O sonho
Por Daniel de Souza Castilho | 14/01/2019 | ContosO sonho
E uma luz incandescente irradiava de todos os lados quando ele abriu os olhos. Apertou bem a vista e lentamente procurava adaptar-se a toda aquela claridade. Olhou ao redor, e devagar começava a identificar que não tinha nada para ser identificado. Aquilo subitamente fez-lhe arregalar os olhos, mesmo que queimasse as retinas com todo aquele clarão. Virou-se trezentos e sessenta graus... pasmado.
- Olá... Tem alguém aí?
Apenas um eco reverberava em algum lugar muito distante dali. Continuava a diligência daquela nova e estranha realidade, olhando como um gato à espreita, e nada. Nada, era o puro nada em branco reluzente. Levou à atenção ao chão, e percebeu que não conseguia diferenciá-lo do próprio céu. Sentia-se como um desenho em 2D, numa folha de papel. Como se flutuasse sobre seus pés ou se caso tropeçasse, cairia para sempre num vão sem fim.
Decidiu, após algum tempo, caminhar e explorar o que não parecia precisar ser explorado. Tentava compreender que lugar era aquele. Questionava se estava morto, se estava em coma, se havia sido abduzido. Seu cérebro parecia funcionar de forma diferente. Não havia mais estímulos de fora, além de todo aquele branco vertiginoso, e seus pensamentos pareciam desacelerar. Talvez para alguns encontrar-se num nada fantasmático despertaria as piores e mais horrendas fantasias e angústias, provavelmente, cairiam num raciocínio recorrente, num círculo silogístico de premissas deturpadas e sucumbiriam a capacidade que a mente tem de autodestruir-se. Mas, aparentemente, não.
- Eu não posso estar morto, do contrário não respiraria, nem sentiria essa luz incomodar meus olhos, nem andaria. Talvez se estivesse morto, seria apenas um ectoplasma movendo-se feito uma minhoca bêbada e com cólicas intestinais. Também não posso estar em coma... Lembro de noite passada ter dormido. Ah, mas é claro! Estou dormindo...
Essa aparente descoberta fê-lo ter uma leve sensação de alívio. Agora tentava perceber as coisas sem um ar de espanto. Como acreditava estar num sonho, imaginou alguma coisa. Tentou materializar um copo com água, mas sem sucesso. Tentou mais outras coisas, porém como que se já soubesse o resultado, desistiu na terceira vez, perguntando-se porque continuou a tentar já que nenhuma das anteriores funcionaram.
Sentou-se no chão e enlaçou os braços na frente dos joelhos. Baixou a cabeça, e notou que estava vestido. Viu a calça e um buraco queimado pela brasa do cigarro que certa vez despencou-se das falanges... Nesse momento, ele começa a recordar algumas coisas. Sua vestimenta o trouxe para o mundo ou a realidade em que vivia antes de deparar-se naquele lugar. As recordações foram surgindo, como um livro escrito à sua frente em forma de algodão e trapos velhos costurados. Cada pensamento se associava a outro e a outro, seguidamente. Percebeu um rasgo na manga esquerda da blusa e começou a desejar estar nu para que nada mais o fizesse pensar e recordar de fatos e acontecimentos que lhe atordoava, e por um pequeno instante, esquecer todos aqueles momentos.
Lembrou-se que a vida que tinha era bagunçada. Não dormia direito, comia mal, bebia regularmente, e sempre que os cigarros lhe faltassem, não evitava em fazer uma caminhada até a esquina e comprar um novo maço. Era o único exercício que praticava com frequência. Infelizmente aquelas recordações o fizeram pensar em todas as coisas que viveu até que desejou não ter lembrado nada. Desejou até ter nascido naquele lugar estranho, sem roupas, sem memórias, e sem ninguém. Apreciou a solidão e a calma que o cercava. Nem o barulho do silêncio o atordoava. O lugar havia passado de amedrontador para o mais tranquilo e revigorante possível.
No entanto, subitamente, arrancou as próprias roupas, com sangue nos olhos! Correu sem rumo e sem destino. Imprudentemente, fazia força e em cada passo era como se tentasse pisar no passado e amassá-lo ao chão. Eram pisadas de ódio, rancor e arrependimento. Correu... e correu... o ar nos pulmões esgotava-se, as pernas balançavam e tremiam. E, finalmente, sem ter mais fôlego para manter o mesmo ritmo, parou. Pôs as mãos no joelho e buscou ar... respirou... sentiu seus brônquios filtrarem as pequenas partículas e oxigenar mais uma vez seu sangue, seu corpo, seus músculos. Sentia a vida entrar a cada inspiração e sair a cada expiração. Estava vivo, muito vivo. Jogou-se ao chão e olhou para todo aquele branco, fechou os olhos e esmoreceu.
Pouco tempo depois acordou no mesmo lugar, o mesmo clarão que já não incomodava mais tanto. Levantou-se devagar, ainda nu. Andou, sentia fome e sede. As coisas pelas quais sempre deu importância deixavam de ser pontuadas. Continuou andando, sem saber onde iria chegar. Andou por horas e caiu, exausto, faminto e sedento.
- O que é isso? Por que isso está acontecendo? Que lugar é esse?
Virou-se de frente para o céu luminoso, sem sol, sem nuvens, sem azul nem nuvens de gases. Olhou para si, seus pés, suas pernas, seus órgãos, sua barriga, seus braços, suas mãos e... percebeu que não conseguiria mais ver seu rosto. Aquilo o assustou um pouco. Mas podia ver o próprio nariz. Deitou a cabeça de novo e foi percebendo quanto o ser humano é frívolo e fútil em tantos detalhes e em tantas circunstâncias. Não pensava em mais nada além daquela fome. O estômago vazio gritava e implorava por alimento. A boca seca exigia líquido. A saliva era espessa, quase imperceptível. Quando engolia, a garganta roçava em si mesma, arranhando e machucando por dentro. Contorcia-se de dor... e em nada mais pensava, apenas respirava, instintivamente, respirava, até que... no passar do tempo, os pulmões foram se cansando... O sangue foi engrossando e os músculos enfraquecendo. O corpo definhava a cada minuto, a cada segundo. Ele teve um pequeno lampejo além daquela claridade. Um lampejo de lembranças... lembrou que aprendeu coisas inúteis e outras até que úteis. Mas vivera de forma inútil. Conheceu pessoas que apesar de parecerem interessantes, também eram inúteis. Pensou em alguém especificamente e teve medo. Um medo lancinante que o fez temer a morte. Permitiu lembrar-se daqueles grandes olhos de guaraná, e abriu os seus na tentativa de vê-los. Não viu, fechou-os inexpressivamente e soltou no ar a vida que se deixava ir... A vida sucumbia à mera existência de um homem.