A chuva fina, intensa, mas fria, martelava o teto daquele ponto de ônibus no bairro do Portão, na zona sul de Curitiba, capital do Estado do Paraná.  Bem agasalhada, Carla esperava pacientemente pelo ônibus Santa Cândida-Capão Raso que a deixaria no centro da cidade. Já havia cinco anos que trabalhava naquele órgão público. Orgulhava-se de seu trabalho. Sentia, cada vez mais, que devolvia à cidade e a população, com seu exemplar trabalho, tudo que recebia em troca. Bom transporte, saúde pública aceitável e segurança condizente. Estes quesitos ora eram quebrados por uma ou outra vez, mas, de forma geral, estavam sendo cada vez mais populares na comunidade. Enquanto aguardava a chegada do transporte, Carla pensava  que, apesar de tudo, sua vida estava sendo levada de forma correta e honesta.

Neste mesmo momento, Licia também aguardava, na Santa Cândida, bairro da zona norte , o ônibus da mesma linha que Carla esperava, que a levaria também ao centro da cidade.

Com a mesma chuva fina e intensa que castigava o teto, Licia meditava sobre a sua vida. Já havia mais de 20 anos que trabalhava naquele órgão público e, até hoje, não havia sido reconhecido todo o seu valor profissional.

Uma colega de serviço público com bem menos tempo de serviço que ela, já havia sido promovida duas vezes, enquanto ela  amargava a mesma função por mais de 15 anos. Não era justo este tipo de coisa. O funcionalismo público, segundo Licia, deveria ser pautado pelo tempo de serviço prestado e não por concursos ou outros parâmetros de meritocracia.  Isto, realmente, não era justo.

Ela, Licia, era realmente, uma profissional no desenvolvimento de suas funções. Chegava cedo ,  cumpria seu horário religiosamente (inclusive porque o “chefe” recentemente, havia implantado relógio ponto para entrada e saída). Nunca entendeu porque havia sido preterida em cargos mais elevados. De maiores responsabilidades.  Já há 15 anos ela recebia, no balcão da recepção, toda a documentação que entrava ou saía da “secretaria”. Quando da entrada de documentos, ela batia o carimbo de PROTOCOLO, devolvia (se necessário) uma via carimbada para o remetente e o enviava  com protocolo de tramitação interna, para o setor ou pessoa responsável por dar andamento naquele processo.  
Ultimamente, estavam querendo implantar um sistema computadorizado para, segundo aquele “pessoalzinho” (palavra dela) da informática, facilitar e melhor coordenar a tramitação de documentos na secretaria. Como se ela não soubesse fazer isto.

Com estes pensamentos, tanto Carla quanto Licia, entraram nos respectivos ônibus e acomodaram-se para os 30 minutos do trajeto até o centro da cidade.

Coincidentemente,  ao mesmo tempo, no local do trabalho. Um prédio com fachada estilo anos 20 , de cor azul claro, tinha,  logo na entrada, um local onde os funcionários podiam deixar seus pertences, como guarda-chuvas, capas e bolsas.

Ao encaminharem-se para as respectivas mesas de trabalho, viram que no mural da repartição, de feltro verde, preso com alfinetes coloridos, havia um “Convite” do diretor do órgão para um treinamento que estava programado, gratuitamente, para as duas semanas seguintes, sobre “A RESPONSABILIDADE DO FUNCIONALISMO ESTATAL”, no próprio auditório de treinamentos e reuniões da repartição.

Na realidade o treinamento era de somente 20 horas, divididos em 4 horas por noite, das 18:00 às 22:00 de segunda a sexta, mas seria aplicado em duas semanas, pois, se caso o participante perdesse uma aula da primeira semana, poderia tranquilamente recuperá-la na semana seguinte. Seriam entregues CERTIFICADOS DE PARTICIPAÇÃO que, futuramente, poderiam contar pontos para promoções.
Carla, parou, leu com atenção ao convite, tirou um bloco de papel da bolsa e anotou algo, enquanto, mentalmente, verificava como faria para poder participar deste treinamento. Não havia, até o momento, nada que pudesse impedí-la de participar.

Pediria à sua mãe que ficasse com seu filho durante o período das aulas. Já estava até vendo a alegria da “” em poder ficar com seu netinho durante as noites daquela semana.
Quanto ao marido, tinha certeza que ele, ao sair do trabalho, iria para casa, arrumaria o jantar e, ao findar das aulas, estaria esperando-a  para levá-la para casa, perguntando, ansioso, como foi o treinamento daquela noite.
Já, Licia, também parou, leu o mesmo convite, fez um muxoxo e seguiu direto para sua sala, pensando:

- Mas este “diretorzinho” só faz coisa errada mesmo! Onde já se viu marcar treinamento para a noite?
E nem pagarão hora extra nem nada! O máximo que poderei “ganhar” será um cafezinho e umas bolachinhas. Grandes coisas.  Eu não estaria aqui já por mais de 20 anos se não soubesse a própria responsabilidade e, não seria agora, por umas “bolachinhas” que vou alterar meu jeito de ser, além do que,  tenho família para cuidar quando saio  do trabalho.

Você já sabe onde quero chegar.  Não é?

A responsabilidade profissional de cada ser humano lhe é dada na proporção exata da sua capacidade.

Com exceções de praxe (alguns cargos comissionados, por exemplo) o funcionalismo público é, em sua maior parte, composto por técnicos e profissionais que em suas funções, nada ficam a dever aos colegas da iniciativa privada.

Isto desde a recepcionista de uma secretaria de Estado quanto a um engenheiro, motorista, professor ou qualquer outra função correlata.

Sob este aspecto, até mesmo a mentalidade de algumas pessoas, são bastante similares.

No caso específico de Licia e Carla, poderiam ser colocadas em qualquer empresa privada que não haveria alternação significativa de comportamento.

O problema maior da nossa dupla é que ela tem FUNÇÃO pública, ou seja, são remuneradas diretamente com os valores arrecadados de toda a população, portanto, tem sim uma responsabilidade maior perante este próprio público. Já seus colegas da iniciativa privada, tem a responsabilidade no limite imposto pela própria empresa, ou seja, se não houver a reciprocidade de bons serviços-produtos para a comunidade a qual serve, a empresa irá à falência e, por consequências eles, colegas em função, perderão seus empregos.
Logicamente que Carla, ao se dispor, e encontrar condições para isto, a frequentar com entusiasmo o treinamento proposto terá maior conhecimento de suas responsabilidades podendo então melhor desenvolver-se profissionalmente. Diferentemente de Licia, que, encontrou argumentos suficientes para não frequentá-lo e, ao que parece, continuará a receber processos pelos próximos 25 anos.

As condições de desenvolvimento das funções profissionais, seja na iniciativa privada ou pública, aparecem continuamente para todos. Com uma ou outra empresa-repartição dentro das exceções. Grande parte do corpo do funcionalismo público (assim como na iniciativa privada) é composta por pessoas de boa índole. De boa fé. Com vontade de crescer e ver, com o fruto do seu trabalho, o crescimento de sua empresa ou município-estado ou nação.

Cada um de nós, tem parcela de orgulho de alguma coisa, pela nossa família ou etnia. Orgulho pelo clube de futebol que torcemos ou pelo partido político que cremos ser o melhor. Orgulho pela cidade ou estado que nascemos. Orgulho de ser médico ou advogado. Motorista ou estivador. Orgulho de ser brasileiro. Orgulho de ser FUNCIONÁRIO PÚBLICO.

E você?  Do que se orgulha?