O TEMPO E A FICÇÃO DE BORGES

Uma das coisas que as pessoas geralmente questionam é o anacronismo de certos fatos da vida real e a sua narrativa, quando estes fatos são geradores de uma obra de ficção que os localiza em época diferente da verdadeira.

Eu explico. Vamos tomar como exemplo o conto El Muerto, de Jorge Luis Borges, inspirado num fato real ocorrido na década de 30, na fronteira do Brasil com o Uruguai.

O fato culminante, no conto de Borges, que foi o assassinato de um homem, e que encerra a história por ele contada no livro El Aleph, ocorreu em 1894, portanto há trinta e poucos anos antes do fato verdadeiro, que ele presenciou, e que lhe sugeriu a idéia de escrever essa narrativa.

Ademais, o personagem Benjamin Otálora por ele criado para protagonizar o papel de um contrabandista de fronteira, é de nacionalidade argentina, um triste ?compadrito?, ?um homem sem virtude nem paixão?, como ele diz no início do conto, natural de um bairro pobre dos subúrbios de Buenos Aires, que o destino teria levado a se envolver com o contrabando na fronteira do Brasil com o Uruguai.

Como exímio ficcionista que sempre foi, Borges em seu conto procurou localizar o fato que o inspirou em época diferente da verdadeira, assim como inventou uma trama, uma nacionalidade e uma identidade para o seu personagem. Mas só ficamos sabendo disso ao relacionar os fatos, através da leitura do conto El Muerto e das evidências do que consta no livro A FRONTEIRA ONDE BORGES ENCONTRA O BRASIL, de Carmen Maria Albornoz Serralta Hurtado, ao mencionar que o escritor argentino, acompanhado de um amigo, também escritor, viu morrer um homem num bar, assassinado a tiros, na década de 30, em Santana do Livramento, na fronteira do Brasil com o Uruguai.

Registre-se que também o escritor Arlindo Coitinho, baseado no mesmo episódio e no correspondente conto de Borges, escreveu seu último livro, O HOMEM DA COXILHA.

Quer dizer, mesmo que Borges não tivesse registrado em suas memórias que se inspirou naquele fato real para escrever seu conto, ao mencionar que presenciou aquele incidente e ao escrever o referido conto, embora atribuindo nomes fictícios aos personagens e localizando o episódio em época diferente, deixaria bem claro, para a posteridade, que uma coisa estava relacionada com a outra.

Para as mentalidades lógicas, ávidas de coerência, os fatos da vida real e a ficção escrita com base neles, deveriam guardar perfeita correspondência factual e cronológica, mas não é assim que acontece, conforme acabamos de verificar nesta ficção de Borges.

Luciano Machado