O Millôr Fernandes dizia que o segredo é impossível, pois todo amigo íntimo tem outro amigo íntimo, que por sua vez tem uma amante e que por sua vez tem outro amigo íntimo.  Mas hoje, mesmo sem amigos íntimos os segredos podem ser devassados inescrupulosamente. Me refiro a um querido mestre já falecido dos tempos de faculdade, que pertenceu a uma das mais antigas e tradicionais famílias paulistas.  Ele teve revelada a existência de uma filha com uma moça negra e pobre antes de se casar.

A mãe, para preservar o namorado branco e importante, amor de sua vida, jamais revelou a identidade do pai da garota. Ela preferiu assumir sozinha, o fruto de um relacionamento que permaneceu na penumbra da casa grande. Depois, sendo criada pelo avô e um tio, esses também nada sabiam sobre o pai, que era um segredo guardado a sete chaves pela mãe. Mesmo assim ela lhe escreveu e combinou para se encontrarem no Rio de Janeiro para registrar a criança. Ele não foi ao encontro.  E assim, ela cresceu tendo em sua memória um pai sem cor, sem rosto, sem nome. Era como se o Espírito Santo tivesse deixado uma semente no ventre de sua mãe. A pobre mulher viveu a triste ventura de ser mãe solteira e negra numa sociedade racista e hipócrita. Mas a sua família a acolheu dando-lhe todo apoio possível.  Ela nunca procurou o namorado ou a sua família e carregou sozinha o fardo da discriminação racial e social.

E foi somente quando tinha doze anos, a mãe lhe contou sobre o pai, mas nesta época já moravam nos Estados Unidos. Já adulta, aconselhada por amigos, resolveu fazer um exame de DNA e descobriu que tinha forte parentesco com uma tradicional família paulista, exatamente da região onde nasceu e morava sua mãe e seus parentes. Comparando os resultados do DNA descobriu que seu pai tinha nome e rosto, mas restavam as provas finais. Uma das filhas do pai desconhecido aceitou fazer o teste comprovou-se que tinham o mesmo pai. A menina descobriu então que o autor de um livro escolar que utilizou nos tempos de ginásio e que por acaso detestava, havia sido escrito pelo seu pai.  Ela considerava o livro difícil e complicado.

E ela foi esmiuçando, procurando informações sobre o pai, o que fazia, seus amigos e parentes. Um dos grandes amigos dele a acolheu e lhe contou muitas histórias sobre ele. Descobriu ex-alunos dele que também tinham muitas histórias para contar. Ele havia sido amigo do grande educador Anísio Teixeira a quem se referia sempre em suas aulas, como um dos responsáveis pela educação pública no Brasil. Soube que um grande sociólogo paulistano abraçou essa ciência por sua influência, pois o pai o queria advogado. Com sua contumaz elegância, ele convenceu o pai do rapaz a deixá-lo seguir o seu caminho. De fato, ele se tornou um dos mais importantes intelectuais do seu tempo.

O pai desconhecido foi aos poucos sendo desvendado se aproximando.   Mesmo morando num país tão distante foi descobrindo segredos e histórias do pai intelectual, libertário e defensor do ensino público e gratuito. Autor de vários livros, professor universitário, mestre, doutor e livre docente na sua área.

Quando o conheci e com ele convivi durante alguns anos, nunca imaginei que pudesse ter um segredo como esse. Era uma pessoa elegante, finamente educada, cordata e tratava todos os seus alunos com carinho e respeito, fossem brancos, asiáticos, negros ou mestiços. Estava sempre disponível, elogiando os trabalhos muito mais pela criatividade apresentada do que pelos recursos midiáticos. Lembro-me que fizemos um trabalho de pesquisa entrevistando pessoas numa favela próxima da faculdade. Fizemos fotografias e as projetamos em slides comentando os conteúdos das entrevistas. Um outro grupo fez um trabalho com todo aparato tecnológico, o que deixou meu companheiro de atividade decepcionado com a simplicidade do nosso. Mas o mestre deu a nota máxima para o nosso e uma nota mais modesta para o outro e comentou em particular: “O trabalho que vocês fizeram teve mais conteúdo e verdade. O outro foi só efeito demonstração. Para mim isso não tem muito valor”.

Depois da descoberta do seu segredo, com meus botões fico pensando sobre as razões que a própria razão desconhece. Como pode alguém negar um filho? Medo da reprovação social em seu meio? Não teve coragem de contar a história para a noiva ou esposa? A sua imagem de intelectual branco bem relacionado poderia ser afetada? Como seria visto pelos filhos quando soubessem do outro relacionamento? Sua família tradicional o consideraria indigno de usar um nome honrado de mais de 300 anos?

Enfim, muita coisa deve ter passado pela cabeça do mestre quando decidiu não ir ao encontro do seu passado e assumir uma paternidade. Faltou coragem para enfrentar as convenções sociais, o racismo e o preconceito, pois essas coisas falam mais alto e como diria o poeta: “Há uma hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam”.

A menina rejeitada foi em busca da aventura de encontrar o pai, tal como o filho de Ulisses na mitologia grega. Procurar o pai, é uma aventura heroica, como procurar o próprio horizonte, a sua própria fonte. Enfim, a história da menina sem pai teve um final feliz quando encontrou o amor de sua vida, um italiano, imigrante como ela, com quem casou e teve filhos. Do pai, restaram fotografias, os livros que ele escreveu, os novos irmãos, amigos e recordações.