O SANFONEIRO
Publicado em 24 de outubro de 2019 por Renato Ladeia
Velórios no interior sempre são motivos para os mais velhos contarem histórias, muitas delas escabrosas, como defuntos se levantando no meio da noite ou dando uma tossida para limpar a garganta antes de enfrentar o juízo final. Com certeza nunca ninguém viu tais acontecimentos, mas todos os que contam juram que viram, mesmo que seja preciso colocar a vida da mãe em jogo.
Mas foi em Descalvado o palco de uma história, que nada tem de sobrenatural, sem fantasmas ou visitas do além túmulo. A história contada por um velho amigo nascido na cidade aconteceu num velório de uma pessoa conhecida. O nome do personagem principal vai ficar como Zé para facilitar a escreveção e, também, para evitar disse que disse.
O que se sabe é que um parente muito próximo do Zé partiu para a viagem sem volta e como reza os costumes, pelo menos no interior, o velório foi em casa. As velas queimando ao lado do caixão e as conversas animadas por todos os cantos. Os homens ficavam do lado de fora contando causos, fumando um cigarrinho de palha e, por que não contando umas historinhas mais picantes e inconvenientes para as senhoras.
O Zé, muito conhecido na cidade sempre foi dado a exageros nas suas histórias e chegam a dizer que ele aumenta, mas não inventa. Mas segundo meu amigo, ele além de aumentar, inventa um pouquinho, mas não muito. As histórias, a bem da verdade, seriam sem graça se contadas com o rigor dos fatos, como uma notícia de jornal. Um temperinho ajuda a dar um sabor a mais para evitar que o causo fique sem sal e vai daí que alguns chegam exagerar.
Mas vamos a história do Zé que os leitores já estão para perder a paciência. Conversa vai, conversa vem, alguém falou em música e música é roça do Zé, que segundo consta, tem afinidade com o instrumento; mas vá lá que está um pouco destreinado, arriscou alguém. O sangue subiu na cabeça do Zé. Ficou vermelho como um pimentão maduro e disse com convicção que em Descalvado não tinha sanfoneiro melhor do que ele.
Quem bem o conhecia tentou desconversar, mudar de assunto para não deixar o homem muito agitado, mas o assunto volta e meia entrava na roda de conversa. E foi aí que um dos presentes resolveu provocar o Zé, dizendo: “Ah! Zé, você já tocou algum dia, hoje acabou, você não deve nem lembrar de uma música inteira”.
O Zé se levantou, colocou o dedo no nariz do homem e falou em alto e bom som: “Eu vou provar pro cê que eu ainda sou bão na sanfona”. E saiu desembestado em direção ao portão. Passados alguns minutos, ele estava de volta carregando a sanfona Stradelli de 80 baixos, que seu avô trouxe da Itália.
- Mas Zé, isso aqui é um velório e não é lugar para tocar sanfona homem, tentou convencê-lo um dos presentes.
- Não interessa. Se falaram que eu não sei tocar eu vou provar que sei e o falecido que me desculpe, mas vai ter velório com reza e música.
E foi aí que Saudade de Matão animou o velório do compadre, juntando gente de tudo quanto era lado. Chegou a um ponto que chegaram a perguntar se era baile ou o quê. A família do falecido nem reclamou, pois até que foi bom para passar a madrugada fria de junho.
Dizem que ele até começou a ser convidado para animar velórios, mas não gostou da ideia, pois considerava desrespeito com os mortos. Naquela noite foi exceção, uma questão de honra.