O Valor Do Simbólico Na Análise Do Discurso

Por Wagner Torlezi | 20/05/2008 | Educação

1. RESUMO DA OBRA


1.1 – Introdução: noção de interdiscurso

Considera-se “interdiscurso” o já-dito, algo que se fala antes, em algum outro lugar; é o conjunto dos dizeres já ditos e esquecidos que determinam o que dizemos. Para que nossas palavras tenham sentido, é preciso que já tenham sentido. Isso fica por conta do inconsciente e da história, que se relaciona à língua. Do cruzamento entre a história e a língua, surgem as diferentes formas de reflexão, sujeitas à interpretação, teorizadas pela Análise do Discurso. A língua se inscreve na história para significar. O princípio dessa prática situa-se entre o dito e o não-dito. Este é a ausência necessária, já que o que se diz é exatamente o que não se diz, pois isso constitui o sentido das palavras de um discurso.

A prática da leitura discursiva procura compreender como sujeito e discurso se constituem. Surgem, assim, o simbólico e o significante, inaugurando-se novas práticas de leitura. A relevância é dada, assim, aos mecanismos da linguagem e ao histórico-social. Este procura conceber o sentido como um fato de natureza psicobiológica; aquela, desempenha o papel do equívoco, da elipse, da falta. Esse equívoco, quando referido ao sujeito, remete ao inconsciente, objeto de estudo da Psicanálise; e quando referido à história, incide sobre a ideologia. Assim, o equívoco não é algo que deve ser evitado, é para ser pensado como um fato incontornável.

O sujeito, então, é posto na ordem dos efeitos do simbólico e da história e no equívoco em que se trabalha o inconsciente e a ideologia. Portanto, a própria língua funciona ideologicamente, tem sua materialidade, oferecendo, assim, lugar à interpretação e à produção de sentidos. É aí que entra o interdiscurso, já que há o “outro”, na identificação ou na transferência, abrindo, assim, a possibilidade de interpretar através da organização da memória.

É na memória que se inscrevem os sujeitos e os sentidos, mostrando-nos as coisas a saber, não como uma aprendizagem, mas como uma transferência, um deslizamento de sentidos metafóricos que são produzidos nos discursos. Assim, podemos dizer que não há sentidos literais armazenados. Os sentidos são simbólicos e se constituem em processos, nos quais estão presentes a ideologia e o inconsciente. Ninguém domina completamente o que diz, uma vez que os objetos do saber não são produtos de uma aprendizagem.

Uma palavra, dentro de uma língua, possui vários significados, ou seja, ela por si só já significa. E esse seu significado é dado pela posição do sujeito e por sua inscrição no discurso. Por isso, o trabalho do analista de discurso é explicitar a relação do sujeito com sua memória.

3.2 – O Dito e a Interpretação

O autor, aqui visto como sujeito, é essencial para o discurso, pois ele não existe sem ideologia. É o responsável por dar sentido ao texto que produz, mas não de forma subjetiva. Esse sentido é constituído através da memória e sua autoria se dá pela história. Por isso é impossível o autor não ser repetitivo em seu discurso, senão seu enunciado não teria sentido, não seria interpretável. E a autoria não é um simples exercício de repetição, de memória, mas sim de sentidos, de formulação inscrita no interdiscurso, produzindo um efeito interpretativo.

Essas considerações levam a distinguir três modos de repetição:
a. Repetição empírica  é o chamado “efeito papagaio”: a pessoa repete sem saber o que está repetindo, é um exercício mnemônico que não historiciza o dizer;
b. Repetição formal  é uma elaboração de forma abstrata: a pessoa repete, mas com suas próprias palavras, é um exercício que não historiciza o dizer, mas o organiza;
c. Repetição histórica  é a inscrição do dizer em seu saber discursivo: a pessoa formula um dizer no meio dos outros, inscrevendo-o na memória constitutiva, é o real trabalho da memória.

Na relação entre esses três modos de repetição, encontra-se a verdadeira aprendizagem. O ideal seria levar o aluno da repetição empírica, aquela em que ele apenas repete e logo depois se esquece por não ter sentido, para a repetição histórica, verdadeiro trabalho de memória, de saber discursivo, passando, é claro, pela repetição formal, o que caracteriza o ‘bom aluno”, que repete, mas com suas palavras, o que foi dito. A repetição histórica traz, para o autor, a interpretação.

3.3 – O Mesmo e o Diferente

O funcionamento da linguagem é feito através da relação contraditória entre paráfrase e polissemia: a relação entre o “mesmo” e o “diferente”, a produtividade e a criatividade. Essa relação é contraditória pois uma não vive sem a outra. A paráfrase reitera o “mesmo”, enquanto que a polissemia reitera o “outro”: aí está a diferença.

Podemos, assim, estabelecer um esquema, com quatro situações, que define uma e outra: na paráfrase temos as mesmas palavras com os mesmos sentidos em relação a diferentes locutores e situações; já na polissemia temos as mesmas palavras com sentidos diferentes em relação a diferentes locutores e situações. Isso prova que, o que vale não são as condições imediatas de produção, mas a incidência do interdiscurso, da memória. Este determina o que é relevante para o processo da significação, já determinada pelo trabalho da memória.

Dessa forma, temos o Mesmo, marcado pela paráfrase, que é o retorno ao mesmo espaço dizível; e o Diferente, marcado pela polissemia, que é o deslocamento dos sentidos. Nessa relação, o que funciona é o imaginário na constituição dos sentidos, dado pelo próprio sujeito. Esse é o trabalho da memória, que acaba por produzir os efeitos metafóricos, de ressignificação, de transferência de sentidos, que nos remete à exterioridade, ou seja, a tudo aquilo que é externo às condições de produção, constituído pela ideologia e pela historicidade.

A ideologia é a produção do sentido, que só pode ser “este” e na impressão do sujeito, que é a origem dos sentidos que produz. Por isso é preciso se pensar no gesto de interpretação como lugares de contradição: a repetição, efeito do já-dito, e o deslocamento, efeito da historicidade. Então, temos, a repetição que congela, no domínio da memória institucional (arquivo); e a repetição que possibilita os diferentes sentidos, no domínio dos efeitos da memória (interdiscurso). Este no movimento contraditório entre o mesmo e o diferente.

3.4 – Modo de Funcionamento

O discurso pode, assim, ser distinto em três tipos: o “discurso autoritário”, quando o sujeito não fica exposto devido à contenção da polissemia; o “discurso polêmico”, quando há a possibilidade de se expor o sujeito, porém a polissemia continua contida; e o “discurso lúdico”, quando o sujeito fica exposto e a polissemia aberta. Quando se fala em “expor o sujeito” significa que se abre o “jogo” sobre as regras da língua, produzindo efeitos de deslocamento de sentidos. Por exemplo, em um discurso pedagógico, a relação professor / aluno se constitui através de gestos de interpretação diferentes, quando deve haver um espaço que possibilite a transferência, o trabalho de memória e a repetição histórica, citada anteriormente.

O discurso autoritário, por estancar a polissemia e não permitir a reversibilidade, deve ser criticado. Entende-se por reversibilidade a possibilidade de movimento de posições nas relações interpessoais, por exemplo, mãe / filho, professor / aluno, patrão / operário etc. É como um exercício de alteridade: um se colocando no lugar do outro. Essas posições têm sempre igual legitimidade. A reversibilidade se distingue da intercambiabilidade, já que esta dispõe sobre as posições equivalentes, por exemplo, os discursos de mãe, de professor e de patrão se equivalem, pois o que vale nesses discursos são as posições significativas e não a posição social.

Esses conceitos acabam por definir o que é ensinar: produzir condições para que, futuramente, possa haver a reversibilidade, ou seja, o aluno se colocar no lugar do professor, trabalhando com a memória a partir dos sentidos produzidos. Isso não quer dizer que possa haver a intercambiabilidade, pois há limites impostos às posições de professor e de aluno, ou seja, o aluno não deve falar da posição-professor e vice-versa.

Portanto, deve-se deixar clara a diferença de posições. O aluno deve falar do lugar do aluno, aprofundando sua posição, produzindo formulações a partir de um trabalho histórico de sentidos. Só então poderá ocupar o lugar de professor, depois de passar pelo processo ensino-aprendizagem. Esse aluno terá, então, deslocado sentidos, por isso não permanecerá sempre na mesma posição. Cabe, então, ao professor interferir na imagem que o aluno faz do objeto de conhecimento. Isso deve ser feito a partir de dois níveis: o teórico, mostrando os gestos de interpretação; e o analítico, possibilitando que os alunos trabalhem com os outros sentidos, pois estes estão sempre em movimento. Fluindo entre a paráfrase e a polissemia, entre o mesmo e o diferente.


COMENTÁRIO CRÍTICO

A autora procurou, nesse artigo, estabelecer as diferenças entre a paráfrase e a polissemia. É notório o valor atribuído a ela à polissemia. Em um discurso, está claro que há repetição, mas cabe ao sujeito-autor proporcionar condições de deslocamento de sentidos, investindo no simbólico e nos diferentes significados contidos nas palavras, que por si só já significam. A paráfrase, ao contrário, não sai do lugar, é o “mesmo”. Não há deslocamento, não há o simbólico. Assim, não se permite a plurissignifcação, o discurso acaba ficando sem sentido, já que não se pode inferir outros sentidos.

A Análise do Discurso é uma disciplina bastante interessante, pois trabalha com conceitos que nos fazem pensar, que nos induzem à reflexão e à mudança de postura como sujeitos interpelados pela ideologia. Seu estudo nos mostra que o discurso tem validade na polissemia, no simbólico, nessa fluidez, nesse deslocamento de sentidos.

É interessante como Eni Orlandi nos passa a idéia de que não há discurso sem repetição. Podemos afirmar, assim, que não há discurso original, somos interpelados por outros discursos, repetimos o tempo todo. E nossa memória funciona como agente nessa repetição, ligada, é claro, à história. Se sempre há repetição em nossos discursos, então como poderemos permitir o deslocamento de sentidos? Entra, então, a capacidade do sujeito em criar sentidos, transferindo-os para o simbólico, permitindo a diversidade de sentidos para que ele possa ter sentido. A repetição, por si só, não produz efetivamente um discurso, pois não tem sentido quando não se sabe por que se repete. Por outro lado, quando a repetição é histórica, podemos recriar sentidos, produzindo, assim, a polissemia, o diferente. A primeira, por si só, sempre a mesma, está ligada à paráfrase, ao mesmo.

O mais importante, aqui, me parece as relações que a autora estabelece entre as diferentes posições, principalmente entre o professor e o aluno. Socialmente, suas posições são diferentes, mas é importante que um saiba se deslocar para o lugar do outro e produzir os sentidos ditos por esse outro. Não que um substitua o outro, afinal cada um tem um lugar, Mas sim que um ofereça ao outro a possibilidade de produzir sentidos através dos gestos de interpretação. Nesse caso, os papéis da memória e da história são relevantes para o deslocamento dos sentidos. Portanto, distinguir entre o mesmo e o diferente é fundamental na produção discursiva de sentidos.