ÓBICES À CONCESSÃO DE APOSENTADORIA AO SEGURADO ESPECIAL

Por sirlex de Almeida Figueiredo | 13/06/2024 | Direito

ÓBICES À CONCESSÃO DE APOSENTADORIA AO SEGURADO ESPECIAL Sirlex de Almeida Figueiredo1 Alline Rodrigues Cunha2 Peter Barros Batista3 RESUMO O presente artigo tem por escopo discorrer acerca das modificações ocasionadas no procedimento de comprovação da atividade rural para fins de concessão da aposentadoria na condição de segurado especial, alterações estas decorrentes da edição da Lei nº 13.846/2019. É sabido que o agricultor familiar é sujeito vulnerável diante dos atributos socioeconômicos envoltos. Tal vulnerabilidade encontra-se em maior evidência quando do embate entre a premissa de solidariedade social e o alegado déficit previdenciário. Para a consecução da pesquisa, utilizou-se precipuamente a revisão bibliográfica assente em livros e periódicos relacionados à temática central. Diante do constatado, foi possível inferir a contradição entre o maior rigor na averiguação das condições de concessão do benefício e a realidade de baixo nível informacional e carência documental a qual se sujeita o obreiro rurícola. Essa rigorosidade atua como instrumento denegatório em um processo de desmonte dos direitos previdenciários especiais que ameaçam a manutenção dos agricultores familiares e de todo um estilo de vida correlato ao núcleo rural. Palavras-chave: Aposentadoria; Segurado especial; Agricultor Familiar; Solidariedade Social. 1 INTRODUÇÃO O trajeto da Previdência Social até o alcance do patamar concedido pela Constituição Cidadã de 1988 deu-se a partir de muitas lutas em prol da garantia dos direitos fundamentais, em especial, àqueles que já se encontram na última fase da vida, quando as forças braçais se dissipam e chega o momento de usufruir do merecido descanso após anos de trabalho árduo. Se a associação do benefício previdenciário à recompensa pelos anos de trabalho e contribuição se faz óbvia, a questão alcança novos contornos quando de frente à aposentadoria rural, dado que esta não exige o recolhimento de contribuições à previdência, na condição de segurado especial, e assim, exsurge as discussões quanto ao caráter assistencialista e às peculiaridades que envolvem o trabalhador rural que 1 Sirlex de Almeida Figueiredo, Graduando em Direito, Centro Universitário Nobre (UNIFAN), sirlex_figueiredo@hotmail.com 2 Alline Rodrigues Cunha Especialista em Direito e prática previdenciária pela Faculdade Baiana de Direito, allinecunha@hotmail.com 3 Peter Barros Batista, Mestre em Administração Estratégica ( Universidade Salvador ), Centro Universitário Nobre ( UNIFAN ),profpeterbarros@hotmail.com 2 justificam a especialidade concedida. Neste diapasão, se é certo que a conquista dos direitos previdenciários aos trabalhadores rurais, exercentes da agricultura familiar, ainda é recente na história da previdência brasileira, mais certo ainda é o tormento resultante das novas alterações promovidas pela Lei nº 13.846/2019, popularmente conhecida como Lei do Pente Fino por trazer disposições que modificam substancialmente o procedimento para concessão do benefício. Assim, busca-se, através do presente estudo, analisar os encalços vivenciados pelo trabalhador rural quando do requerimento da aposentadoria na condição de segurado especial, perpassando pela contextualização dos direitos previdenciários assegurados à essa classe trabalhadora, as regras procedimentais essenciais, para, por fim, constatando os óbices impostos, averiguar como estes repercutem na vida do trabalhador, contribuindo para o empobrecimento da população rural. Tratar da seguridade social sob o prisma do trabalhador rural requer investigar, necessariamente, as condições sociodemográficas que circundam a temática, sobretudo, discutir o papel da agricultura familiar na economia como instrumento de sobrevivência e superação da fome em paralelo às atribuições que são emanadas da sociedade e ratificadas quando da edição de atos normativos/legislativos. Tal abordagem se justifica a partir da constatação das singularidades que tornam os trabalhadores rurais, em um só passo, sujeitos fragilizados dentro dos cenários jurídicos e essenciais à cultura, historicidade e superação da pobreza regional, de tal maneira que o mero risco de regressão de seus direitos sociais e previdenciários deve ser analisada com rigor. Assim, o presente artigo pautou-se no método qualitativo, desenvolvido a partir da revisão bibliográfica de livros, periódicos e artigos científicos, somada à análise das novas disposições legais atinentes à temática. Para melhor compreensão da temática, o presente artigo estruturar-se-á da seguinte maneira: primeiramente, esmiuça a trajetória da previdência social dos trabalhadores rurais até a proteção contemporânea. Em seguida, são analisados os requisitos para concessão e a dificuldade comprobatória enfrentada. Por fim, passa-se a discussão das consequências do indeferimento para a dignidade do agricultor. Foi possível constatar o estado de perigo que rodeia os direitos sociais e previdenciários da classe rurícola a partir das alterações legislativas que, no intento de enrijecer o procedimento para comprovação da atividade rural, culmina no demérito ao trabalhador e na perpetuação de estigmas que reconduzem à condição de pobreza. 3 2 A TRAJETÓRIA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL DOS TRABALHADORES RURAIS ATÉ A PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA A consagração dos direitos previdenciários no Brasil deu-se gradual e lentamente. Em que pese os primeiros planos previdenciários, voltados para profissionais específicos, tenham surgido ainda no século XVIII, somente a partir de 1960, com o surgimento das Ligas Camponesas, é que se exerceu pressão para a obtenção de melhores condições para os produtores rurais (CHIES e ROCHA, 2015). Impende destacar que, até a Constituição de 1934, a previdência tinha um caráter inteiramente assistencial, pois não havia contribuições pelo beneficiado. Com a promulgação da referida Constituição, estabeleceu-se a forma tripartite de custeio, rateado entre trabalhadores, empregadores e o Poder Público (CASTRO e LAZZARI, 2021). Dessa forma, no que toca à classe rurícola, em 1963 foi editada a Lei nº 4.214 de 1963 (Estatuto do Trabalhador Rural), a qual instituiu o FUNRURAL (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural), além de impor a obrigatoriedade do pagamento de salário-mínimo aos trabalhadores rurais e regulamentar os sindicatos rurais (MARANHÃO e VIEIRA FILHO, 2018). Somente em 1971, a partir da Lei Complementar nº 11/1971, que instituiu o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural – PROPURAL, é que os trabalhadores rurais se filiaram à Previdência Social, sendo-lhes garantido um rol de serviços de cunho social, dentre eles, a aposentadoria por velhice ou invalidez. Destaca-se que, para a concessão desses serviços, não se exigia uma contribuição direta dos trabalhadores para o Fundo, sendo adotado método redistributivo de renda urbana diante da tributação da comercialização de produtos rurais, bem como de empresas urbanas (MUNIZ, 2015). Ademais, a aposentadoria limitava-se ao trabalhador rural propriamente dito, compreendido como o “chefe da família”, excluindo-se seus dependentes. Com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, a seguridade social alçou destaque, vindo os trabalhadores rurais a serem equiparados aos urbanos quanto à observância de seus direitos sociais, com fundamento no princípio da uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços prestados às populações urbanas e rurais, previsto no art. 194, inciso II, da Carta Magna (BARROS, 2016). Hodiernamente, é assegurado ao trabalhador rural a aposentadoria por idade no 4 regime geral de previdência social, nos termos do art. 201, §7º, inciso II da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019. Outrossim, garante-se ao trabalhador rural que não se encaixe nas hipóteses de empregado rural ou contribuinte individual e que exerça atividades em regime de economia familiar – incluindo o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal –, a percepção de benefício previdenciário independentemente da comprovação do pagamento de contribuições previdenciárias (BRASIL, 2019). A partir das regras implementadas em 2019, exige-se um período de carência correspondente a 180 meses de efetivo exercício da atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento. Para os homens, a idade mínima exigida é de 60 anos enquanto para as mulheres, 55 anos (BRASIL, 2019). Ademais, são considerados segurados especiais, à luz da Lei n. 8.212/1991, os sujeitos que residam em imóvel rural ou aglomerado urbano ou rural próximo a ele, que, sob o regime de economia familiar, ainda que com o auxílio esporádico de terceiros a título de colaboração, atuem como produtor - incluindo-se aqui o proprietário, usufrutuário, possuidor, assentado, parceiro, meeiro, comodatário ou arrendatário rural que explore atividade agropecuária em área de até quatro módulos fiscais, de seringueiro ou, ainda, extrativista vegetal -, e faça dessas atividades seu principal meio de vida, em consonância com o art. 195, §8º da Constituição (BRASIL, 2019). Compreende-se como regime de economia familiar, “a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem utilização de empregados permanentes” (art. 11, §1º, da Lei n. 8.213/91) (BRASIL, 2019). Assim, no que toca ao trabalhador rural em economia familiar, dada sua condição de segurado especial, preenchidos os requisitos, virá a receber, dentre outros auxílios sociais, aposentadoria equivalente a um salário-mínimo, sendo-lhe facultado realizar o recolhimento de contribuição individual para percepção de quantia maior. Indo além, nos termos da Lei n. 8.213/1991, com redação dada pela Lei n. 11.718/2008, é possível a concessão de aposentadoria programada ou híbrida aos trabalhadores rurais que não atendam aos requisitos gerais para aposentadoria como segurado especial, permitindo a satisfação das condições considerando períodos de contribuição sob categorias distintas, entretanto, a idade mínima exigida será de 65 anos para os homens e 60 anos para as mulheres (CASTRO e LAZZARI, 2021). 5 Garcia (2022) justifica a conveniência de condições especiais para os trabalhadores rurais devido às dificuldades que envolvem o labor, com excessivo desgaste físico que, por vezes, culmina numa menor expectativa de vida. Logo, faz-se necessário que o Estado, em atenção ao princípio da isonomia material, busque antecipar a aposentadoria para que esses indivíduos, maltratados pelos percalços da vida no campo, possam descansar e desfrutar da velhice de forma saudável e aprazível. Consoante Valadares e Galiza (2016, p. 16): [...] ao estabelecer que o benefício previdenciário cubra o risco de perda da renda em virtude da perda da capacidade laboral, a Constituição enfatizou que o direito à proteção previdenciária decorre, antes de tudo, do trabalho, isto é, da comprovação, pelo trabalhador, do exercício de certa atividade produtiva por determinado tempo. Esse primado do trabalho confere às aposentadorias rurais o caráter de benefícios previdenciários e as distingue dos benefícios assistenciais, cujo critério de concessão é o estado de necessidade. Tal entendimento coaduna com a noção de solidariedade social, atinente ao Direito Previdenciário: Se a principal finalidade da Previdência Social é a proteção à dignidade da pessoa, não é menos verdadeiro que a solidariedade social é verdadeiro princípio fundamental do Direito Previdenciário, caracterizando-se pela cotização coletiva em prol daqueles que, num futuro incerto, ou mesmo no presente, necessitem de prestações retiradas desse fundo comum (CASTRO e LAZZARI, 2021, p. 54). Ademais, o caráter sazonal da renda auferida pelo trabalhador rural, devido aos períodos de entressafra, exige a observância de um regime tributário diferenciado, razão pela qual, conforme alhures disposto, não necessita comprovar o efetivo recolhimento das contribuições previdenciárias, o que se faz de modo indireto (LEITÃO e LIMA, 2022). A comprovação do efetivo exercício em atividade rural já é suficiente para a concessão da aposentadoria, o que não implica dizer que tal comprovação é tarefa simples. 3 REQUISITOS PARA CONCESSÃO E A DIFICULDADE COMPROBATÓRIA Para a concessão da aposentadoria ao trabalhador rural, na condição de segurado especial, exigia-se, até a edição da Lei n. 13.846/2019, em caráter fundamental, a apresentação, alternativa, dos documentos listados no art. 106 da Lei n. 8.213/1991, a saber: Art. 106. A comprovação do exercício de atividade rural será feita, complementarmente à declaração de que trata o art. 38-B, por meio de: I – contrato individual de trabalho ou Carteira de Trabalho e Previdência Social; II – contrato de arrendamento, parceria ou comodato rural; III – declaração fundamentada de sindicato que represente o trabalhador rural ou, quando for o caso, de sindicato ou colônia de pescadores, desde que homologada pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS; 6 IV – comprovante de cadastro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, no caso de produtores em regime de economia familiar; IV - Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, de que trata o inciso II do caput do art. 2º da Lei nº 12.188, de 11 de janeiro de 2010, ou por documento que a substitua, emitidas apenas por instituições ou organizações públicas; V – bloco de notas do produtor rural; VI – notas fiscais de entrada de mercadorias, de que trata o § 7o do art. 30 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, emitidas pela empresa adquirente da produção, com indicação do nome do segurado como vendedor; (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008) VII – documentos fiscais relativos a entrega de produção rural à cooperativa agrícola, entreposto de pescado ou outros, com indicação do segurado como vendedor ou consignante; (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008) VIII – comprovantes de recolhimento de contribuição à Previdência Social decorrentes da comercialização da produção; (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008) IX – cópia da declaração de imposto de renda, com indicação de renda proveniente da comercialização de produção rural; ou X – licença de ocupação ou permissão outorgada pelo Incra (BRASIL, 1991). Entretanto, com o advento da Lei n. 13.846/2019, alterou-se profundamente o procedimento de comprovação de atividade rural. Dessa forma, deve o segurado proceder a inscrição no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) com informações pessoais, identificação da propriedade onde exerce a atividade rural e do local onde reside, bem como a identificação e inscrição do responsável pelo grupo familiar. Não sendo ele o proprietário do imóvel, deverá informar o nome do parceiro ou meeiro outorgante, arrendador, comodante ou assemelhado, nos termos do art. 17, §§4 e 5º do PBPS (BRASIL, 2019). Indo além, nos termos do art. 38 da Lei nº 8.213/91, conforme a redação dada pela Reforma Previdenciária de 2019, tornou-se indispensável a formação de cadastro dos segurados no Cadastro Nacional de Informações Socias (CNIS), o qual conterá as informações atuais e necessárias para a caracterização de segurado especial e será utilizado pelo INSS para fins de concessão de benefício previdenciário. Exige-se, ainda, a atualização anual que, caso desconsiderada por 05 (cinco) anos, demandará do interessado o recolhimento da contribuição prevista no art. 21 da Lei nº 8.212/1991 referente ao contribuinte individual e facultativo (BRASIL, 2019). Tratando-se o CNIS de uma novidade trazida pela Reforma Previdenciária, como alternativa para comprovação do período anterior à formação do cadastro, exigese do segurado, com validade até 2023, a apresentação de autodeclaração ratificada por entidades públicas credenciadas. Antes da Reforma, facultava-se ao trabalhador a comprovação do exercício da atividade rural mediante declaração do sindicato que integrava, homologada pelo INSS, o que não vigora mais. (SANTOS, 2021). 7 Ademais, o rol de documentos dispostos no art. 106 da LBPS passa a ter um caráter subsidiário, recorrendo-se a este em caso de discrepâncias entre as informações constantes no CNIS e as obtidas em outras bases de dados, em complementariedade ao informado na autodeclaração (BOSS FÁBRIS, 2021). Outrossim, conforme pontuado por Garcia (2022, p. 250), para a comprovação da atividade rural pelo segurado especial a partir da vigência da Reforma Previdenciária, deverão ser observadas as seguintes exigências: I – a autodeclaração deve ser feita por meio do preenchimento de formulários que serão disponibilizados pelo INSS; II – a ratificação da autodeclaração deve ser realizada por meio de informações obtidas das bases de dados da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e de outras bases de dados a que o INSS tiver acesso; III – as informações obtidas por meio de consultas às bases de dados governamentais que forem consideradas insuficientes para o reconhecimento do exercício da atividade rural alegada podem ser complementadas por prova documental que seja contemporânea ao período informado. Considerando tais modificações, Santos (2021) traz que, diante da aplicação do princípio da equivalência urbano-rural, a Previdência Social Rural perdeu o caráter peculiar que lhe era fundamental à realidade dos trabalhadores rurais, estando hoje, os direitos destes, dispersos em inúmeros dispositivos legais, sob o risco de, em uma involução, complicar-se o procedimento de comprovação da atividade em virtude de formalismos descabíveis, tendo em vista que, em muitos casos, os trabalhadores rurícolas sequer possuem documentação pessoal e, diante do baixo nível de escolaridade (MPPE, 2013), não se atém à formação e preservação do arcabouço documental, dado que muitos são analfabetos e creem que as mãos calejadas pelo trabalho árduo no trato com o campo e a boa-fé que possuem são suficientes. Interessante pontuar que as dificuldades enfrentadas pelo trabalhador rural não dizem respeito unicamente ao trabalhador que vive da agropecuária familiar, produzindo para seu próprio sustento. Trabalhadores dito “boias-frias” padecem dos mesmos dilemas quanto à comprovação da atividade rurícola, visto que, majoritariamente, a atividade é desempenhada de modo informal, sem a formação da documentação exigida (VIANNA, 2022). Nesta senda, observava-se, anteriormente à 2019, uma tendência jurisprudencial de flexibilizar o rol do art. 106, com vistas a conceder aos trabalhadores rurais alternativas para a comprovação da atividade agrícola desempenhada, através, por exemplo da complementação da prova material através da testemunhal. Destarte, há decisões do STJ apregoando o caráter exemplificativo do rol de documentos hábeis a comprovar o labor rural, tal como se infere a partir do julgado 8 abaixo transcrito: Direito Previdenciário. Recurso Especial representativo da controvérsia. Art. 543-C do CPC. Resolução n. 8/STJ. Aposentadoria por idade rural. Ausência de prova material apta a comprovar o exercício da atividade rural. Carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo. Extinção do feito sem julgamento do mérito, de modo que a ação pode ser reproposta, dispondo a parte dos elementos necessários para comprovar o seu direito. Recurso especial do INSS desprovido. 1. Tradicionalmente, o Direito Previdenciário se vale da processualística civil para regular os seus procedimentos, entretanto, não se deve perder de vista as peculiaridades das demandas previdenciárias, que justificam a flexibilização da rígida metodologia civilista, levando-se em conta os cânones constitucionais atinentes à Seguridade Social, que tem como base o contexto social adverso em que se inserem os que buscam judicialmente os benefícios previdenciários. 2. As normas previdenciárias devem ser interpretadas de modo a favorecer os valores morais da Constituição Federal/1988, que prima pela proteção do Trabalhador Segurado da Previdência Social, motivo pelo qual os pleitos previdenciários devem ser julgados no sentido de amparar a parte hipossuficiente e que, por esse motivo, possui proteção legal que lhe garante a flexibilização dos rígidos institutos processuais. Assim, deve-se procurar encontrar na hermenêutica previdenciária a solução que mais se aproxime do caráter social da Carta Magna, a fim de que as normas processuais não venham a obstar a concretude do direito fundamental à prestação previdenciária a que faz jus o segurado. 3. Assim como ocorre no Direito Sancionador, em que se afastam as regras da processualística civil em razão do especial garantismo conferido por suas normas ao indivíduo, devese dar prioridade ao princípio da busca da verdade real, diante do interesse social que envolve essas demandas. 4. A concessão de benefício devido ao trabalhador rural configura direito subjetivo individual garantido constitucionalmente, tendo a CF/88 dado primazia à função social do RGPS ao erigir como direito fundamental de segunda geração o acesso à Previdência do Regime Geral; sendo certo que o trabalhador rural, durante o período de transição, encontra-se constitucionalmente dispensado do recolhimento das contribuições, visando à universalidade da cobertura previdenciária e a inclusão de contingentes desassistidos por meio de distribuição de renda pela via da assistência social. 5. A ausência de conteúdo probatório eficaz a instruir a inicial, conforme determina o art. 283 do CPC, implica a carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo, impondo a sua extinção sem o julgamento do mérito (art. 267, IV do CPC) e a consequente possibilidade de o autor intentar novamente a ação (art. 268 do CPC), caso reúna os elementos necessários a tal iniciativa. 6. Recurso Especial do INSS desprovido” (STJ, Corte Especial, REsp 1.352.721/SP (2012/0234217-1), rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 28.04.2016). Entretanto, tais decisões antecedem à EC 103/2019 e às novas formalidades, colocando em pauta a manutenção desses entendimentos diante da imposição do CNIS como meio exclusivo para comprovação da atividade rurícola. Sendo assim, denota-se que tais flexibilizações são insuficientes para conter as desmedidas exigências materiais que permeiam a concessão de benefício previdenciário, ainda que pela via administrativa, sobretudo quando diante de alterações legislativas recentes. 9 4 OS DISCURSOS AUTORIZADORES DAS MUDANÇAS LEGISLATIVAS E O PERCALÇO TECNOLÓGICO/INFORMACIONAL Infortunadamente, percebe-se a procura, cada vez mais frequente, de segurados a advogados e profissionais especialistas em Direito Previdenciário como meio de garantir êxito na solicitação da aposentadoria, ainda que administrativamente, visto que a simplicidade que envolve os trabalhadores diverge da formalidade que se faz necessária à percepção de seus direitos. Aquela, se faz cara não só sob o panorama do dispêndio econômico para consecução do benefício (dentre recursos limitados), como também sob o aspecto psicológico, ferindo a dignidade destes trabalhadores ante o pavor de ter o benefício negado. Observa-se, ainda, que as complicações impostas quando do requerimento administrativo da aposentadoria culminam em uma maior judicialização dos processos previdenciários e, por consequência, na superlotação do Poder Judiciário ante as lides em face do INSS (MENDES; COSTA; SILVA, 2020). Um dos motivos ensejadores de denegações à concessão da aposentadoria rural, em sede administrativa, diz respeito ao receio de fraude que, diante da crise previdenciária do país, cede espaço a interpretações tais como a formulada por Martins (1999 apud CASTRO e LAZZARI, 2021, p. 619): Há o inconveniente também de que se arrecada pouco no campo para o volume de benefícios em valor que se paga. As aposentadorias dos trabalhadores rurais sem contribuição têm trazido muita fraude, como se tem verificado, porém nada impede que o trabalhador rural recolha normalmente a sua contribuição para ter direito a uma aposentadoria comum e igual à do trabalhador urbano. Se o sistema para o trabalhador rural continuar em parte não contributivo, já que há a possibilidade de opção, é claro que o referido trabalhador vai optar por não contribuir, daí a necessidade de modificação do referido sistema. Nesse sentido, frisa-se ainda a utilização das alegações de fraudes como artimanha para a edição da MP 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019 que, ao realizar uma “minirreforma previdenciária”, conjurou-se como a Lei do Pente Fino. A denominação é facilmente compreendida a partir da exposição dos motivos que ensejaram a edição do ato normativo: Contudo, há muitas medidas para melhoria da gestão dos benefícios, garantindo maior eficiência na atuação do INSS, melhorando os instrumentos de combate a fraudes e rápida apuração de benefícios com suspeita de irregularidade e ajustes na legislação visando reduzir divergências de interpretação que geram milhões de ações judiciais envolvendo matéria previdenciária. Essas medidas, além de representarem a garantia de que os benefícios estão sendo pagos de forma correta, terão efeitos fiscais relevantes, com a potencial cessação de benefícios irregulares e fraudulentos 10 e a recuperação dos valores indevidamente pagos. (GUEDES; LORENZONI, 2019, p.1) Inclusive, a motivação de enfrentamento às fraudes foi reiterada quando das alterações na forma de comprovação do exercício de atividade rural: MP também propõe o aperfeiçoamento das regras de comprovação da atividade rural do segurado especial. […] O reconhecimento de tempo de serviço, bem como outros direitos dos trabalhadores, por meio do sistema sindical, remonta um período no qual o Estado não tinha capacidade e capilaridade para atender a totalidade da população. Ademais, a falta de instrumentos de controle na emissão deste documento facilita a ocorrência de irregularidades e fraudes (GUEDES; LORENZONI, 2019, p. 6). Em que pese o posicionamento alhures transcrito e a inteligência das novas disposições legais, o Direito deve socorrer àqueles que necessitam e, nesta senda, as legislações e suas aplicações devem ter como norte a garantia da dignidade da pessoa humana, sendo inconcebível a perpetuação de estigmas atinentes aos trabalhadores rurais que invalidam os empenhos desta classe para a subsistência em um universo que, ainda que paralelo ao formalismo legal-jurídico, não pode ser por este ignorado. Soma-se à discussão quanto às fraudes as críticas acerca do gasto previdenciário referente aos segurados especiais. Maranhão e Vieira Filho (2018), apontam que, no ano de 2017, as arrecadações rurais totalizaram R$9 bilhões, ao passo que a despesa para a concessão/manutenção dos benefícios alcançou R$120 bilhões, o que se associa ao aumento do salário-mínimo e a manutenção da “precocidade” das aposentadorias por tempo de contribuição. Entretanto, conforme pontuado por Castro e Lazzari (2021, p. 619), [...] se torna inócua a discussão a respeito de a “arrecadação no campo” ser menor que no meio urbano. Frisamos aqui a noção da solidariedade social – no sentido de que a população urbana tem muito maior concentração de renda que a população trabalhadora rural, bem como o princípio da distributividade, segundo o qual o sistema previdenciário, além de garantir o trabalhador em face de eventos que lhes causem perda ou redução da capacidade de subsistência, também é um instrumento de redução das desigualdades sociais. Por fim, devemos nos recordar que é no meio fundiário que encontramos a maior parcela de indivíduos ainda não alfabetizados, e, pior, submetidos a condições de trabalho, muitas vezes análogas às da escravidão. Querer exigir deste homem que tenha pleno conhecimento das normas legais a respeito de Previdência e dele cobrar que venha a contribuir, inclusive pelo período pretérito, quando sequer havia lei que assim exigisse, não condiz com uma política voltada para a população economicamente hipossuficiente. Em sentido similar, Savaris (2021, p. 113) assevera: Numa demanda em que há fracos e fortes, impõe-se uma atuação judicial tendente a equilibrar as desigualdades, mas isso não parece tão óbvio quando se está diante de uma entidade pública responsável pela gestão dos recursos da Previdência Social, em tempos de insegurança econômica, anúncios de crise orçamentária e sucessivas reformas previdenciárias. Nessa atmosfera, emerge um falso dilema: analisa-se a pretensão do autor, que se reportaria a um interesse individual, em face do interesse público na preservação do sistema previdenciário. Mas não há interesse social somente na economia de 11 recursos previdenciários, mas fundamentalmente na sua devida aplicação. Isso posto, merece destaque, ainda, as problemáticas envoltas à informatização do procedimento. Com as mudanças trazidas pela MP 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019, o MEU INSS (site e aplicativo) tornou-se a principal ferramenta para tratativas relacionadas aos benefícios previdenciários. Ocorre que os futuros beneficiados, em virtude da idade avançada e do pouco acesso às novas tecnologias, considerando o contexto de vulnerabilidade socioeconômica em que se encontram, sofrem com as dificuldades de acesso (MENDES; COSTA; SILVA, 2020), emergindo a discussão se, de fato, tal informatização beneficia o público-alvo visado e se atém ao princípio da universalidade de atendimento da Seguridade Social. Savaris (2021), nesse sentido, assevera que a prioridade dos canais de atendimento eletrônico, conforme estabelecido pelo art. 176-A do Regulamento da Previdência Social (RPS) 4 , produz efeitos graves quanto à hipossuficiência informacional diante da falta de diálogo e omissão do dever de orientação que incumbe ao instituto, além de dificultar o acesso ao serviço público. Aduz-se que: Sendo inegável que a pobreza é fator excludente também da sociedade tecnológica e de informação, é possível afirmar que a prestação de serviços pelos canais de atendimento eletrônico não constitui um meio de ampliação do serviço público à população mais carente, mas fator de restrição para o acesso, pelo beneficiário, à tutela do Poder Público. (SAVARIS, 2021, p. 111) Sendo assim, ao estabelecer as tecnologias de informação e comunicação como principais meios de acesso a serviços previdenciários e de assistência social, o INSS parte do pressuposto de que existe, no Brasil, uma democratização dos meios telemáticos. Ademais, o domínio da tecnologia vai muito além de possuí-la, sendo necessário, portanto, saber manuseá-la, caso contrário, as medidas de “modernização” na prestação de serviços seriam ineficazes (MENDES; COSTA; SILVA, 2020, p. 67) Dessa forma, priorizar meios digitais em demérito às formas convencionais de atendimento e prestação de serviço público pauta-se em uma generalidade incondizente com a realidade de parcela significativa da população idosa rural. Extrai-se, por conseguinte, a necessidade da inserção tecnológica ampara-se em métodos inclusivos 4 Art. 176-A. O requerimento de benefícios e de serviços administrados pelo INSS será formulado por meio de canais de atendimento eletrônico, observados os procedimentos previstos em ato do INSS. (Incluído pelo Decreto nº 10.410, de 2020) § 1º O requerimento formulado será processado em meio eletrônico em todas as fases do processo administrativo, ressalvados os atos que exijam a presença do requerente. (Incluído pelo Decreto nº 10.410, de 2020) § 2º Excepcionalmente, caso o requerente não disponha de meios adequados para apresentação da solicitação pelos canais de atendimento eletrônico, o requerimento e o agendamento de serviços poderão ser feitos presencialmente nas Agências da Previdência Social. (Incluído pelo Decreto nº 10.410, de 2020) 12 para que o progresso não culmine em segregação Feitas tais considerações, passa-se, então, a análise dos efeitos deste enrijecimento da comprovação previdenciária à perpetuação de um modo de vida estigmatizante e precário do trabalhador rural. 5 AS CONSEQUÊNCIAS DO INDEFERIMENTO PARA A DIGNIDADE DO AGRICULTOR: EMPOBRECIMENTO GRADUAL A previdência social ocupa o papel de política social de maior relevância para os agricultores familiares brasileiros (DENARDI, 2001, apud ALVES, 2021, p. 55). Chies e Rocha (2015) destacam a importância do benefício da aposentadoria rural não só para o sustento do agricultor já idoso, como para o progresso da economia familiar, permitindo que os agricultores detenham recursos e infraestrutura capazes de proporcionar a manutenção da produção familiar, gerando estabilidade e possibilitando que as novas gerações tenham condições de sustentarem-se a par do assistencialismo estatal. Conforme Sugamosto (2003, p. 13, apud CHIES e ROCHA, 2015, p. 130): A inclusão dos trabalhadores rurais no Regime Geral da Previdência Social pode ser considerada a política de caráter mais universalista dentre as políticas sociais implantadas a partir da Constituição de 1988. Esse caráter é dado pelo papel social que a previdência rural tem desempenhado na elevação da renda no campo, ultrapassando a função de servir como "seguro contra a perda da capacidade laborativa", e colaborando para a erradicação da pobreza no meio rural. Incumbe frisar que o benefício é revertido na economia local de pequenos municípios localizados nas regiões mais pobres do país, culminando na concessão de poder de compra ao beneficiado, renda para o município, geração de emprego e maior movimentação financeira em um processo de dinamização da economia local (AUGUSTO e RIBEIRO, 2005). No que toca à popularmente denominada Reforma Previdenciária, recorrendo às lições de Martinez (2020, p.15). Para alguns pensadores seria uma tentativa da redução das desigualdades sociais, diminuição da inflação, pleno emprego, reequilíbrio da economia, universalização dos segurados e extinção do alegado déficit e dos privilégios. Para outros, uma mascarada privatização, o fim das prestações dos obreiros humildes, o atendimento do FMI e uma demonstração cabal do ocaso da solidariedade social. Nesse sentido, coadunando com aqueles que veem na Reforma Previdenciária de 2019 embaraços à solidariedade social, tem-se que, ao impor óbices à concessão da aposentadoria rural, além de “passar um pente fino” em benefícios já concedidos, a Reforma culminou em um desequilíbrio social, que se reflete no empobrecimento da 13 população rural. Recorrendo às palavras de Silva (2013, p. 103): Desta forma, espera-se evidenciar o silencioso desmonte do sistema de previdência social público, universal, solidário e redistributivo que a constituição cidadã ousou propor como paradigma do Estado Democrático de Direito brasileiro. Referido desmonte vem, aliás, ocorrendo sob um véu de legalidade, por meio de emendas constitucionais e leis ordinárias aprovadas “a conta gotas”. A temática “reforma da previdência” parece nunca sair de pauta; a todo momento, volta a figurar como a “necessidade mais premente” para assegurar a longevidade da estabilidade monetária e do próprio sistema de benefícios. Os argumentos contrarreformistas parecem não ter fim, assim como parece infinita a vontade de ver varrida da Constituição essa “utopia descabida” chamada seguridade social. E assim, “gota a gota”, de forma paciente, porém incansável, as conquistas sociais relativas à previdência vão sendo desconstitucionalizadas. Outrossim, visualiza-se uma tentativa de desmonte dos direitos previdenciários, ainda juvenis, conquistados pela classe rurícola. Depreende-se que, quando do nascimento dos atuais beneficiários, a realidade do agricultor familiar como sujeito de Direito sob o âmbito da seguridade social era categoricamente distinta e inferior quando comparada à proteção atualmente concedida. Contudo, a manutenção de discursos reformistas e contrários à seguridade social, amparados pelo polêmico déficit orçamentário, ameaça essa proteção e inicia um esboço de um futuro, infelizmente, muito mais semelhante ao passado de invisibilidade do que ao presente de solidariedade social. Convém destacar que, se a mudança no perfil demográfico da população brasileira, com redução significativa do número de habitantes nas áreas rurais, serviu como fundamento para as medidas legislativas adotadas em 2019 (ALVES, 2021), tal argumento justifica, em contrariedade, a importância da manutenção das aposentadorias rurais. Consoante o censo demográfico realizado em 2010 (apud ALVES, 2021, p. 53), a população rural diminuiu significativamente, de modo que há a previsão de que dos 63% de população rural observado em 1950, apenas 8% persistirá em 2050. Tal redução se deve à carência de oportunidades de emprego nas áreas rurais, bem como ao precário incentivo à agricultura familiar, ocasionando, consequentemente, a diminuição da taxa de reposição da população (ALVES, 2021). Neste diapasão, a diminuição da renda que circula no meio rural intensifica a precariedade das regiões interioranas do país, elevando o índice de pobreza, reduzindo a mão de obra e a oferta de empregos, além de gerar um fluxo de migração para o meio urbano sem infraestrutura e políticas públicas aptas a lidarem com a situação. Outrossim, 14 O esvaziamento da PEA, estimulado pela redução da taxa de fecundidade e pela migração rural-urbano (com o fluxo predominante de jovens mais escolarizados e do sexo feminino), intensificou o processo de envelhecimento, concentrando a população masculina no meio rural. O esvaziamento expressa a necessidade de políticas públicas que intervenham neste processo, de forma a qualificar a mão de obra rural, em particular dos mais jovens, com o objetivo de reduzir o êxodo rural para os centros urbanos e de estimular o trabalho no campo (Maia e Buainain, 2015). (MARANHÃO; VIEIRA FILHO, 2018, p. 31) Ainda no início do século, Buainain, Romeiro e Guanziroli (2003) já chamavam a atenção para a adoção de discursos que enfraqueciam a relevância da agricultura familiar como meio de subsistência necessário à superação da pobreza como estratégia para abandonar as políticas agrárias e agrícolas voltadas ao fortalecimento da produção familiar. Consoante os autores, tal posicionamento pauta-se em uma errônea comparação da realidade brasileira para com outros países que passaram pelo movimento de urbanização da população. Outrossim, se nos EUA entende-se que a população rural perdeu seu espaço ante a propagação de oportunidades no meio urbano, o que se observava no Brasil é um processo de êxodo rural “forçado” em virtude da falta de condições mínimas de sobrevivência digna no campo. Dessa forma, “cada vez mais, o êxodo rural configurou-se como um êxodo de refugiados do campo” (BUAINAIN; ROMEIRO; GUANZIROLI, 2003, p. 317). Neste diapasão, depreende-se que as dificuldades enfrentadas, as quais visam obstar a concessão do benefício, culminam na marginalização da população rural e, consequentemente, no demérito à cultura correlata e a importância da atuação dos agricultores familiares para a produção alimentar. Ao diminuir as oportunidades de acesso a melhores recursos a partir da perda de uma renda significativa, reproduz-se o estigma de irrelevância da agricultura familiar em favorecimento aos grandes exportadores. É o que Delgado e Bergamasco (2016, p. 10, apud ALVES, 2019, p. 58) denominam de “riqueza invisível.” Assim, permite-se que o mesmo país que possui recordes no agronegócio conviva com a intensa realidade da fome (SOUZA, 2021). Em contrapartida, a importância da agricultura familiar para o desenvolvimento sustentável e para a manutenção da produção de alimentos vêm sendo incluída nos compromissos da Organização das Nações Unidas (ONU), tal como se extrai do excerto a seguir, o que corrobora com sua relevância para o corpo social: A Década da Agricultura Familiar da ONU 2019-2028 visa lançar uma nova luz sobre o que significa ser um agricultor familiar em um mundo em rápida mudança e destaca mais do que nunca o importante papel que eles desempenham na erradicação da fome e na definição de nosso futuro alimentar. A agricultura familiar oferece uma oportunidade única para garantir a segurança alimentar, melhorar a subsistência, administrar melhor 15 os recursos naturais, proteger o meio ambiente e alcançar o desenvolvimento sustentável, especialmente nas áreas rurais. Graças à sua sabedoria e cuidado com a terra, os agricultores familiares são os agentes de mudança que precisamos para alcançar o Fome Zero, um planeta mais equilibrado e resiliente e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. (FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS, 2020 apud ALVES, 2021, p.57) Salienta-se a preocupação com a sobrevivência da população rural que segue uma tendência de amadurecimento de sua estrutura etária acompanhada da baixa natalidade, esta, resultante dos processos migratórios, os quais têm como principais agentes adultos entre 18 e 30 anos (MARANHÃO; VIEIRA FILHO, 2018). Assim, ao passo que essa população envelhece e perde as forças necessárias ao trabalho no campo, a garantia da aposentadoria rural se faz fundamental para a validação dos direitos do idoso, em especial, sua dignidade como sujeito trabalhador e relevante para a economia e construção social. Fazendo jus às palavras de Braga (2011, p.10): Na verdade, o idoso brasileiro é muitas vezes a única fonte de renda de sua família, seja por sua aposentadoria, por seu trabalho ou, pior, por ambos. E não devemos esquecer que o idoso tem o direito de se aposentar e usar sua aposentadoria da maneira que mais lhe aprouver. Na verdade, devemos respeitar o idoso por toda contribuição que ele já́ deu ao longo de sua vida e não apenas por aquilo que ele ainda pode oferecer em termos econômicos. Precisamos modificar os paradigmas da mais-valia inseridos culturalmente a partir da Revolução Industrial. O homem não tem valor somente enquanto contribui para o Produto Interno Bruto (PIB). Na mesma linha intelectiva: Defendemos o fortalecimento de todos os princípios que norteiam a Seguridade Social, enfatizando o seu importante papel na distribuição de renda, redução de pobreza e garantia de velhice com dignidade, especialmente para todos aqueles que, por diversas razões, nunca contribuíram diretamente para a Previdência, a exemplo dos trabalhadores rurais e informais. (FENAFISCO apud BRAGA, 2011, p. 89) Neste diapasão, extrai-se o papel da aposentadoria como instrumento de proteção e valorização do idoso enquanto sujeito de direito que, embora não contribua mais à sociedade através do labor, é digno de descanso, podendo usufruir deste e do benefício auferido da maneira que lhe convier em retribuição aos longos anos de contribuição (ainda que não financeira) à organização da sociedade. Impende salientar, conforme Maranhão e Vieira Filho (2018), a necessidade de encarar o problema do déficit previdenciário rural sob uma perspectiva macro, considerando não só as reformas (atuais e eventuais), como também a constatação de que tal realidade é fruto da carência de políticas públicas que formalizem as relações de trabalho e produção no campo, facilitando e desburocratizando a comprovação da atividade rural, sem perder de vista as peculiaridades de um cenário de desigualdade 16 socioeconômica. Por derradeiro, a adoção de medidas que dificultem a concessão da aposentadoria ao segurado especial coloca em pauta o árduo processo de reconhecimento dos direitos previdenciários do trabalhador rural, sobretudo aquele que subsiste através da agricultura familiar, contrariando os preceitos da seguridade social ao delimitar o caminho para o regresso quanto às prerrogativas conquistadas, estas, ainda recentes na história da previdência no Brasil. 6 CONCLUSÃO Evidenciou-se que, apesar da classe rurícola fazer-se presente como sustentáculo da sociedade brasileira desde a formação da identidade nacional, seus direitos (sociais e previdenciários) foram negligenciados por décadas até uma mudança de panorama promovida a partir da Constituição Federal de 1988, a qual reconheceu a dignidade dos trabalhadores rurais, equiparou-os aos trabalhadores urbanos, reconhecendo, contudo, suas peculiaridades e suas colaborações para o corpo social, ainda que sem realizar o recolhimento de contribuições previdenciárias. Assim, a partir da Constituição Cidadã reconheceu-se a figura do segurado especial, trabalhador rural que não contribuiu para a previdência, contudo, desenvolveu a atividade rural e, através da demonstração desta, faz jus a percepção de benefícios previdenciários. Entretanto, em meio às críticas a uma suposta postura assistencialista do Estado brasileiro, somadas aos debates quanto à crise previdenciária, o procedimento de comprovação da atividade rural passou por polêmicas mudanças, destacando-se a perda da validade das certidões dos sindicatos rurais em prol da inserção do Cadastro Nacional de Informações Socias (CNIS), responsável por todos os dados relacionados ao trabalhador e fundamental para a concessão ou não da aposentadoria. Ademais, os procedimentos relacionados à previdência passaram a ser, precipuamente, eletrônicos. Visualizou-se que, sob o manto dos avanços tecnológicos, amparando-se, ainda, nos discursos de combate às fraudes, alterações legislativas prejudiciais ao trabalhador vêm sendo incrementadas no ordenamento jurídico e disfarçam, a partir dos discursos supracitados, a intenção de dificultar o procedimento comprobatório e demolir os direitos especiais do trabalhador rural. Assiste-se, então, a um desmonte nos direitos previdenciários do segurado social que, além de irem de encontro à dignidade da pessoa humana, ignoram todas as peculiaridades que permeiam o trabalhador rural (o regionalismo, o déficit 17 informacional, o labor árduo etc.) e reduzem o relevante papel que desempenham, como população ativa para a produção alimentar e desenvolvimento econômico, e, enquanto aposentados, para a circulação de renda e promoção de melhorias nas regiões interioranas do país. REFERÊNCIAS ALVES, M. F. 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