O Brasil sempre foi, e parece continuar sendo, mal resolvido quanto à questão de sua identidade nacional. Melhor seria dizer identidades, no plural, pois ele reflete com maior precisão a dimensão complexa de nossa formação histórico-cultural, nestes cinco séculos de “descoberta oficial” empreendida pelo colonizador português. Talvez, seja importante (re)lembrar aquela já conhecida lição da Antropologia: a identidade é marcada pela diferença. E mais, ela só se constrói a partir da própria ideia de diferença. É em relação com o outro que vamos nos contruindo, moldando nossa identidade.

No Brasil, a região Sul especificamente, parece evidenciar-nos com mais nitidez esta questão da dificuldade de identificação nacional, de um eu que apresenta certa dificuldade de se identificar com o todo, e de se enxergar nele, dissolvendo-se e misturando-se nele, simultaneamente compondo-o, (re)fazendo-o. Dificuldade com as raízes fundadoras, com as origens deste país que habitam e do qual são filhos e filhas. Afinal, “o Sul é branco, mais parecido com a Europa, até no clima”, dizem alguns e acreditam outros tantos, não poucos. Como se só houvesse pessoas brancas no Sul. “Há lugares do Sul que nem parece Brasil”. Mas, como não parece Brasil, se o Sul é uma das cinco regiões que compõem o país, integrando nosso território? Palavras, palavras, nada inocentes vocábulos, com sua capacidade de nos encantar, seduzir, enganar. “O Sul só tem alemão e italiano, mal se ver brasileiro”, disparam muitos(as) das demais regiões brasileiras, capturados pela invenção histórica daquela região, legitimando realidades e (in)verdades.

É o poder dessa invenção imagético-discursiva que entre nós ganhou terreno, como nos lembra o historiador brasileiro Durval Muniz. É a intencionalidade do discurso nunca neutro, habitando e povoando imaginários, forjando representações, conduzindo práticas, discursivas e não discursivas. Criando e (re)forçando estereótipos. É a força da repetição como pretensão de criação de uma “verdade” que internaliza-se, “naturaliza-se”, difunde-se, ocupando o lugar de verdade e torna-se uma “verdade”, como nos aponta o filósofo francês Michel Foucault. Conforme a linguista brasileira Eni Orlandi, “o trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana”, e é assim que as coisas vão fazendo sentido, ou não, através do dito, da linguagem mesma como legitimadora de realidades e identidades, como criadora e organizadora do mundo.

Percebam e reparem que, não é por acaso que mesmo após mais de 160 anos, pessoas que migraram para o Brasil com suas famílias, por pobreza absoluta no século XIX da Itália e da Alemanha com a ajuda do governo brasileiro (Império), continuam se dizendo alemães ou italianos, quando legalmente, segundo o passaporte não o são, como constata irônica e realisticamente o historiador brasileiro Leandro Karnal. Mesmo as gerações posteriores tendo já nascidas no Brasil dizem primeiro: “sou descendente de alemão, italiano, russo, polonês, português”, mesmo sendo suas naturalidade e nacionalidade primeiras, brasileiras. Quem nasce no Brasil é brasileiro(a). Ponto. Ou não? É bem certo que a identidade não é fixa, absoluta, mas, relacional, histórica, como afirma Kathryn Woodward, entretanto, quem nasce no Brasil é brasileiro(a), ainda que suas origens e raízes familiares sejam outras; africanas, asiáticas, europeias.

Gostam e preferem estarem “mais próximos dos europeus”, do que de seu povo, o brasileiro. De sua terra, de seu lugar. Identificam-se com tudo e todos, menos com o Brasil que seus ancestrais recebeu e acolheu, quando aqui chegaram com uma mão na frente e outra atrás, para inicialmente substituírem a mão de obra escravizada que já começava a se tornar mais escassa e proibida em meados do século XIX, por uma série de razões históricas que não nos cabe discuti-las aqui e agora.

Não estamos aqui a negar as singularidades e especificidades da formação das gentes brasileiras, jamais. Assim fazer seria desconsiderar nosso processo de formação histórico, nossa história mesma. Não é isso. História não se inventa, constata-se, reflete-se sobre ela, rediz-se de formas diferentes, na tentativa de torná-la mais nítida e compreensível. É evidente que o Brasil é por demais diverso, daí o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro falar de Brasis em seu clássico O Povo Brasileiro, pelas particularidades de cada região, que em conjunto formam esse todo complexo, heterogêneo, difuso e problemático que é o Brasil. Nem muito menos negar que no Sul do país há uma população considerável de pessoas descendentes de imigrantes europeus.

O que queremos propor aqui é um suleamento para o Sul. Suleamento para um Sul que, estando no Sul Global, quer-se norte. Tomo por empréstimo estas expressões de Paulo Freire. Sulear, para aqueles e aquelas que, especificamente pensam-se não brasileiros(as) - mesmo estando aqui em baixo há mais de um século e meio -, abandonando esse complexo de cachorro vira lata, fruto do norteamento eurocêntrico de muitos imaginários que negam ou não aceitam sua latinidade, seu sangue brasileiro, seu lugar, pois “ser europeu é melhor que ser latino”, uma mentira que encontra morada confortável na casa dos discursos, das palavras como armas de (des)legitimação, que precisa sistematicamente ser descontruída e descredibilizada. Apontada como uma falácia. Como uma fala autoritária e totalmente arbitrária, racista.

Cabe a muitos de nós neste processo, pararmos de (re)afirmarmos e legitimarmos estereótipos e invenções sobre a região Sul. E assim apontarmos um Sul que também é indígena, pois antes de qualquer europeu colonizar aquelas terras, as mesmas já eram casa dos povos originários. Alguns nomes de cidades, ruas e avenidas não nos deixam esquecer a presença indígena, ainda que tentem. Sul que também é afro-brasileiro (engraçado que a região do país onde há a maior presença das religiões de matriz africana é a do Sul). Sul que também é branco, que possuí miséria e desigualdade como em qualquer outra das quatro regiões, pois no que é estrutural em nossa sociedade, somos um só país: o da desigualdade. O Sul como Brasil, e não como um outro “lugar”, um outro “país”, porque de fato, não o é. Pois, se assim fosse, não comporia o Brasil, tal como hoje conhecemos, geograficamente falando. Não há brasileiro(a) de primeira, segunda e terceira classe, há brasileiros e brasileiras. Não caiamos nas armadilhas de nossas próprias invenções, que jamais estarão desprovidas de intencionalidades.

Yago Felipe Campelo