O sorriso do meu pai 

Aquela foi a noite mais feliz da minha vida.

A expressão de felicidade do sorriso do meu pai jamais se apagará da minha memória. Nele percebi a força do amor que o meu pai nutria por mim.  

Pude então sopesar a extensão do sofrimento que se abateu sobre o coração do meu pai naquela madrugada fatídica do dia vinte e cinco de dezembro de 1979 quando

marginais mataram a visão dos meus olhos...

No vigor dos meus vinte e sete anos, desprezei a tradicional ceia de natal que acontecia no aconchego da minha casa, para amanhecer o dia na efervescência do point mais alegre e atrativo da cidade, o Bar Miragina, longe de imaginar que jamais chegaria ao destino desejado...

No trajeto, que estava sendo feito a pé, cinco marginais tentaram se apossar dum garrafão de vinho que levava para tornar o percurso mais agradável. Um deles, portando manopla, acertou em cheio um murro no meu rosto. O impacto foi tão forte que uma espécie de névoa se abateu sobre os meus olhos... Com muita dificuldade consegui voltar pra casa, aquietando-me num beliche.  

O diagnóstico médico acusou descolamento de retina e corte por trás da pupila, em fase inicial de processo de cicatrização, recomendando tratamento urgente em centro mais avançado.

Campinas ou Rio de Janeiro foram os destinos recomendados. Fui para o Rio, posto lá morar a Safira, sobrinha do meu pai, que era médica.

Numa verdadeira via sacra fui examinado por vários médicos, especialistas em oftalmologia.

O diagnóstico foi cruel: visão do olho direito totalmente comprometida por descolamento de retina e corte por trás da pupila em processo de cicatrização. Visão do olho esquerdo comprometida quase na totalidade por desvio de retina, passível de recuperação por meio de tratamento com tensoplast (bandagem elástica adesiva), no olho direito, por um período mínimo de dois anos. Alternando seis dias com bandagem por um sem bandagem, e assim sucessivamente. Os médicos expediram inclusive declaração para fins de formalização de processo de aposentadoria. Resignado, voltei pra casa. Tinha então vinte e sete anos, mas a sensação era a de que o tempo havia me acrescentado muito mais janeiros...

Com apenas sete anos de UFAC fui orientado a entrar em gozo de férias, já que as mesmas encontravam-se acumuladas por quase três anos. Vivíamos a época do Cometa Halley. Minha mãe passou então a cuidar de mim, tornando-se a luz dos meus olhos. Todas as manhãs ela colocava um copo com água em cima do rádio, na hora da oração do Bispo Eurico Mattos Coutinho, da Hora Milagrosa, cuja Igreja localizava-se na Cidade Nova. Com essa água benta minha mãe orientou-me a lavar os olhos. Também usava água de santa Luzia. Mesmo quase sem nenhuma visão não me tornei recluso. Num domingo de Vasco e Flamengo lá estava eu sentado na sala lotada, enxergando da televisão apenas o clarão. Mas eis que no final do primeiro tempo eu comecei a enxergar o vulto dos jogadores e da bola, cuja imagem assemelhava-se à imagem do Cometa Halley. Numa felicidade quase incontida decidi continuar quieto. Ao final do jogo, vitória do Vasco, estava eu a enxergar tão bem quanto dantes. Ainda assim, saí de fininho tateando paredes rumo ao banheiro, onde lavei o rosto friccionando os olhos para ver se aquilo não era rebate falso. E não era. Minha visão havia voltado. Então dei a notícia que todos tanto ansiavam. A alegria tomou conta do ambiente, traduzida em abraços, risos e choro. Meu pai nunca foi de dar gargalhadas, mas o sorriso que vi estampado no rosto do meu pai foi a mais linda declaração de amor que até hoje já recebi.

N’outro dia voltei a trabalhar na Ufac/Prad.

Valeu pai!

Sigo até hoje tentando imitar o teu sorriso...