.Salinger, símbolo da rebeldia juvenil no mundo desde os anos 1950.  Eu li o livro na época, mas não vi nenhuma relação possível entre a obra e o assassinato.

Uma das minhas alunas faltou na prova no dia do show e assumiu o risco de precisar estudar mais para não ser reprovada. Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, pensei com meus botões. Com a idade dela, talvez encarasse a empreitada, mas hoje prefiro ver o McCartney pela TV e com direito a alguns cochilos. Mas nos velhos tempos eu também cabulei a aula no colégio para assistir o lançamento do filme Help no velho Cine Max, perto da estação de trem de São Caetano do Sul. Na época era um lugar que estava mais próximo da Penny Lane, um lugarzinho próximo a estação de metrô que Lennon e McCartney transformaram em uma linda canção. O cine Max desapareceu e o lugar foi reurbanizado perdendo a memória que se escondia pelas paredes velhas e sujas.

Para as garotas, os meninos não existiam diante do quarteto mágico. Elas sonhavam dia e noite com eles e só obtínhamos alguma atenção se conseguíssemos cantar alguma canção e soubéssemos alguma novidade sobre eles. No colégio, juntamente com o João Henrique Capelli, o João Santander e o Rodolfo Karrer, assumimos o encargo de cantar Yesterday na festinha organizada pela professora de inglês, uma senhora muito simpática com quem eu me relacionava muito bem. Ensaiamos para valer, mas na hora H, não entrei no palco e o quarteto virou um trio. Foi melhor, pois eu era o mais desafinado dos quatro, mas que eu saiba nenhum deles seguiu a carreira artística (rss). O tempo passou, os amigos do vocal desapareceram, mas a canção continua gravada em minha memória como um carrapato calcificado.
Infelizmente o canal que estava transmitindo o show ao vivo interrompeu a transmissão e fui dormir sem ouvir as últimas canções e o encerramento. Que falta de respeito! Fiquei pensando em tudo isso enquanto um senhor de setenta e dois anos cantava e como nunca teria imaginado que qualquer um dos Beatles estaria num palco cantando as suas velhas e saudosas canções com as suas artrites, rugas e madeixas brancas. Outros tempos.