A convite da poeta e agitadora cultural Dalila Veras, fui no último sábado para o Encontro com o eminente sociólogo José de Souza Martins. Neste evento ele lançou o seu novo livro de memórias “Moleque de Fábrica – Uma arqueologia da Memória Social”. Esse livro que ele mesmo define como memórias sem pretensões de uma pessoa sem grande relevância para o Brasil ou para o mundo. Muita modéstia o autor dizer isso, depois de uma brilhante carreira docente e mais de 30 livros publicados, que o coloca ao lado de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Antônio Cândido como um dos maiores sociólogos brasileiros.

Cheguei bem antes do horário e pudemos tomar um café juntos e conversarmos sobre trivialidades.   Fiz questão de lembrar-lhe  que em meados dos anos 1970 o encontrei numa palestra na Fundação Santo André. Ele estava munido de uma vitrola portátil e tocou um disco de música sertaneja, chamado “Boi de Carro”, do Tonico e Tinoco.  Usando essa música como referência, ele analisou o sentido de música caipira e música sertaneja, bem como a forma utilizada para fazer a crítica social. Em Boi de carro, a letra traça um paralelo entre o boi utilizado para puxar o carro e o trabalhador no campo. Enquanto o boi vai para o matadouro quando não serve mais para trabalho e o trabalhador é dispensado e colocado na estrada.  Martins lembrou que o caipira não faz protesto de forma direta, mas indireta, como é o caso dessa música. O seu livro e algumas histórias que ele alinhavou durante a conversa, deixou claro que de caipira ele entende, pois vivenciou a sua cultura através de sua mãe e seus avós maternos.

 Durante a palestra nos longínquos anos 1970, ele discorreu, também, sobre a diferença entre a música caipira e a música sertaneja, fruto de um trabalho de pesquisa que resultou no saboroso artigo “Viola Quebrada”. Explicitou que a primeira é uma música originária de rituais religiosos de colheita ou plantio que não tem duração determinada. Enquanto a segunda é uma música comercial, com duração limitada e geralmente composta por pessoas do meio urbano. Assim, tudo o que ouvimos pelo rádio, é música sertaneja e não caipira como se diz no cotidiano.

Seu novo livro é uma coletânea de histórias reais e outras fantásticas que vivenciou desde a infância, quando trabalhava na Cerâmica São Caetano. É como ele disse: o avesso da sua história, porque escrever sobre o real é apenas uma fotografia e não revela o outro lado da realidade vivida pelas pessoas no seu cotidiano.

No livro ele relembra uma sinistra história familiar em que descobre em sua visita a Santiago de Figueiró, em Portugal, lugarejo que seu pai deixou para emigrar para o Brasil. Foi lá que descobriu que o seu pai era filho de um padre da aldeia. O resgate dessa história o deixou surpreso, pois não sabia dessa história, pois seu pai morreu quando tinha apenas cinco anos. Essa visita à terra dos seus antepassados lhe deu a impressão de que havia entrado no túnel do tempo, retornando aos tempos medievais.

José de Souza Martins em sua fala lembrou que a história oficial da região se baseia em premissas falsas, construídas por políticos para dar verossimilhança à origem das cidades, mas que nada do que se fala ou está escrito tem fundamento histórico, etnográfico ou social. Ele lamenta, também, que não há uma literatura regional, que faça com justiça um resgate autêntico da vida cotidiana da classe operária, sua cultura, seus conflitos, seus medos e suas inseguranças. Lembrou a figura sinistra dos delatores que sempre estiveram presentes desde a época dos imigrantes anarquistas que para cá vieram, passando pela longa ditadura Vargas até a ditatura militar. Contou a história do espanhol anarquista Francisco Caparroz que montou uma fábrica de sapatos em São Caetano com o nome de Floreal. O nome ele veio a descobrir que se tratava de um jornal anarquista espanhol. Em minha adolescência cheguei a conhecer a neta dele, Marcia Caparroz, uma linda e simpática garota que morava quase ao lado de um amigo que vim a conhecer bem depois, chamado Edson Silva. Como o mundo é pequeno!

Na conversa Martins lembrou-se de outro sapateiro anarquista, também chamado Francisco, que foi denunciado por um vizinho em São Caetano. Como o Brasil estava sob o jugo da ditadura Vargas, ele foi preso e deportado para a Espanha. Lá chegando foi imediatamente fuzilado após o oficial franquista ler seus documentos. A família do Francisco Márquez nunca mais teve notícias dele e fechou-se em silêncio com receio de serem delatados. A história foi resgatada graças ao comandante do navio que ele chegou a conhecer e era, por coincidência, um comunista.

Enfim, a conversa terminou com um delicioso espumante gelado servido pela anfitriã, Dalila em sua aconchegante livraria e Sebo que vale a pena conhecer. É um lugar para passar saborosas horas em meio aos aromas de livros velhos e novos, gente interessante e um bom expresso servido por uma atenc