O trágico sem fronteiras

Para trabalhar-se com o trágico e com a tragédia tem-se de preocupar--se com uma definição do que seja o trágico e do que seja a tragédia. O conceito de trágico é difícil de ser definido, pois lá onde se procura por ele, ou seja, na tragédia, muitas vezes não se pode encontrá-lo; o mesmo pode se dar com a tragédia, muito embora seja bem mais fácil lidar com esta última. É que o trágico enquanto conceito torna-se muito escorregadio e trilhar por um caminho que pretenda defini-lo é trilhar por caminho pedregoso e de acesso acidentado, acesso dificultado exatamente porque a tragédia deveria dar pistas que pudessem auxiliar nesta busca, mas nem sempre é o que acontece.

O trágico sempre escapa pelas mãos. Mas isto não quer dizer que não se possa lidar com este conceito. Vários foram os autores que tentaram dar uma definição do que é o trágico e uma definição do que é a tragédia. Uma das primeiras definições foi dada por Aristóteles. O filósofo fez um estudo sobre a tragédia e suas funções básicas e em uma de suas conclusões, o estagirita afirma que a tragédia teria uma função de catarse sobre os espectadores.1

Em outras palavras, o espectador, ao assistir a uma tragédia sofreria um tipo de emoção toda especial que o levaria às raias da comoção. Mas, como este espectador não está assistindo ao espetáculo sozinho, esta comoção que se experimenta é da ordem do patético. Uma prova deste tipo de comoção foi a apresentação de uma tragédia de Frínico, Queda de Mileto, que teria provocado tamanha comoção na plateia, que os espectadores atenienses revoltaram-se com o autor e condenaram-no a pagar uma pesada multa, ao passo que sua peça foi condenada ao esquecimento sem poder ser representada novamente.

Outra tentativa de definição foi dada pelo também filósofo Friedrich Nietzsche. Em sua tentativa de definir o que é o trágico, o filósofo percorre a trilha deixada por Aristóteles com o fito de, após o apontamento de dois aspectos presentes nas tragédias, o apolínio e o dionisíaco, ultrapassar o estagirita em sua definição da

1 Cf. ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores). Cf. ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1990.

tragédia como sendo uma fonte de catarse, e pretendendo que o que é celebrado na tragédia é, sobretudo, a vida, a vontade de viver, é uma pulsão do vir-a-ser.2

Outra tentativa de definição foi dada pelo filósofo alemão Georg W. Friedrich Hegel. Em sua tentativa de definir o que é o trágico, o filósofo, de um ponto de vista extremamente româtico e especialmente “hegeliano”, diz que a tragédia envolve uma tensão de dualidade ou um conflito entre unidade e multiplicidade, e esta tensão, em Hegel, pode ser dada como aquela pulsão do vir-a-ser, de Nietzsche.3

A catarse como apontada em Aristóteles é uma espécie de remédio que os gregos chamavam de phármacon e que servia para expelir os sentimentos reprimidos das pessoas e, assim, o espectador podia sair da arena do teatro aliviado, dir-se-ia até mesmo curado de alguma patologia. Mas, esta solução pela catarse assinalada pelo estagirita aponta para uma das funções da tragédia e não lida com o problema do trágico. O mesmo acontece se tomar-se como definição o trágico de Nietzsche, pois desta feita, ter-se-ia um conceito em constante metamorfose, bem ao gosto de Dioniso. Já a visão da tragédia mais comumente associada a Hegel é a sua ideia de conflito entre uma unidade representada pela família e a multiplicidade representada pela comunidade, por exemplo, colocando em oposição uma vida ética em sua universalidade social e a família como fonte natural de uma relação moral, o que levaria a uma suposta sujeição incondicional de um pelo outro. Neste passo, o trágico funcionaria como um elemento de interpretação do que é a tragédia e não auxiliaria em uma definição de si mesmo.

Assim, há de se considerar, em primeiro lugar, a tragédia como uma provável fonte para a geração do trágico (ou seria o inverso: o trágico como uma provável fonte para a geração da tragédia?). Com efeito, algumas pistas podem ser encontradas na tragédia. Destarte, verificar-se-á, por exemplo, as origens da tragédia e ao que estas origens estavam ligadas, para então, tentar-se formular uma ideia do que seja o trágico e se realmente ele tem força para atuar lá onde ele deveria ser encontrado, ou seja, nas tragédias.

2 Cf. NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles. Apresentação à edição brasileira, tradução do alemão e notas de Ernani Chaves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. Cf. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

3 Cf. HEGEL, G. W. F. Estética: a idéia e o ideal - Estética: o belo artístico ou o ideal. Trad. de Orlando Vitorino. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).

Controvertido é tentar apontar uma origem da tragédia. Este tema está envolto em grossas nuvens. Apenas é dado especular sobre os primórdios da tragédia. Sabe-se com segurança que esta maravilhosa obra de criação da genialidade artística dos homens nasceu entre os gregos. Mais precisamente entre aqueles do VI século antes de Cristo.

Havia uma grande festividade em homenagem ao deus Dioniso em Atenas com o fito de comemorar os resultados de colheitas fartas e propícias. Esta festividade recebia o nome de Grandes Dionísias ou Dionísias Urbanas, por oposição às Dionísias Menores ou Dionísias Rurais. Nesta festividade, os rituais envolviam diversas etapas que representavam não só uma forma de agradecer os favores dos deuses, mas também as promessas de boas colheitas futuras. Ao final dos agradecimentos, aqueles que se prontificaram em participar do festival, recebiam uma recompensa na forma de apresentações teatrais com representações de peças que podiam ser tragédias e comédias. Mas tudo isto diz respeito ao formato já consolidado do festival das Dionísias Urbanas, e não possibilita vislumbrar a origem da tragédia.

Com efeito, se a tragédia já consolidada do século V a. C. já possuía algumas características bem visíveis, tais como: ser uma festa em homenagem a Dioniso; ser uma festa de comemoração por boas colheitas; ter representações teatrais; o fato de os atores usarem máscaras etc.; o mesmo não acontecia com a tragédia dos primórdios. É importante frisar desde o início que as primeiras formas de representações que poderiam se aproximar daquilo que se convencionou chamar-se de tragédia era uma representação que ocorria na zona rural de Atenas.

Com efeito, duas coisas são de suma importância neste passo: havia o canto ditirambo e havia o uso de máscaras. Então é importante salientar que, provavelmente, a seguinte relação era possível: para celebrar-se as boas colheitas de um determinado ano, portanto na zona rural, os camponeses faziam homenagem ao deus Dioniso. Ora, de onde se origina uma tal afirmação? Neste passo só pode ser apontado o mito do deus como uma provável resposta.

O ditirambo era um canto em homenagem ao bode, ou melhor, ao deus Dioniso, que assumia a forma de um bode no momento mesmo de suas muitas transformações e era a forma de animal preferida pela divindade para estas metamorfoses. E o uso de máscaras? É sabido que nas culturas primitivas, os festivais

propiciatórios de colheitas eram celebrados pelos participantes usando máscaras. Estas máscaras possuíam diversas funções. As principais delas estavam relacionadas com a proteção de quem as usavam e com o poder de afastar os demônios e as forças hostis sempre à espreita com o objetivo de prejudicar os homens; nos momentos destas festividades, os participantes estavam sempre mais vulneráveis aos ataques e às incursões destes seres maléficos. É sabido que o deus Dioniso é frequentemente representado nas cerâmicas áticas ora usando uma máscara ora ele mesmo como sendo uma máscara propriamente dita. Assim, a provável ligação do culto e do mito do deus com o surgimento da tragédia pode ser apontado como certo.

No momento mesmo das festividades das Dionísias Rurais, havia o sacrifício de um animal. Tudo leva a crer que fosse um bode. Assim, pode tecer-se um caminho que leva do surgimento das primeiras homenagens feitas pelos homens em forma de sacrifícios até a ideia do bode expiatório, tema este também relacionado à figura de Dioniso.

Os primeiros sacrifícios feitos pelos gregos têm como pano de fundo a tradição hesiódica do mito de Prometeu, que teria inventado o sacrifício propriamente dito. Já na tradição histórica, o período micênico pode ser apontado como o período do início dos sacrifícios entre os gregos.

Sacrificavam-se não só animais de pequeno porte, mas também animais de grande porte, sendo o boi imolado em momentos muito especiais. A ideia de ter havido sacrifícios humanos não é facilmente descartada, dado que o sacrifício deste tipo de vítima devia ser muito apreciado por ser considerado muito mais eficaz do que o sacrifício de animais.

Já que um sacrifício humano era mais eficaz do que qualquer outro, este tipo de prática deve ter se originado em algum momento e lugar. Uma provável origem para o surgimento da ideia de bode expiatório pode estar relacionada a um ritual de iniciação de donzelas denominado de arkteia. Neste festival, o primeiro animal a ser imolado foi um urso e a divindade em questão não era Dioniso, mas sim Ártemis, outra divindade ligada ao mundo selvagem que também frequentemente é representada usando máscaras, assim como o próprio Dioniso. O urso devia estar consagrado à deusa Ártemis, pois logo após a morte do animal houve peste e fome sobre a comunidade. Um oráculo foi consultado e o deus teria dito que, para expiar a culpa, era necessário

sacrificar uma donzela à deusa. Somente uma cidadã decidiu fazer o que fora determinado. Preparou a filha, escondeu-a em um local secreto do templo, vestiu um bode com roupas humanas e imolou-o no altar do templo como se fosse a sua filha.4

Logo, podem ser observadas algumas pistas sobre o surgimento da ideia de bode expiatório (phármacon) relacionado com a prática de sacrifícios sangrentos. No próximo passo, há de se relacionar esta ideia ao mito de Dioniso. Já estão presentes o bode, as máscaras (neste caso, das divindades relacionadas com o sacrifício), a vítima humana que é substituída por um animal (neste caso, o bode). Nos mistérios de Dioniso, a vítima não era morta por um corte com material cortante feito na garganta, mas era morta por despedaçamento feito pelas mãos dos participantes e, logo após, comida ainda crua. Neste caso, somente o mito órfico de Dioniso Zagreu poderia explicar a relação que havia entre o sacrifício não só de animais, mas também o sacrifício de seres humanos; entre a ideia de um bode que deve substituir o ser humano durante o sacrifício e o sacrifício simbólico do deus; e, portanto, a existência de um bode expiatório; e, finalmente, a substituição mesma de Ártemis por Dioniso. Uma coisa é certa: em ambos os mitos, aquele de Ártemis e aquele de Dioniso, havia um bode expiatório, havia a natureza selvagem, o que lembra as Dionísias Rurais, havia o uso de máscaras, dado que lidar com as forças da natureza selvagem representadas pelas figuras divinas em questão devia ser muito perigoso e devia atrair forças maléficas.

Destarte, o deus Dioniso era considerado propiciador de boas colheitas. Havia sim outras divindades responsáveis pelas boas colheitas às quais eram atribuídos poderes ligados à fertilidade da terra como eram os casos de Deméter e de sua filha Perséfone e até mesmo o caso do deus dos Ínferos Hades, mas Dioniso era especialmente celebrado em pelo menos três momentos específicos: nas Dionísias Rurais (realizadas no mês de posidéon, equivalente a dezembro), nas Leneias (realizadas no mês de gamélion, equivalente ao período que abrange janeiro e fevereiro), nas Dionísias Urbanas (no mês de elafebólion, equivalente ao período que abrange março e abril). Na primeira festa, os camponeses faziam os seus pedidos mais comuns: pediam por boas colheitas e muita fertilidade para as suas terras; na segunda festa, o pedido era por bons casamentos e o tema da fertilidade também estava presente,

4 Cf. DOWDEN, K. Os usos da mitologia grega. Trad. de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Papirus, 1994.

ou seja, um casamento fértil em filhos; na terceira festa não havia pedidos, mas sim agradecimentos ao deus por ter se lembrado dos pedidos e concedido as bênçãos.

Assim, o conjunto da obra estava completo. Todos os elementos para o surgimento das apresentações das tragédias estavam dados. A tragédia era tipicamente urbana, portanto as tragédias eram apresentadas nas Dionísias Urbanas. Homenageava- -se o deus, celebrava-se a boa colheita, fazia-se apologia à fertilidade. Os atores apresentavam-se portando máscaras, o bode expiatório também estava presente na figura do personagem que padeceria com os elementos de tragédia. Havia todos os requisitos básicos para que a tragédia cumprisse seu papel principal de acordo com Aristóteles, aquele da catarse.

Aristóteles, no capítulo XIII da Poética, introduz em sua análise sobre a tragédia o conceito de hamartia para explicar a função da catarse poética. A hamartia trágica pode ser traduzida como um erro, uma falta trágica. Aristóteles preocupa-se com o teor de culpabilidade daquele que comete o erro, a hamartia, e isto faz necessário lidar com os graus de envolvimento daquele que comete o erro trágico. Com efeito, pode-se dizer que haja quatro situações que podem definir o grau de culpabilidade daquele que comete o erro (Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 8-11)5. A primeira seria aquela dos atos cometidos na ignorância e cujos resultados não poderiam ser previstos; a segunda seria aquela dos atos cometidos na ignorância, mas que poderiam ser evitados dado que previsíveis os seus resultados; a terceira seria aquela dos atos cometidos intencionalmente derivados de uma forte paixão; a quarta seria aquela dos atos cometidos por meio de um vício, uma maldade, uma injustiça, ou falta de caráter. Assim, há duas categorias de faltas trágicas: aquelas involuntárias e aquelas voluntárias. As involuntárias estariam enquadradas nas duas primeiras situações; as voluntárias estariam enquadradas nas duas outras situações.

Ao se introduzir o tema da hamartia, introduz-se também o tema da vontade do indivíduo. Entre os gregos, a vontade do indivíduo não depende única e exclusivamente dele, mas, envolto constantemente por forças estranhas e alheias a ele, o indivíduo pode agir sob efeito destas forças.

Assim, cabe questionar o que seria mais trágico para o indivíduo: agir de forma involuntária, desconhecendo tanto que se está cometendo um erro assim como

5 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996, (Coleção Os Pensadores), pp. 207-215.

desconhecendo os resultados deste erro e desconhecendo as pessoas que padecerão as consequências deste erro ou agir movido por uma forte e intensa paixão não medindo esforços e não se importando com os resultados?

Com efeito, até este ponto, pode-se definir o trágico como algo que foge ao controle dos agentes e pode ou não resultar em morte, pois o que é mais trágico: sofrer os efeitos dos elementos de tragédia e sobreviver a eles mesmo que para sofrer com os terríveis efeitos da angústia de ter cometido um erro que prejudicou outrem ou morrer e escapar de imediato da força inaudita da hamartia? Assim, o trágico, por ora, é o resultado de um erro cometido sem premeditação do agente, sob força dos elementos de tragédia que constantemente e implacavelmente rondam este agente. Neste caso, é a primeira das situações apontadas por Aristóteles.

Neste ponto do caminho em busca do trágico chega-se aos elementos de tragédia. Na verdade, quem está agindo constantemente são os elementos de tragédia que vivem rondando os agentes das ações. Neste caso, não adianta ficar sem agir ou mesmo agir, pois os elementos de tragédia vez por outra entram em ação pelos próprios agentes lançando-os em uma torrente irresistível de ações fora de controle e que resultam na hamartia dos infortunados agentes, o que leva até a tragédia propriamente dita.