“Ops! O relógio parou. Ou foi o tempo?”

         Em 2019, uma preocupação foi materializada através de um rol de textos que nos levaram à produção de um trabalho que, posto sobre a mesa será um novo livro. Das entranhas de um velho professor, um velho pai e um jovem ancião, brota uma preocupação de quem visualiza um grande abismo entre a ciência e o sentimento, a matemática e a filosofia, o ter e o ser, o conquistar e o conquistar-se, o querer e o poder, o eu e o outro, o analógico e o digital. O livro, que está no prelo, pergunta “Onde estão sendo formados os pais do amanhã”, em uma versão muito próxima do saudosismo pelas causas que, no passado, eram verdadeiras lições de vida.

          De repente, um freio de arrumação no mundo. O mundo parou, sem que uma explicação seja dada por quem quer que seja. Freio de arrumação? Como assim? Na verdade, o mundo estava desarrumado?  por quem? Pelo homem das ciências que jogou por terra todos os valores que o tempo vinha se encarregando de deixar no passado? Pode ser, mas é preciso que se revejam os motivos que levaram o homem moderno a fazer sucumbir todos e quaisquer valores que foram cultuados por gerações através dos séculos. As sociedades, mesmo as consideradas “brutas”, reservavam em seu seio, um rol de valores que nutriam sua gente, transmitido a fim de assegurar continuidade dos seus feitos, equívocos e conquistas.

       Voltando ao ano de 2019, ano em que foi forjado o trabalho “Nós e os Nós”, vale antecipar alguns pontos que cobram exatamente essas ações quw distanciam o homem do hoje, de valores que possam garantir a perpetuação da espécie, não apenas como mais uma espécie que por aqui passou por algumas dezenas de séculos, mas uma espécie que fora capaz de amar-se amando, ensinar mostrando, possuir sendo.

     Retomando a questão dos valores que movem as sociedades, em uma das passagens do nosso trabalho, rememoram-se alguns registros de gerações pretéritas que adotavam certos “rigores” por assim dizer, para melhor garantir que a formação dos seus filhos netos. No foco, trazemos uma história real vivida em um passado não tão distante: uma senhora, semianalfabeta, trabalhadora rural, mãe de sete filhos, que parecia um sargento diante de sua corporação em processo de formação. Ela mantinha em cumbucas, vasilhas rústicas feitas de cabaças, da família das abóboras, robustas porções de grãos: em uma, milho; em outra, feijão; em outra, sementes de girassol. Para quem chegasse em sua casa, esse detalhe passava despercebido. Mas, para as crianças, tudo aquilo fazia parte de um ritual.

          Se chegasse uma visita, pela localidade onde moravam, era fato raro, mas existia. Então chegada a visita, as crianças se recolhiam e, naturalmente, encontravam sob uma mesa bem gasta e de pouca utilidade e distante do local onde a visita se posicionaria, os grãos misturados. Era calculado o tempo que cada uma levaria para “separar” cada espécie de grão, em seguida, era a vez da outra, da outra, até a visita ir embora. E havia um detalhe: se as crianças se tornassem muito ágeis na separação, a sábia senhora, já deixava em uma quarta cumbuca, grãos de arroz e de gergelim, quanto menores os grãos, mais ocupação teriam. 

        Refletindo sobre essa experiência, o resultado era bem simples e, ao mesmo tempo, de grande alcance: criança não pode, nem deve ouvir, tampouco se envolver em conversas de adulto. Assim, se preservavam as crianças a respeito dos problemas sociais em ebulição, evitava-se que a conversa tomasse outra dimensão e se espalhasse de forma destorcida: na que não dissesse respeito à criança, era de sua competência. Isso posto, estar-se-ia blindando a criança para que ela fosse capaz de entender e dá conta do que, de fato, era importante. Para o seu mundo, o seu universo, conhecimento. Deficit de atenção, não existia. “Cada carneiro dava conta de sua lã”.

         Voltando ao presente, retomam-se os rumores: a Terra parou, o relógio perdeu o sentido, o tempo se arrasta. Enquanto isso, o toque de recolher soou forte e impositivo: ninguém entra, ninguém sai. Criança não tem direito de ir ao parque, em contrapartida, também não tem o dever de ir à escola. Ali, antes, era o seu espaço de mostrar que sabe, que pode, que de nada precisa, nem mesmo de orientações. Ali, a criança brinca, estuda, desfaz amizades, cria disputas, alimenta caprichos, reforça rancores, torna-se artífice dos desafios: desafia o perigo, desafia a altura, desafia a velocidade, desafia o professor, desafia a escola, desafia tudo que possa lhe parecer limite.

         Os pais, com honrosas exceções, têm que trabalhar todos os turnos para melhor garantir conforto, prazeres e bens materiais que farão dos seus filhos, crianças bem postas bem postas em uma sociedade onde o que vale é o status, o prazer do ter competitivo em detrimento de ser competitivo. Constrangedor, para uma criança, não exibir um casaco de “grife”, um tênis de marca de referência, o “iphone” de última geração. Parece emblemático: última geração, tem cheiro de derradeira, de fim de linha.

          Mas, por garantia de vida saudável, veio o confinamento: crianças não vão à escola, mas pais também não vão trabalhar. Pais e filhos passam a conviver, em um mesmo espaço e horário, experiências nunca dantes vistas. Alí, o vocabulário da criança surpreende os pais, as atitudes dos pais surpreendem a criança, a relação entre pais e filhos traz estranheza àqueles colaboradores que vivem sob o mesmo teto: a faxineira, o jardineiro, o piscineiro, a cozinheira, a roupeira, a copeira e os demais agregados: todos em estado de choque, com os perfis revelados.

       O pai se surpreende com a reação do filho com relação a um objeto que apresenta um defeito; a mãe se surpreende com o jeito de o esposo responder à cozinheira; o filho estranha o gosto do pai por esse ou aquele filme; os filhos adolescentes e jovens, se incomodam com todo aquele desconhecido grupo de habitantes, verdadeiros estranhos que pouco se encontravam, no labor do dia a dia, invadindo a sua privacidade de estar on line com Brothers, jogos e negócios virtuais, tão menos densos que as relações pessoais que imprimem afeto, compreensão, tolerância e respeito mútuo.

           O pai mais observador há desse perguntar nesse ringue: ”o fizeram do meu filho? Por que esse linguajar chulo e pornográfico, aqui em casa não usamos esses modos, deve ser más companhias, más influências, essa juventude... não foi isso que eu sempre lhe ensinei. A mãe, por seu turno, mais amável pensa: filho meu, agindo como “moleques de rua”, onde ele aprendeu isso, com quem ele anda, a que programa de televisão tem assistido, quem são os seus amigos, o que fazem na escola, enquanto pessoas, o que fazem das pessoas que lhes rodeiam, como veem os seus pais, os seus colegas, os seus professores, o gari, o motorista, o motoboy, o porteiro, o entregador, o pedinte, o outro...? Constatações que chocam porque não eram vivenciadas por falta de convívio.

            Era preciso esse preço tão alto, para que se percebesse o abismo que há entre você e o outro, o ético e o ideal, o preço e o valor, o físico e o emocional, o homem e o robô, a arrogância e humildade, o poder e a honra?

        O tempo não parou, o relógio é um objeto, pode quebrar, a vida nos impôs profundos comportamentos e mergulhos em nós mesmos até percebermos que já vai longe o dia em que nos sentamos, sem sons eletrônicos, nem interferências ideológicas e ouvimos o coração do outro? Pais com filhos, esposas com esposos, empregados com patrões, sócios com associados, cristãos com não cristãos, saudáveis com doentes, adultos com crianças, pastores com ovelhas, direita com esquerda, entendo que sem um, o outro não existe...

              Ainda nos restam essas possibilidades, antes que os nossos jovens se despedacem em seus próprios mundos pueris fundamentados em valores pouco éticos porque os nossos adultos, senhores do mundo, não conseguiram ser senhores do tempo. Esse não para. Tudo o que vierem a ser, será resultado da nossa ação moderno-capitalista, sem capital de honra e manutenção de caráter. “Ops!”. O tempo não para. Mas não para de cobrar.


Sebastião Maciel Costa