O trem da história (Luz no fundo do poço ? 1)

As coisas mudaram. O mundo mudou. As pessoas estão mudando. As transformações se apresentam, nos atraem, nos arrastam e no final, nos massacram. Queiramos ou não as mudanças sempre vêm! Tudo muda, dizia Heráclito, cinco séculos antes de Cristo; tudo muda o tempo todo, confirma Lulu Santos em nossos dias.

Esse panorama é onde se insere o processo da educação escolar. Tantas são as mudanças que algumas indagações se impõe. E uma delas é: quais são ou podem ser as implicações dessa ebulição sobre e para a educação escolar, numa sociedade que perdeu o rumo da humanização para supervalorizar o capital, em todas as suas faces?

Nossa reflexão pretende discutir algumas das causas do caos que sentimos no universo escolar. Causas essas que podem ser explicadas quando entendemos os mecanismos do conflito social ou o que se vem denominando crise de valores.

Os fãs do Raul me aplaudirão por emprestar do nosso rei do rock alguns versos de “Anos 80”, justamente quando canta: “Hei! Anos 80, charrete que perdeu o condutor; Hei! Anos 80, melancolia e promessas de amor”.

Hoje, cerca de trinta anos mais tarde, talvez não devêssemos dizer que a charrete perdeu o condutor, mas que o trem da história mudou de rumo: em vez de levar os passageiros os está atropelando. Então reescreveríamos o refrão do século passado: Hei, século XXI! O trem da história vai em outra direção. Hei século XXI! Atropelando todo povo da estação.

A troco de quê estamos dizendo isso? Apenas para anotar e constatar que estamos diante não de um impasse, mas de um dilema: acompanhar o sistema ou revolucioná-lo em favor dos estudantes? A quem interessa que os estudantes desenvolvam-se cada dia menos? A quem interessa que passem pela escola e saiam carregando um diploma de incapacidade e imperícia? A quem interessa que saiam de uma etapa escolar sem preparação para se desenvolver plenamente na fase seguinte?

Ao longo da história da humanidade, de tempos em tempos ocorrem momentos de crise. A história humana já superou crises em diferentes áreas: crise de alimentos, quando deixamos de ser coletores para nos transformarmos em agricultores e pecuaristas, ainda na pré-história; crise religiosa, quando cessou a supremacia católica com o surgimento das igrejas da reforma, no contexto do movimento renascentista; crise política, quando superamos a monarquia para a instalação dos sistemas republicanos... E em todos esses processos a semente do capitalismo foi se instalando para, no momento oportuno, germinar, produzindo este fruto malévolo: a sociedade e o sistema em que estamos inseridos e no qual se manifesta, possivelmente a maior crise que a humanidade já enfrentou: uma crise de valores!

Atualmente vivemos uma crise moral que nos está arremessando para o mais profundo do fundo do poço. Exemplos disso: de um lado um minúsculo país, querendo mostrar a que veio, realiza testes nucleares e com mísseis enquanto a alcateia inteira uiva dizendo que um nanico não pode querer ser grande (e por trás da discussão mostrada estão os interesses inconfessáveis das grandes nações); um país que se apresenta como maior potência econômica e militar, com pretensões de ser modelo para o mundo, elege um louco para governá-la e acaba expondo suas fobias pessoais e nacionais (principalmente em relação a estrangeiros e grupos minoritários). Além disso, em nosso país, as instituições jurídicas e políticas estão cada vez mais desacreditadas diante da população...mesmo com todos jogos de cena que são realizadas para o teatro das câmeras de TV. Tudo isso pode ser visto como sintomas de uma imensurável crise moral; a manifestação da crise de valores!

O fato é que o trem da história vem mudando o mundo, aparentemente para melhor, pois a cada dia mais se acumulam inovações infotecnocientíficas.... mudanças e avanços que, paradoxalmente estão cada dia mais distantes das necessidades do povo. Do ponto de vista humano e popular, são avanços que atropelam o povo uma vez que esse povo não usufrui de seus benefícios. Apenas chega à mão do povo o que pode significar algum lucro financeiro.

Em razão disso pode-se dizer que quando algumas dessas maravilhosas inovações atingem o povo é para explorá-lo. Tome-se o exemplo do telefone celular: uma maravilhosa tecnologia de comunicação; e está na mão de praticamente todas as pessoas. Entretanto é um equipamento de comunicação que mata a comunicação; presta-se, antes à alienação.

Com essas e outras é que se caracteriza a atual crise moral. Uma crise que nos arremete não para ver uma luz no fim do túnel, mas o fundo do poço. Portanto, se o trem da história nos está atropelando, esse mesmo trem nos está atirando dentro de um tenebroso poço onde os valores são colocados à prova. E, pelo menos aparentemente, o fundo do poço é um espaço em que prevalecem as trevas. Alguma eventual luz nesse abismo vem do alto, da boca do poço. E se ainda não vimos uma luz no fundo do poço é porque ainda estamos caindo. Estamos olhando para o fundo e não para a saída. Somente quando se chega ao fundo é que se tem a noção exata do estrago provocado pela queda. Somente quando se põe os pés no fundo é que se tem alguma possibilidade de buscar as causas da queda e, quem sabe, um caminho para a saída!

Nossa alternativa, portanto, não está num processo de avanço continuo, mas de repensar, rever, retomar e, quem sabe, retornar. Ir adiante implica em ampliar o abismo. Mas isso é possível quando se chega ao fundo. Por ora o trem nos está atropelando... nos jogando para o fundo...

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO