Resumo: Faço minhas as palavras de Heidegger: o numinoso  só se mostra repentinamente, num instante que passa rapidamente.

O santuário paralelo

No condomínio Alfa, localizado no bairro Beta da cidade Gama, às margens do Rio Delta, construíram um santuário. Fica num cantinho do jardim, além da piscina, por trás da churrasqueira.

Há lá dois banquinhos e um nicho com a imagem de Nossa Senhora de Fátima.

Na última reunião  condominial  um morador, adepto de outra denominação, propôs a  construção de um segundo santuário, alegando ser Nossa Senhora de Fátima figura não reconhecida no cânon de sua crença.  

As palavras textuais do condômino foram: reivindico um espaço que contemple a religião minha e dos que creem como eu.

Luca Matéria, síndico na ocasião, notou com agrado que a proposta não agredia a opção alheia e, ao influxo da isonomia manifesta,  a encaminhou de imediato  à consideração do plenário.

O plenário assentiu em princípio, mas logo surgiu a lembrança de que não havia espaço adequado para um novo santuário, fosse qual fosse. A construção quebrava a harmonia arquitetônica do conjunto. Além disso, abria-se um precedente indesejável, visto que entre os condôminos havia uma risonha família xintoísta, um honrado senhor maometano,  e um distinto casal de  babalorixás.  

Todos concordaram e a construção de um novo santuário foi sumariamente descartada.

- Nesse caso – alguém sugeriu – para não ferir o princípio isonômico, o melhor será acabar com o santuário que aí está.

Luca Matéria ponderou:   

- Talvez não seja necessário chegar a tanto. Se pudermos compreender o sentido do santuário, quem sabe conseguiremos evitar a demolição. Podíamos retirar a imagem e preservar o santuário.

- Mas chefe – questionou uma senhora  – se a imagem sair o santuário acaba. É a imagem que justifica o santuário.

- Não necessariamente.  A imagem conceitua o santuário. O santuário mesmo é apenas um reflexo.

- Reflexo? Reflexo de quê? Reflexo onde?

- Reflexo de uma essência, de uma ideia - a ideia do divino, do sagrado, ora essa.

- Quer dizer que a imagem não desfalca o santuário?

- Desfalca do conceito,  não da ideia.

- Mas as pessoas vão sentir falta de uma referência. Sem a imagem o devoto só disporá do nicho vazio.

- Se vão retirar a imagem – aparteou um rapaz de bigode e costeleta – manda a coerência retirar também o nicho e os bancos . O nicho e os bancos fazem parte do conceito.

A senhora não se convenceu e em tom de desafio perguntou o que seria posto no lugar da imagem, do nicho e dos bancos, para compor o santuário e refletir a essência universal.

Ninguém se atreveu a abrir a boca. O morador que havia pleiteado um santuário paralelo foi o primeiro a se retirar em silêncio.