Ortotanásia: Paternalismo Legal x Autonomia Individual

Por ROSSANA MOTA GUIMARÃES | 27/10/2016 | Direito

Rita de Cássia Freire Silva[2]

Rossana Mota Guimarães[3]

RESUMO     

As deficiências da Legislação Penal Brasileira, que data da década de 40, levam a uma insuficiência em sua função aglutinadora. Proibir a ortotanásia pode incorrer na violação da dignidade humana, direito assegurado pela a Constituição Federal/88. O presente trabalho objetiva analisar a compatibilidade da ortotanásia com o ordenamento jurídico vigente, observando o respeito à autonomia do indivíduo como expressão da dignidade humana. Também apresenta o suporte jurídico à ortotanásia a partir do Novo Código de Ética Médica - Resolução do CFM nº1.931/2009, fazendo uma interpretação à luz da Constituição Federal/88. Por fim, é feita uma avaliação crítica da postura parternalista da legislação penal brasileira vigente frente à uma possível agressão à autonomia individual do paciente.

Introdução

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: tempo para nascer e tempo para morrer” Eclesiastes 3.1 (SHEDD, 1997, p. 961).

A morte é uma condição inerente ao ser humano. Vários questionamentos tem sido levantados a respeito da vida e da morte, os quais se fundamentam em explicações filosóficas, metafísicas ou religiosas. Assim como as culturas ocidental e o oriental orientam os direitos humanos pelos princípios do universalismo e do relativismo, respectivamente, a aludida dicotomia vida x morte é compreendida de diferentes maneiras nas referidas culturas. A luta contra a morte tem sido um desafio ao longo da história das civilizações. Contudo, a interferência no curso da vida, bem como o prolongamento da mesma tem sido possível tendo em vista o avanço biotecnológico a partir da segunda metade do século XX.

Alguns conceitos estão relacionados com a morte, bem como algumas categorias específicas e operacionais de prolongamento ou abreviação da vida. A obstinação terapêutica dispensada nos casos para os quais a medicina não oferece possibilidade de cura, ocasiona, muitas vezes o prolongamento de sofrimento familiar e do próprio paciente. Todavia, uma conduta pautada na restrição de tais recursos, em uma atitude paliativa e de simples conforto no final da vida, poderia ser interpretada como crime.

A hipótese de crime contra a vida poderia ser justificada pela insuficiência da função aglutinadora da Legislação Penal Brasileira, cuja Parte Especial data da década de 40. A Parte Especial do Código Penal, ao tutelar de forma absoluta o bem jurídico vida, poderia incorrer no erro de enquadrar ortotanásia, conforme o entendimento de alguns, em uma hipótese de homicídio omissivo, e por conseguinte, na violação da dignidade humana, princípio fundamental tutelado pelo art. 4º da Constituição Federal/88. A dignidade humana possui como forma de expressão a autonomia do indivíduo, o que possibilita a todo ser humano decidir quanto à disposições sobre o próprio corpo.

O presente trabalho tem como escopo analisar a compatibilidade da ortotanásia dentro do ordenamento jurídico brasileiro, apresentando um suporte jurídico a partir do Novo Código de Ética Médica - Resolução do CFM nº1.931/2009, fazendo uma interpretação à luz da Constituição Federal/88. As intervenções e os aspectos jurídicos influenciam o curso final da vida, o que poderia, com isso, desrespeitar a autonomia individual do doente, sob a justificativa de um paternalismo benevolente. Seria lícito violar a autonomia individual em prol da tutela absoluta ao bem jurídico vida?

1 Vida: direito ou dever?

A Constituição Federal/88 dispõe sobre direitos invioláveis quando prevê:

Art. 5º caput: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida... (CF/88)

Conforme Silva (2006, p. 42) o direito inviolável à vida é pré-requisito para o exercício dos demais, recebendo do legislador destaque entre os direitos individuais e coletivos, o que permitiu atribuir à vida um valor supremo. Contudo, terá a vida tal supremacia que se justifique defendê-la a qualquer preço, não importando a qualidade da mesma? O Estado tutela o bem jurídico vida de forma absoluta, punindo todo aquele que não respeitar o aludido direito. Todavia, tal postura paternalista pode levar de uma posição de direito à vida a um dever, uma obrigação de viver.

2 Eutanásia, distanásia e ortotanásia

Constituem algumas categorias específicas e operacionais de prolongamento ou abreviação da vida. Distanásia relaciona-se tanto com a eutanásia quanto com a ortotanásia, e todas derivam do grego. Em uma distinção entre qualidade e quantidade de vida em paciente terminal, Martin (1998) afirma que a distanásia é um combate à morte pelo prolongamento da vida humana ao máximo, ou seja, preocupa-se mais com a quantidade de vida. A eutanásia, caracterizada tanto por ação quanto por omissão de conduta...

[...]é a ação médica intencional de apressar ou provocar a morte – com exclusiva finalidade benevolente – de pessoa que se encontre em situação considerada irreversível e incurável, consoante os padrões médicos vigentes, e que padeça de intensos sofrimentos físicos e psíquicos. (BARROSO, 2010,  p. 4)

Contudo, a eutanásia, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, é terminantemente proibida, e quem a pratica responde por homicídio privilegiado, de acordo com o art. 121, §1º do Código Penal. Da mesma forma, a eutanásia é vedada pelo Código de Ética Médica/09, no caput do art. 41 do capítulo V.

A ortotanásia pode ser considerada como um meio termo entre eutanásia e distanásia. “A palavra ortotanásia também tem origem grega, orto quer dizer correto e thanatos morte, significando morte certa, correta ou no seu tempo” (ASSIS, 2010, p. 13).

Trata-se da morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos extraordinários e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como na eutanásia. É a aceitação da morte, pois permite que ela siga seu curso. (BARROSO, 2010,  p. 5)

A ortotanásia, a “ boa morte ”, representa a humanização da morte. Busca aliviar as dores física e psíquica, sem adicionar sofrimentos, e está interligada com o cuidado paliativo e a limitação consentida de tratamento.

Nos casos de ortotanásia, de cuidado paliativo e de limitação consentida de tratamento (LCT) é crucial o consentimento do paciente ou de seus responsáveis legais, pois são condutas que necessitam da voluntariedade do paciente ou da aceitação de seus familiares, em casos determinados. A decisão deve ser tomada após adequado processo de informação e devidamente registrada mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). (BARROSO, 2010, p. 6)

O TCLE, segundo afirma Wanssa (2011, p. 106), é o instrumento para o consentimento informado, o qual é pressuposto associado ao respeito à autonomia, que significa “autogoverno, autodeterminação da pessoa de tomar decisões que afetem sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. Refere-se à capacidade de o ser humano decidir o que é “bom”, ou o que é seu “bem-estar” ”(MUÑOZ, 1998, p. 57).

3 Ortotanásia e o ordenamento jurídico brasileiro

O tratamento jurídico oferecido àqueles no final da vida tem sido alvo de debates e propostas de reformas, principalmente no que tange à ortotanásia, matéria outrora desconhecida pela Constituição Federal/88 e pelo Código Penal/40. É preciso analisar a compatibilidade da ortotanásia dentro do ordenamento jurídico brasileiro e a preservação da autonomia individual e da dignidade humana.

3.1 Ortotanásia e a Constituição Federal/1988

A norma constitucional vigente “...é norma que serve de fundamento na aplicação das demais outras que tutelam a vida humana”(SILVA, 2006, p. 42). Precedendo os direitos e deveres fundamentais, a Constituição Federal/88 tem, em seu art. 1º, como um dos princípios que legitimam um Estado Democrático de Direito, a dignidade humana. Segundo Temer (2010, p. 26), os princípios fundamentais seriam normas de eficácia plena, tendo aplicabilidade imediata, direta, integral, e independem de posterior legislação para sua operatividade. É compartilhado por muitos o entendimento de que dignidade humana seja o mínimo para que se possa viver bem, com respeito absoluto aos direitos fundamentais do ser humano. Pessini (2005, p. 66) apresenta uma idéia de dignidade relacionada à “qualidade de vida”. Segundo ele não é qualquer vida que merece ser vivida. A partir da dicotomia qualidade de vida versus quantidade de vida...

[...]é como se o primeiro grupo preconizasse a vida desde que com dignidade, em conformidade com o art. 1º da Constituição Federal de 1988, e o segundo grupo defendesse a vida a qualquer preço, enquanto bem jurídico maior a ser tutelado pelo Estado. (ASSIS, 2010, p. 3)

 É preciso dignidade tanto para viver quanto para morrer. Medidas terapêuticas em pacientes incuráveis, simplesmente com objetivo fisiológico, caracteriza uma condição indigna de vida, postergando algo inevitável. Não se estaria prolongando a vida, mas sim o processo de morte, adicionando dor e sofrimento. A CF/88 proíbe, no art. 5º, III, a tortura e o tratamento desumano ou degradante. A obstinação terapêutica e o tratamento fútil, tanto por meios comuns quanto extraordinários, no desvelo de vencer a morte, podem se transformar em tortura para o paciente, o verdadeiro titular do direito à vida. Seria uma violação ao princípio constitucional da dignidade humana.

3.2 Ortotanásia e a Legislação Penal Especial/1940

Quanto à restrição de recursos biotecnológicos em doenças incuráveis, segundo Villas-Bôas (2008, p. 70) “o Código Penal brasileiro de 1940 precede a revolução tecnológica da segunda metade do século XX e não tinha como prever expressamente hipótese dessa ordem”. As deficiências e insuficiências da Legislação Penal são observadas em sua função aglutinadora, cabendo, portanto, aos juristas contemporâneos uma interpretação criativa, a partir de fontes diversas, para melhor aplicá-la a um caso concreto de ortotanásia.

Importante recurso nessas circunstâncias tem sido a bioética, com sua maior capacidade de adaptação ao novo e sua rede de princípios que vem sendo construída desde a década de 70, servindo, nas situações em tela, para nortear o profissional no que tange a como se portar diante do paciente em final de vida e os limites de uso de recursos biotecnológicos disponíveis. (VILLAS-BÔAS, 2008, p. 71)

Sobre a ortotanásia, de acordo com Villas-Bôas (2008, p. 71), discute-se se ela se enquadraria no art. 121, §1º do Código Penal, como homicídio simples privilegiado, ou omissão de socorro, ou exercício regular da profissão. Todavia, o que o legislador pensava quando dispôs que é crime contra a vida matar alguém impelido por motivo moral? O que seria motivação moral? Cabe aqui uma melhor interpretação doutrinária e jurisprudencial.

3.3 Ortotanásia e o Código de Ética Médica/2009

Conforma Dantas (2011, p.7) o Código de Ética Médica/09 é orientado por 25 princípios fundamentais, 10 normas diceológicas, 118 normas deontológicas, ou seja, aquelas que determinam deveres de conduta e 5 disposições gerais. O descumprimento de qualquer norma deontológica estará sujeito à pena. A respeito da ortotanásia, cita-se o princípio contido no inciso XXII, que orienta o seguinte:

[...]

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