O sonho não sonhado

Joacir Soares d’Abadia*

 

Um dia eu acordei pela manhã, e percebi que não havia sonhado nada; ao menos que eu lembrasse haver sonhado, na noite anterior. Então, pensei que deveria, ao menos, ter sonhado que estava num pouso de Folia. O sonho, todavia, deveria ser assim...

De repente, chega o presbítero. E, logo, a notícia se espalha... O povo se comunicava entre eles, avisava uns aos outros: “está aqui o presbítero, que gosta de ricos e odeia a pobres!”. “Não, ele não somente odeia pobres, como, também, zombam deles”, diz ao outro lado, um miserável.

“Pára!” Diz o homem, angustiado... “Pára, pois aquele padre é uma aberração! Além de não gostar dos pobres, zombam dos miseráveis; e sempre se mostra insatisfeito com o salário que recebe da Igreja”.

“Seu salário!” – em lágrimas, diz um velho: “Nunca se pagou tão-bem a um seguidor do Crucificado. O que ele ganha contradiz com o que prega.

Beatamente, (...) com prazer (...), pagamos nosso dízimo.

Cremos fielmente, em Deus; mas não, nesse inimigo dos pobres. Trata-se de o pregador da riqueza material”.

O guia da Folia, que fazia a saudação do cruzeiro, rezava uma oração sobre a História da Salvação, que ia, desde a concepção de Jesus, até a Gloriosa Ressurreição de Cristo, Nosso Senhor. No momento em que o padre chegava, os foliões saudavam à Santíssima Trindade: “Pai, Filho e Espírito Santo” — o que é repetido várias vezes.

Em seguida, diziam: “O Pai é o primeiro; o Filho é o segundo, e o Espírito é o terceiro”.

O servo de Deus ouviu por um instante a saudação; depois, fez suas cordas vocálicas vibrarem as flechas, com inúmeros balbucios de descaso, àquela demonstração de fé popular.

“Jamais pode haver fé no coração de um homem tão rude como este, que canta esta saudação”, falou o seguidor de Cristo, para si mesmo, porém com voz forte.

Uma senhora que ouvia o falatório, disse: “ponha rédeas nesta boca e freios na língua, ó homem de vida livre!.. Mais respeito com o Divino!”.

Outra senhora interfere, dizendo: “comadre, não fale assim com o padre; ele é o único que Celebra Missa, uma vez a cada mês, nesta comunidade!”.

Arrependida, a tal senhora diz para si mesma: “meu Deus, perdão por falar palavras ásperas ao Vosso seguidor!” Contrita, ela bate os dedos da mão direita levemente nos lábios, em sinal de respeito e devoção a Deus.

 

01.

“Compadre, (...) pode acreditar no que vou falar para o senhor (...) –, por que é tudo verdade!

Este padre é o pior que já tivemos (...) no remoto, em toda minha vida. Olha que já vivi muito! Mas nunca vi um padre, que fosse apegado à dinheiro. Isso, não é (...) possível, compadre!

Por que isso incita o nosso coração, a seguir o exemplo de quem é nosso pastor. Lição cruel, quando aprendida do pastor, nosso mestre.

Não devemos seguir o conselho desse pastor, rico de ofensas, pois só reza se tiver vasos de ouro sobre a (...) mesa.

A mesa do Altar não é a tábua onde se destila fúria.

Suas velas iluminam os bolsos dos nobres, enquanto fazem sombras sobre os rostos dos pobres.

Nada disso, é mentira, meu compadre!

Meu sacrifício eu faço, não por ter esse padre como meu pastor; mas porque, a minha fé, é iluminada pelo Espírito Santo. É o Espírito Santo que me move...

Por isso, posso rogar a condição de amor para esse padre, que tanto mal faz à nossa comunidade, sem que as minhas palavras sejam ásperas.

Longe disso, compadre... Agora, se o senhor estiver pensado que (...) com ódio desse padre... Ele faz (...) muito mal às pessoas; no entanto, não devemos maldizê-lo...

Afinal, com erros e acertos, ele é um servo do nosso Deus”.

Após ter ditos essas palavras, o ancião pegou no ombro de seu compadre, e melindrou a cabeça.

Sem audácia, mas amigavelmente, o compadre acolhe o seu amigo com palavras que denotam fé e esperança, no padre.

“Compadre”, -- acrescentou; “por pouco seus ensinamentos não matavam minha fé! Santas foram suas palavras finais, que me diziam para não crer que estava com rancor daquele presbítero.

Porque, às vezes, o senhor falava como se não acreditasse em doutrina alguma. Preocupado, quase me levou à ruína aquelas considerações que fazia”.

 

02.

Logo à frente daqueles dois anciãos estavam os pouseiros, donos da casa que recebiam o Divino Espírito Santo, naquela noite.

“O vento das ´asas´ do Divino Espírito Santo trouxe o senhor aqui esta noite, padre! Seja abraçado pelo Espírito Santo! Bendito seja esta hora, porque o senhor veio até nossa casa, (...) pouso do Divino Espírito Santo”. Foi essa a saudação ao padre feita pelos donos do pouso, daquela noite.

O padre sorriu desconfiado, mas logo voltou a ficar sério (...). Audacioso, sua desconfiança fez com que assumisse (...) um ar de profundo ressentimento (...) em seu coração. Isso bastou para que ele pedisse a palavra.

 

03.

“Santificadas sejam as palavras de quem fala sem acreditar!” Assim, começou o discurso do contestado presbítero.

“Que esta loucura se prolongue de geração em geração, porque são dos frutos de vossos pensamentos que hão de haurir gênios maléficos, os quais poderão pregar um reino de dinheiro e poder para todo o tempo.Lograi-vos! Proclamem-vos reis uns dos outros. Porque estendida é esta geração, doadora de ponte para combates entre os povos.

Fulmine de loucura, caros filhos. Sensato é o vosso atuar. O próprio destino lhe chama.

Quem tem ouvidos para escutar-me, deixai o que esteja fazendo e ouve-me.

Verdadeiramente, aspiro a primeira fila.

Não sou flexível a nenhuma desprezível queixa. Covardia só arde a quem se obscurece sem rédeas, seu corpo em chama.

Que os vossos corações transbordam a sabedoria acovardada! Destarte, serão adocicados os venenos que jorram de vossa religiosidade.

Economizai-vos! Do menor lucro. Sofre para ganhar, em vossas entranhas, o mel que açoita a desilusão da máxima raiva.

Poderosas são as palavras que emanam de lábios que não se batizam em castas sombrias. Desses lábios saem nomes de maior drama!

Suspirai! Suas gargantas estão proclamando o mel. Um mel sadio e sem razões de se estreitar por doutrinas.

A Doutrina fez de mim um vagueador sobre mim mesmo. Não saí desta bendita doutrina.

Sou propriamente aborrecido não pela doutrina senão por aqueles homens de saber muito vasto e, no entanto, de atos quadriculados que dizem educar os formadores de opiniões.

Deus me deu tudo, porém, em conceitos.

Então tudo, depois da doutrina, passou a ser justificado. Tudo se justifica. Até mesmo o meu Deus.

Falo para que minha garganta não se pareça como as que agora, imóvel, febricitante a entender o que falo. Não. Falo para ouvidos.

Ouvido que escuta o que a boca tem a dizer; mas, por causa da doutrina, teme deixar os lábios balbuciarem o que passa nos corações.

Não sou louco; sou um sacerdote que insulta vossa fé com ares de ligeiro medo. Medo? Podeis perguntar-me. Repondo que sim. Tenho medo de ser rebatizado pela doutrina. Quer dizer, converter-me.

Ora essa! Eu? Ter medo? Não.

A águia, todavia, é admirada porque voa nas alturas!”.

Ao falar, tudo isso, o sacerdote foi, subitamente, apreendido por uma corda ao pescoço. Foi um ateu quase convertido, que pulou sobre o padre para enforcá-lo.

 

04.

O ateu disse para o padre: - “Pare! Basta de tanta ironia... por tais coisas que você diz acreditar!

Até eu creio mais do que pode suportar um protopadre de veneno nos 1ábios”.

 

05.

Todos que ali se achavam, puderam ver o egoísmo do servo de Deus, que se retorcia com a corda habilmente colocada em seu pescoço.

Em lasciva expressão de dor encontrava-se o pobre pastor que, sem ressentimento, era lentamente enforcado pelo ateu.

“Não vai impedir isso, guia de folia? Faça, pelo amor de Deus, alguma coisa!” Clamava o padre se asfixiando.

Ao se aproximar do presbítero, o guia observou que havia acontecido uma metamorfose com o padre. Ele se transformara em um rato. (...) Um rato sendo enforcado.

 

06.

O ateu vendo que era um rato o que enforcava, pensou: “agora, um padre se converteu em um rato”.

Um cético gritou com veemência: “Mate-o!”

O quase convertido, rebateu: “Não! Primeiro, vou interrogá-lo”.

 

07.

“Diga-me, á rato de muitas crenças! Ao morrer, terá o céu! Por que enquanto era um presbítero tinha, em sua doutrina, a vida eterna como forma de persuadir pessoas à observância de mandamentos.

No remoto, irá morrer!

Sua vida, portanto, acaba aqui?

Ou você tem (...) um deus e uma religião, cujos ritos sejam manipulados por você?

 

08.

O rato e o ateu se entre olham. Mas o rato pensou, longamente, antes de responder...

Só, em seguida, disse: “Não lhe cabe, talvez, saber se minha vida termina aqui! Agora!

Uma coisa é preciso que você saiba: tudo que vive um dia morre... Eu, não obstante, eu estou vivo. Logo, você saberá o que vai me acometer...

 

09.

Com os olhos demonstrando tranqüilidade e paciência, o rato deixou falar sua boca, revelando as nódoas de seu ser.

Sua boca que antes serrava medrosamente, agora se abre com intenções de contristar o ateu com um discurso que entoara destruindo o medo que expressava, e que lhe aparecia ao semblante.

‘‘Viscosa é minha palavra. Palavra que vou lhe proferir, quase em escarros, por causa desta corda que crava (...) nas minhas entranhas”, disse o rato.

O ateu, na busca de explicação sobre deus e a religião do rato, afrouxou um pouco a corda. E, voltando-se para o rato, acrescentou: “agora, já um pouco aliviado pode me falar sobre seu deus”.

 

10.

O rato grunhia, mastigando os próprios dentes. E, sem saída, começou sua narração..

“O homem cria seu deus à grandeza e à semelhança de si.

Quando a pessoa é fraca, o deus que criou (...) é, pois, um deus igualmente fraco, debilitado. Mas, se o deus é próximo de seu autor, sempre deveria guardar alguma semelhança e identidade com quem o criou.

A reverência a esse deus, o qual se cria, é realizada na medida em que o homem realiza aquilo que lhe é próprio, no seu dia-a-dia. Portanto, o deus que se cria deve ser louvado (...) por quem o criou.

A força desse deus é fruto (...) da crença de seu criador. Esse deus, por conseguinte, não possui a mesma força de seu criador. Neste caso, depende da fortaleza de seu criador.

Desse modo, todo homem tem seu próprio deus; e, dai, cria outros deuses a partir do modelo original.

O homem possui seus deuses, não no sentido de que eles existam: um deus exterior, de fora; é um deus interior, de dentro. Ambos concebidos e criados, tendo como referência a realidade de que os criou.

Há, todavia, vários deuses criados após o deus primo, primeiro. Quando se criam outros deuses é para dar força ao deus primo.

Com efeito, se um homem é presidente, seu deus é aquele que governaria e os deuses (...) dele decorrentes teria a função natural de fortalecer o governo. Esses são deuses provindos do deus primordial. Eles ficam responsáveis pelo trabalho duro e pesado, como por exemplo, as formigas toupeiras.

O deus primordial permanece com o poder que recebeu ao ser criado. Aliás, ele pode tornar-se forte com o passar dos anos...

Quer saber como? Na medida em que seu criador evolua, ou é elevado em seu posto.

O que acontece é que o homem cria os deuses, a partir de sua imagem, ou do próprio modelo.

Meu deus é fone, caso eu seja forte, do mesmo modo que poderia ser fraco, devido minha fraqueza.

Prontamente, a fraqueza e a força do meu deus dependem de mim. Eu sou o que sou, porque crio meus deuses.

Ao ser criado, o meu deus, o meu eu se transforma nesses deuses e vice-versa. O eu e o meu deus primordial nos transformamos numa mesma entidade, não apenas num deus, mas em um eu fortalecido, que vai ganhando forças com a multiplicação desses deuses, originários do deus primordial.

Em fim, o ego fortalecido toma-se frágil quando o deus primordial está carente de fortaleza, e forte quando não é dominado pela fraqueza”.

 

11.

“Você falou de deuses, porém, não me falou de religião! Quero saber se existe uma religião para animais”, interveio o ateu.

O rato, com efeito, prossegui seu discurso, mas dando um enfoque salutar à Religião.

“A Religião veio para purificar as idéias de divindades, entre as deferentes culturas existentes, as quais tinham os deuses como seus principais dominadores.

Com a Religião, as divindades ficaram com um poder que não transcendiam a sua cultura e, assim, as forças dos deuses foram se esvaindo na sociedade”.

Por causa de tais palavras, o ateu se irritou e disse que da boca daquele rato destilava sarcasmo... Por isso, apertou bastante a corda que envolvia o pescoço do rato, prestes a enforcá-lo definitivamente.

“Não quero saber de cultura, tampouco de sociedade; quero saber a respeito da religião dos animais”, reagiu aos gritos o incrédulo.

 

12.

O rato, metamorfoseado em aromas de despedida da vida, versou sobre religião, nos seguintes termos:

“A religião constitui uma sociedade de seres, que se compõe de indivíduos pensantes, e não dotados de racionalidade. A religião (...) sendo esta sociedade de seres, encontra-se em todos os animais. Porém, se manifesta de forma e finalidade deferentes entre os animais imbuídos de razão, e também aqueles que não possuem a capacidade de raciocinar. A religião tem algo em comum, a qual apresenta em todos os animais nada mais que ritual.

Contudo, a execução desse ritual em si mesmo diferencia (...) animais racionais de animais irracionais; ou seja, os animais superiores e os animais inferiores. A principal diferença plausível dos rituais entre esses animais (...) está (...) num fato que os diferenciam, a finalidade do ritual executado.

O fim ocorre nas duas escalas de animais: superiores e inferiores, segundo a tendência do destino de cada indivíduo... Em ambos rituais (...) a religião dos animais a inclinação a uma finalidade, é completamente distinta do outro.

A religião que era esplanada, praticada por todos, é aquela que lhes proporcionam tender ao sentido da vida seja pela razão, como a inclinação do homem, seja por meio do instinto como os animais inferiores.

O homem, na busca da realização de uma religião, utiliza tudo o que possa lhe proporcionar o alcance dessa busca, dessa procura... Contudo, para (...) alcançar tal realização, (...) o homem pane dessa eterna busca, por meio da metafísica.

Pois, é por meio dessa mesma metafísica que o homem consegue respostas satisfatórias às suas indagações racionais.

(...) Os animais inferiores para se acasalarem, submetem-se a um ritual particular, condizente à sua condição, nessa escala animal. Ritual que tem sua característica peculiar a cada categoria de animais, condição que não pode ser descartada, no momento de preparar o parceiro para o acasalamento.

A partir do momento que os animais inferiores seguem, piamente, esse ritual, isto nos leva a crer, tratar-se de uma prática “sagrada” portanto, sublime... E, encarado desse modo, deve ser cumprido, rigorosamente; assim, a não ser por castração, pode-se dizer que esse ritual de acasalamento, realizado pelos animais inferiores, constitui a sua religião.

A religião desses animais inferiores é tipicamente realizada através de ritual feito com o propósito de atender simplesmente o instinto de seu acasalamento. O que acontece com a religião desses animais inferiores, é que o tal ritual não tem um significado mais profundo, que (...) o sentido de mero acasalamento, visto que a realização do ato obedece, necessariamente, a um impulso de natureza instintiva.

O ritual dos animais inferiores tem simplesmente o objetivo: (...) ser aceito pela fêmea, para levá-lo à realização do acasalamento. Por outro lado, os animais considerados superiores, e, portanto, racionais a religião possui um caráter objetivo, que é á alcançar a Felicidade, ou seja, o Oculto, Deus!

 

13.

Terminando o discurso sobre (...) religião, eu “acordei”...

-- Que pesadelo foi esse?

Quisera não ter sonhado esse sonho; nem tão pouco, todo esse tempo! Aliás, gostaria de ter sonhado que não sonhei um sonho tão repugnante e profundo sobre o julgamento e punição desse padre, ganancioso por dinheiro.

Ao me perceber deitado, levantei-me, se é que estava realmente deitado; e flui assistir ao jornal, se é que houvesse televisão por ali; e, depois, fiquei pensando a respeito de tudo que tinha visto e ouvido no telejornal e, visceralmente, permaneci estático, pensando na minha existência.

Foi quando, então, ocorreram-me (...) as palavras do filósofo Epícuro, que diziam: “o homem pode duvidar do que ouve, possivelmente do que vê, mas nunca do que faz”. Então, pensei, pensei e pensei... Na seqüência, conclui que o homem, existindo, só não pode e não duvida de uma coisa: que existe.

 

* Estudou Filosofia e cursa Teologia no SMAB. Foi finalista no concurso internacional de filosofia da Revista Antorchacultural em 2007 e 2008. Em 2007 Com a obra "Riqueza da Humanidade..." e em 2008 com a obra "Opúsculo do conhecer". tem vários artigos publicados em Jornais tanto de Brasília como de Formosa Goiás; além de manter mensal a coluna "Filosofando" do jornal "Alô Vicentinos".